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Márcia Tiburi – A melancolia é uma das genitoras da sabedoria

A maior sabedoria é ter o presente como objeto maior da vida, pois ele é a única realidade, tudo o mais é imaginação. Mas poderíamos também considerar isso nossa maior maluquice, pois aquilo que existe só por um instante e some como sonho não merece um esforço sério – Schopenhauer

Uma das palestras mais marcantes da filósofa gaúcha Márcia Tiburi para o programa Café Filosófico, da CPFL Cultura (transmitido pela TV Cultura), é sobre a tristeza. Definida no dicionário Houaiss como um “estado afetivo caracterizado pela falta de alegria, pela melancolia”, a tristeza é “dissecada” por Tiburi, que faz uma ampla “viagem” pela filosofia para situar este fenômeno que parece ser algo fruto das dinâmicas contemporâneas, mas que já era alvo de análise por parte dos antigos gregos – como Heráclito (535 aEC a 475 aEC), Demócrito (460 aEC a 370 aEC) e Aristóteles (384 aEC a 322 aEC). Esta remota abordagem influenciou (e ainda influencia) vários pensadores ocidentais, de diferentes momentos históricos, a exemplo DescartesShakespeare, Benjamin, Schopenhauer e Nietzsche, só para citar alguns. Estes dois últimos, inclusive, são conhecidos por traços de melancolia impressos não apenas nas obras, mas nas suas próprias vidas.

Márcia Tiburi lembra que a tristeza pode ser decorrente da contingência humana, naquele período mesmo em que o homem (mulher) se vê submetido ao presente e, já “no momento seguinte, está impossibilitado de retornar a este mesmo presente”. O melancólico, portanto, é aquele ser entristecido por perceber a frugalidade nas variações do tempo, cujos instantes, antes de serem “tocados”, já passam a compor uma representação da memória. Isto causa uma constante sensação de “finitude”, uma percepção de abandono, “num total vazio de sentido”.

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De acordo com a filósofa gaúcha, que também é professora do programa de pós-graduação da Universidade Mackenzie (SP), há um núcleo atemporal para o conceito de tristeza. “Enquanto sentimento de abatimento, de pesar, de dificuldade com a vida e que nos prostra, a tristeza vai estar sempre acompanhada do luto”. Mas é sob o viés da melancolia que Tiburi se debruça, sem, com isso, deixar de traçar um paralelo com a depressão e com os processos criativos, a arte propriamente dita.

Para a filósofa, “a tristeza começa a se tornar algo suportável na medida em que aprendemos que ela pertence/permeia a todos, que ela não diz respeito apenas à vivência pessoal (ontogenética, termo que o Freud usa bastante)”. No entanto, lembra Tiburi, para o processo de entendimento ocorrer de forma mais “suave”, há de se ater ao alerta de Heráclito para a impossibilidade de “reviver” um dado espaço de tempo, afinal “nunca se pode tomar banho duas vezes na mesma água e no mesmo rio”. Lidar com essa submissão e também impotência em relação ao presente requer maestria, para que a vida não se transforme num eterno “anticlímax”, onde o que resta é apenas a experiência da dor, com o caráter passageiro e transitório da existência.

“[Tal percepção de impermanência] pode causar uma vertigem, uma sensação de que a pessoa não está em lugar nenhum”, nem no passado, nem no presente, e muito menos no futuro. Márcia Tiburi vai além e diz que, no fundo,

“ficar triste, neste contexto, é justamente se deparar com a dor de morrer, de não existir mais daqui a pouco. E de morrer a conta gotas, a cada momento, a cada instante…”. (TIBURI, 2013 – CPFL)

