A sociedade atual tem o seu paradigma construído através de preconceitos estruturantes e estigmatizantes em relação ao processo de envelhecimento. Além disso, os meios midiáticos traduzem, ainda com mais ênfase, um consumo exagerado e uma clara preferência por corpos de aparência jovem, atrelando esse corpo a expectativas de felicidade e sucesso (LOPES; MENDONÇA, 2016). Dessa forma, a partir da obra cinematográfica “A Substância” é possível traçar um paralelo claro com a realidade experienciada por mulheres que já não se encontram no perfil jovem cultuado pela sociedade atual e que, por isso, assim como a personagem Elisabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, acabam recorrendo às mais diversas e invasivas alternativas que revelam uma fuga experiencial, com o objetivo de se distanciar das dolorosas consequências de envelhecer em uma sociedade que descarta a utilidade e a beleza desses corpos.
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De maneira subversiva ou, até mesmo, grotesca, o filme traz à tona muitas características da sociedade atual que exalam etarismo, misoginia, gordofobia e racismo e, infelizmente, modelam os pensamentos que determinam as ações da população. A obra consegue atravessar moralmente o público telespectador, colocando em cheque seus ideais, a partir da apresentação e do questionamento de ações que fazem parte do cotidiano da população de forma metafórica e caricatural. Através do body horror, subgênero do terror que se concentra na deformação, destruição ou transformação do corpo, o filme questiona a utilização exacerbada de produtos estéticos ou até mesmo a recorrência a cirurgias estéticas com o intuito de se assemelhar ao corpo de padrão jovem, magro e branco, mas que, muitas vezes, acarretam em consequências devastadoras, que no filme se traduzem na completa descaracterização da personagem, como se a obsessão estética nos transformasse em uma “aberração” devido aos exageros adotados (GRECCO, 2024).
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Além disso, um ponto relevante a ser discutido refere-se a como, em nossa sociedade, aquilo que foge do ideal estético socialmente aceito tende a ser compreendido como patológico. Nesse contexto, procedimentos estéticos tornam-se objetos de julgamento somente se resultam em um “insucesso”, sendo vistos como um problema de saúde a ser tratado e exigindo a busca por acompanhamento profissional (SCHERER et al, 2017). No entanto, por outro lado, quando atingem o resultado esperado, aproximar-se de características que remetem à jovialidade, são aplaudidos e reforçados como práticas desejáveis, nesse sentido, ocorre a normalização de intervenções estéticas como requisito para pertencimento social. Esse processo de normalização ocorre de maneira precoce, especialmente entre os jovens, consolidando um padrão de beleza no qual ser mais jovem, magro e “fisicamente atraente” representa maior aceitação social. Em outras palavras, exageros que não deveriam ser considerados “normais” passam a ser naturalizados desde que correspondam ao ideal de beleza vigente. Assim, de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), o Brasil destacou-se, em 2013, como o país que mais realizou cirurgias plásticas no mundo e como o segundo em número de procedimentos estéticos não cirúrgicos, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Nesse cenário, a satisfação ou insatisfação com os resultados obtidos constitui fator determinante para a continuidade dessas práticas, reforçando o ciclo de dependência estética e causando transtornos mentais.
Durante a trama, o filme conversa com as repercussões, advindas da pressão estética, no mercado de trabalho, que promovem violências constituídas a partir do etarismo e do capacitismo. Nesse sentido, quando nos voltamos para a realidade contemporânea nos deparamos com dados de uma pesquisa realizada pela Vagas.com, Colettivo e Talento Sênior, onde 1 a cada 4 profissionais já foram demitidos por conta da idade. Além disso, de acordo com o levantamento, 24% dos trabalhadores perderam seus empregos por serem considerados mais velhos. Em consonância a isso, o filme mostra de forma crítica, ainda no início, quando a personagem Elisabeth Sparkle é demitida por a considerarem inadequada devido a sua idade, ressaltando o quanto a idade tem sido interligada com a capacidade de desenvolver um bom serviço. Esse aspecto torna-se ainda mais evidente nas críticas veiculadas nas redes sociais após a cerimônia do Oscar de 2025, quando Fernanda Torres e Demi Moore, protagonistas do filme A Substância, foram preteridas na categoria de “Melhor Atriz”, cujo prêmio foi concedido a Mikey Madison, intérprete principal de Anora. Conforme destacou o portal G1 (2025), tal resultado reforça a crítica central de A Substância, ao evidenciar que a indústria tende a valorizar mulheres mais jovens em detrimento de mulheres em faixas etárias mais avançadas.
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Conclui-se portanto, que as mulheres que não se encaixam no perfil jovem sofrem diversas violências devido aos preconceitos que reduzem quem são e desconsideram sua capacidade, por isso, essas mulheres recorrem às mais diversas “Substâncias” para se encaixarem no padrão estabelecido. Nesse sentido, o filme faz uma crítica à realidade, utilizando a disformia e o exagero e, com isso, evidencia como essa busca incessante pelo ideal de beleza tem nos feito perder nossa identidade, resultando em uma realidade disfuncional e catastrófica. Assim, a obra tece fortes críticas à realidade vigente, de uma forma considerada, até mesmo, impalatável, mas que convergem, de maneira clara, com o sofrimento experienciado por muitas mulheres que sobrevivem à contemporaneidade.
Referências:
A SUBSTÂNCIA. Direção: Coralie Fargeat. Produção: Coralie Fargeat, Dimitri Rassam, François Kraus, Denis Pineau-Valencienne. França: Blacksmith, Pathé, 2024. 1 filme (141 min), son., color.
G1. Um em cada quatro profissionais já foi demitido por conta da idade, mostra pesquisa. G1 – Trabalho e Carreira, 2 dez. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2022/12/02/um-em-cada-quatro-profissionais-ja-foi-demitido-por-conta-da-idade-mostra-pesquisa.ghtml. Acesso em: 3 out. 2025.
GRECCO, Natalia. A obsessão estética nos transforma em aberrações? – A SUBSTÂNCIA (2024). YouTube, 28 out. 2024. Disponível em: https://youtu.be/lT5krAYee0M. Acesso em: 01 out. 2025.
LOPES, Aline de Oliveira; MENDONÇA, Helen Rose. Vista do ser jovem, ser belo: a juventude sob holofotes na sociedade contemporânea. Revista de Ciências Humanas, v. 16, n. 2, p. 123-138, 2016.
SCHERER, Juliana Nichterwitz; ORNELL, Felipe; NARVAEZ, Joana Corrêa de Magalhães; NUNES, Rafael Ceita. Transtornos psiquiátricos na medicina estética: a importância do reconhecimento de sinais e sintomas. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, v. 32, n. 4, p. 586-593, 2017.
SOCIEDADE INTERNACIONAL DE CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA (ISAPS); SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA PLÁSTICA (SBCP). Brasil lidera ranking mundial de cirurgias plásticas; em 2013, foram 1.491.721 cirurgias no Brasil contra 1.452.356 nos EUA. O Globo, Rio de Janeiro, 29 jul. 2014. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/brasil-desbanca-os-eua-e-se-torna-1-lugar-no-ranking-mundial-de-cirurgias-plasticas-13423883. Acesso em: 3 out. 2025.
