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Fleabag: entre o luto, o desejo e a subjetividade fragmentada

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A série Fleabag, criada e protagonizada por Phoebe Waller-Bridge, vai muito além de uma comédia dramática sobre uma mulher jovem e desajustada vivendo em Londres. Por meio de um humor ácido, confissões abruptas e o uso engenhoso da quebra da quarta parede, a narrativa escava temas densos como luto, desejo, culpa e identidade. O resultado é um retrato cru e multifacetado de uma subjetividade em ruínas, mas que também em permanente reconstrução.

Apesar de se estruturar como uma comédia dramática, Fleabag ultrapassa os limites do gênero ao se tornar uma espécie de estudo de caso de alguém que apresenta estar prestes a um colapso. Desde o primeiro episódio, a protagonista se dirige diretamente ao espectador, criando uma espécie de “espelho” que funciona como resistência. Esse recurso, que à primeira vista pode parecer um truque narrativo, revela-se, com o passar dos episódios, como um mecanismo de defesa, um “sujeito” que fala de si enquanto tenta se proteger de si.

Fleabag parece encenar, em seu núcleo, a tensão freudiana entre o princípio do prazer. A personagem principal, cujo nome nunca é revelado, atravessa o luto pela morte trágica da melhor amiga (Boo) enquanto se engaja em uma série de comportamentos autodestrutivos. Dessa forma, promiscuidade sexual, as mentiras cotidianas e o afastamento de vínculos afetivos, como o da irmã e o do pai, configuram uma tentativa inconsciente de lidar com a culpa e o vazio.

Freud já apontava que o luto é “a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que representava um ideal” (Freud, 1917, p. 251), e que, nesse processo, o ego é confrontado com a difícil tarefa de desligar-se libidinalmente do objeto perdido. Essa dinâmica remete também à ideia lacaniana de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (Lacan, 1957, p. 502), e a fala direta com o espectador pode ser lida como uma tentativa de nomear o que não se pode simbolizar, o trauma, a ausência, o vazio.

Um dos momentos de maior densidade emocional da série se dá na segunda temporada, com a chegada de um novo personagem, o Padre. A relação com ele instaura um novo tipo de conflito, o amor que, ao invés de ser usado como fuga, a obriga a se deparar com suas entranhas inconscientes. Ele escuta, questiona, produz silêncios e a faz refletir, uma figura que pode ser interpretada como a de um analista.

Lacan afirmava que “amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer” (Lacan, 1958, p. 196), e essa afirmação parece atravessar toda a relação entre Fleabag e o padre. O amor, nesse contexto, é falho, incompleto e é justamente nessa incompletude que a subjetividade pode se rearranjar. A impossibilidade desse amor se concretizar pelo voto de celibato do padre, mas também pela condição ainda fragmentada da própria Fleabag funciona como metáfora do impossível na ordem do desejo.

Ao se despedir do espectador na cena final, Fleabag rompe com a dependência de um outro que antes sustentava sua narrativa e validava sua existência. Esse gesto marca a transição de alguém que não se colocava no lugar de sujeito e, por isso, delegava ao outro a responsabilidade por sua dor, para alguém que passa a assumir seu desejo e suas escolhas. A câmera, que antes era confidente, torna-se desnecessária. Como na psicanálise, o fim do tratamento não é o fim da dor, mas o início de uma nova posição subjetiva diante dela. O sintoma, antes escancarado em cada confissão cômica, começa a dar lugar a uma nova forma de relação consigo mesma e com o mundo.

Referências

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: Obras completas. v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: Obras completas. v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Título original: Fleabag

Criadora, roteirista e protagonista: Phoebe Waller-Bridge

País de origem: Reino Unido

Idioma original: Inglês

Gênero: Comédia dramática / Tragicomédia

Formato: Série de televisão

Número de temporadas: 2

Número de episódios: 12

Duração dos episódios: Aproximadamente 23–28 minutos

Distribuição: Amazon Prime

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