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Tiburi lembra que, na visão de outro filósofo, desta vez Demócrito, “rir também é uma maneira de chorar”. Haveria a relação de codependência entre o trágico e o cômico. Demócrito foi fruto de investigação do padre Antônio Vieira, cujo livro “As Lágrimas de Heráclito” aponta para o riso como uma “maneira de chorar das mais absurdas”. Tiburi prossegue ao dizer que isso ocorre

quando extrapolamos a possibilidade de chorar, quando já não têm mais lágrimas, quando não se pode fazer mais nada, quando a dor nos secou de tal maneira que só sobra mesmo um riso. E este riso não é do gozo, cômico, mas um riso que ultrapassa até mesmo o escárnio, e atinge a condição de sabedoria em relação à nossa miséria. (TIBURI, 2013 – CPFL)

Desta forma, Demócrito ri pelo mesmo motivo do qual chora Heráclito: “somos entes miseráveis dentro do nosso tempo”. Os seres humanos, no entanto e de maneira geral, estão totalmente alheios a esta condição. O que sobra disso tudo? “Sobra rir. E, neste aspecto, rir da secura, por não ter nem mais lágrimas para chorar”.

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Aristóteles

É Aristóteles, de acordo Tiburi, que faz uma abordagem mais ampla para explicar este tipo de sentimento, “uma espécie de aprofundamento extremo dentro da sensação da dor”, como se o indivíduo estivesse prestes a cair num abismo. Para o estagirita, apenas quem vive profundamente tanto a dor quanto a alegria, ciente de sua efemeridade e transitoriedade, é apto a ser caracterizado como o suprassumo da humanidade, o “ser filósofo, homem de exceção, que é aquela pessoa que vive na oscilação entre sentir-se tudo e sentir-se nada”, discorre Tiburi, ao destacar que Aristóteles apontava a melancolia e a tragédia como uma alternativa para transcender a mesmice.

“O homem se sente tudo e nada, justamente porque ele está à flor da pele com a sua existência. Então ele vai experimentar o mais nobre dos sentimentos, que é o sentimento relacionado ao trágico, na teoria do Aristóteles, e também sem esquecer-se da sensação de ‘falta de chão’, onde se agrega a ideia do ‘cômico” (TIBURI, 2013 – CPFL).

Desta forma, o homem de exceção é aquele que desenvolve a relação entre o rés-do-chão (o solo, o térreo) e as alturas. “O filósofo, então, é especialista (mas também condenado) a viver este tipo de sentimento […]”. E por filósofo tomemos a definição bem mais abrangente dada por Heidegger. A tristeza, neste ínterim, acaba por se transformar num movimento de resignificação (ou de transvaloração), cuja compreensão só é possível através do esvaziamento (da negação do ego, como pregam algumas abordagens orientais), para à frente acercar-se da “própria condição insipiente da existência (uma das representações da comédia)”. É daí, do bojo destas inquietações, diz Márcia Tiburi, que pode surgir um homem disposto à criação.

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Medievo

Isso tudo, na teoria de Aristóteles, vai reverberar, tempos depois, nas ideias defendidas pelos filósofos medievais, onde a tristeza é apresentada de dois modos.

“De um lado, encaram-na como pecado, porque se sente triste aquele ser humano que abandonou Deus. Então a tristeza passou a ser algo proibido pela igreja; por outro lado, para os monges/ascetas, ela é uma virtude, já que ela nos faz voltarmos para dentro de nós mesmos, e procurar então uma compreensão da nossa própria interioridade” (TIBURI, 2013 – CPFL).

Nesta acepção aparentemente contraditória, a tristeza pode ser um veículo

“que nos leva a um conhecimento verdadeiro, que naquela época não se referia ao conhecimento do mundo, e sim à aproximação com Deus, do qual o mundo só podia ser uma manifestação” (TIBURI, 2013 – CPFL).

