Um divã para dois: um toque sutil para olhos que querem ver e corpos que não querem se perder

Sueli Cury – suelicury@gmail.com

Fonte: AdoroCinema

Cinema, a fantástica simbiose do enredo para com o imaginário dos espectadores.  Estes, com certeza, inserem-se nas teias da estória e tornam-se parte dessa ficção, e, não muito raro, descobrem não ser tanta ficção assim, os reflexos da tela está mais próximo do “eu de mim” do que possa imaginar. Toda essa fabulação é parte da vida de quem delícia-se da arte do cinema, tal qual as palavras de Ingmar Bergman

“Cinema é como um sonho, como uma música. Nenhuma arte perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz; vai diretamente até nossos sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos escuros de nossa alma.” 

Assim, a psicologia e o cinema se afinam. No filme, um divã para dois, cujo enredo versa sobre uma relação terapêutica, sexualidade, conflito familiar, relações afetivas, familiares, desejos reprimidos e terapia de casal. Retrata o cotidiano de Kay -Meryl Streep (cônjuge virago) e Arnold Soames- