Bela Vingança: da revanche feminina à sua perda iminente

Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente – Margaret Atwood, no livro O Conto da Aia.

Ana Paula Abreu Dos Anjos – anapaulaabreu@rede.ulbra.br

Uma violação presente em todos os períodos e cenários, a violência sexual alcança mulheres de todas as classes sociais, trazendo consequências e repercussões negativas no âmbito biopsicossocial, modelando a vida da vítima e a de pessoas próximas em um verdadeiro pesadelo, a chamada “cultura do estupro” se configura em um contexto gerado por uma complexa estrutura social, que está intrinsecamente relacionada as outras ferramentas de opressão contra a mulher, como o machismo, patriarcado, sexismo e a misoginia, que relativiza e normaliza essa conduta criminosa, distorcendo a situação ao ponto de por em julgamento os comportamentos e atitudes da vítima, minimizando a culpa do agressor, ao apontar que as ações da mulher foi o fator desencadeante da violação, ou até mesmo a taxação da vitima como mentirosa. 

Assim, dentro de tal cultura, passa-se a ver a mulher como objeto. Um objeto que provoca e não se porta como deveria dentro da sociedade a qual vive, fazendo com que o homem não tenha outra opção a não ser aliviar tal desejo, já que esse é controlado por seus instintos biológicos. Com isso, a cultura do estupro normaliza a violência sexual e transforma essa em uma consequência inevitável e não um crime como outro qualquer que merece punição devida. (ENGEL, 2017, p. 11).  

No filme Bela Vingança (Promising Young Woman) lançado no Brasil em 2021, com 5 indicações ao Oscar, incluindo o de melhor filme (vencendo a categoria de melhor roteiro original), a protagonista é Cassandra Thomas (Cassie), uma mulher de 29 anos, que outrora foi uma jovem com a possibilidade de conquistar tudo o que alguém poderia desejar, mas que, apesar de ser uma das alunas mais promissoras do curso de medicina, abandonou a faculdade, e leva uma vida pacata, ainda morando com os pais, solteira, sem amizades, com um emprego do qual não gosta, Cassie é uma mulher beirando os 30 anos, que foi indiretamente atingida por um caso de violência sexual sofrido por sua amiga de infância, Nina, após o evento e suas obscuras consequências, abriu mão de suas ambições pessoais em detrimento de um único objetivo, a vingança. 

Todas as noites Cassie vai sozinha a uma boate/bar.
Fonte: Focus Features

Nas cenas iniciais podemos observar a protagonista sentada sozinha, ao que tudo indica bêbada, no sofá de uma boate, na passagem, um trio de homens, ao verem o ocorrido, verbalizam frases sobre como esse “tipo de mulher” se arrisca e se expõem a situações de risco, logo um dos rapazes, Jerry, se aproxima de Cassie oferecendo ajuda, sugerindo acompanhá-la em segurança até sua casa, o aparente cara legal chama um táxi e a acompanha em uma suposta boa ação, no entanto no meio do caminho muda a rota para o seu apartamento, insistindo que eles deveriam tomar mais uma bebida para finalizar a noite, nesse momento a câmera foca no taxista, demonstrando uma dose de incômodo com o episódio, porém seu silêncio permanece ao presenciar o acontecimento. 

Nos próximos minutos do longa, em seu apartamento, Jerry, após entregar uma bebida para Cassei, a beija, a personagem visivelmente debilitada, fala que precisa se deitar, Jerry a leva para o seu quarto, na sequência começa a retirar suas roupas, mesmo sobre os claros protestos de Cassei, que pergunta diversas vezes “o que você está fazendo?”, e nesse momento recebemos a primeira reviravolta do filme, Cassandra vinha fingindo todo esse tempo o seu estado de embriaguez, ao contrário do esperado, ela era a caçadora, não a presa, a personagem noite após noite, elabora uma armadilha com o único objetivo de atrair homens que esperam se aproveitar da vulnerabilidade de uma mulher beirando a inconsciência. 

Algumas mulheres, em razão do local onde se encontram, em razão da roupa que vestem, em razão do trabalho que desempenham, não são vistas como sujeitos de direito. Seus corpos não são, dentro dessa lógica, invioláveis, estando sujeitos a todo tipo de violência. Não existe, portanto, um real reconhecimento e entendimento do que significa consentimento. O estupro é justificado em diversas situações, não havendo uma compreensão pela sociedade de que, independentemente de qualquer circunstância que possa ser utilizada para justificar o crime, se não há consentimento, há estupro. (OLIVEIRA, Luiza Bischoff. 2018, p. 27).   

Cassie se desfaça de stripper para entrar na despedida de solteiro do agressor de sua amiga.
Fonte: Focus Features

A jornada de Cassie e sua busca por vingança se direciona aos envolvidos no episódio de violência sofrido por sua amiga, Nina, com sutileza, o roteiro sugestiona ao público que Nina teria se suicidado depois de ter sido violentada por um colega da faculdade, Al Monroe, durante uma festa, nessa caminhada Cassie traça seus alvos, desde a amiga que duvidou da palavra da vítima, a reitora que foi omissa ao receber a denúncia, o advogado que defendeu Al, finalizando ao atacar Al diretamente em sua despedida de solteiro, durante sua trajetória, Cassandra mostra-se uma personagem complexa, possuindo atitudes de caráter questionáveis, expondo outras mulheres a contextos similares ao que ela mesma experimentou, mas também levando em consideração a mudança, perdoando ao se deparar com o arrependimento. 

O filme constrói sua narrativa perpassando pelos diversos fatores que perpetuam a violência contra a mulher, a culpabilização, e silenciamento, a conveniência e cumplicidade, mostrando a verdade amarga de que muitas vezes ao agressor são oferecidas múltiplas “segundas chances”, e as consequências acabam sendo mais graves para a vítima. Segundo a escritora e jornalista Ana Paula Araújo em seu livro Abuso: A cultura do estupro no Brasil, “estupro é o único crime em que a vítima é que sente culpa e vergonha” (2020, p. 08), em paralelo a afirmação da autora, Bela Vingança evidência a cultura do estupro e as diversas faces por trás dela, revelando sua dolorosa repercussão em duas vidas cheias de promessas, o longa subverte as expectativas dos telespectadores, atingindo no seu ápice o lugar que mais machuca, a cruel e mortificante realidade. 

Referências:

ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: A cultura do estupro no Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2020. 

ENGEL, Cíntia Liara. As atualizações e a persistência da cultura do estupro no Brasil. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8088/1/td_2339.PDF. Acesso em: 28 de Mar. 2023. 

OLIVEIRA, Luiza Bischoff de. A teoria criminológica da atividade de rotina e o abuso sexual do gênero feminino: machismo, cultura do estupro e naturalização da violência. 2018. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/184169/001077120.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 29 de Mar. 2023.