Bem mais tarde Goethe vai dizer que a melancolia é uma doença do pensamento. Então, os filósofos e intelectuais de toda ordem, “que são pensadores e que gastam o seu tempo elaborando conceitos, como diria o Hegel, eles sofrem de uma doença do pensar”. De acordo com Tiburi, quando Freud escreve o artigo “Luto e Melancolia”, vai levantar justamente a mesma questão do Goethe: “como alguém pode ficar doente de tanto pensar?”. No entanto, lembra a filósofa, a visão de Aristóteles parece ser a mais equânime. Afinal, defende, antes de ser uma patologia, a melancolia “é uma determinada relação com a própria existência”. Assim, ao mesmo tempo em que o sujeito pode pensar em se livrar dela [da tristeza/melancolia] – seja pelo uso de medicamentos, pelo consumo de álcool ou outras drogas, ou fazendo alguma coisa que altere o estado de humor – “ele pode simplesmente acostumar-se a ela e, quem sabe, desta ‘relação’ surjam coisas boas”. “É compreender como a vida se dá, e ir criando dentro dela as saídas necessárias”, pontua Tiburi, ao lembrar a relação desta maneira de ver o mundo com a abordagem nietzschiana do “amor fati”, cuja investida só pode ser abraçada por “um espírito superior”, capaz de perceber a vida em todas as suas nuances.

Desta forma,

O trágico é aquele que levanta a cabeça acima das demais pessoas e tem a coragem de observar, de ‘cima’, o que está acontecendo. [Trata-se de alguém] que aprende a conhecer os mecanismos da sociedade na qual ele vive, e desenvolve um significado mais próprio, mais original para a reflexão (TIBURI, 2013 – CPFL).

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Depressão

De acordo com Márcia Tiburi, a grande diferença que há entre a depressão e a melancolia, “é que na primeira a pessoa fica abatida, submetida a grande tristeza, cujo desenrolar pode levar ao suicídio”. Na depressão não haveria qualquer possibilidade de se criar um elo e/ou laço com o mundo (um exemplo citado pela filósofa é Hamlet, de Shakespeare, que acaba morrendo no final da peça); Já “na melancolia há a ideia de que é possível reconstituir o campo da representação, da criação, seja na obra de arte, seja na escrita (literatura)”. No entanto, associar a melancolia à escrita só é possível se esta [escrita] “brotar de dentro da própria melancolia […]. Eu só posso construir a minha obra em cima daquilo que em mim é mais doloroso e mais profundo”.

O segredo para “beneficiar-se da tristeza”, alerta Tiburi, é reconhecer-se como a metamorfose ambulante de que fala Raul Seixas.

“O melancólico, então, assume a vida porque ele assume a tragédia. Quem não assume a vida é o deprimido. Este último foge da responsabilidade do que a noção da consciência revela”. (TIBURI, 2013 – CPFL)

O melancólico, no entanto, vai perceber que pode haver uma aceitação daquilo que está dado, “mesmo que isso que foi dado seja um absurdo”.

Já que o jogo é esse [o jogo da vida], vamos aproveitar e rir disso tudo. Esse riso, no entanto, tem duas facetas, pois é o riso de alguém que percebe a limitação da existência, mas reconhece nela a única experiência possível, naquele momento (TIBURI, 2013 – CPFL).

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A melancolia, por fim, pode proporcionar ao ente um vislumbre da transitoriedade e da artificialidade da vida. Se, no fundo, tal vida se resume ao efêmero, ela não deixa de ser majestosa, já que o efêmero “é a própria beleza, como diria Benjamin”. E o melancólico é aquele que tem a oportunidade de perceber toda esta grandiosidade. É alguém que, pela dor e pela recusa do convencional, está apto a acessar as diretivas da sabedoria. Esta certamente é uma nova maneira de se encarar a introspecção. Que se mude, então, a visão geral e enviesada acerca da melancolia.

 

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

Café Filosófico: Tristeza, por Márcia Tiburi. Programa disponível em <http://www.cpflcultura.com.br/wp/2013/07/29/tristeza-marcia-tiburi/ > – Acessado em 08/01/2015;

Minibiografia de Márcia Tiburi. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rcia_Tiburi > – Acessado em 10/01/2015;

Definição de “tristeza”de acordo com o dicionário Houaiss. Disponível em <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=tristeza > – Acesso com senha em 11/01/2015;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

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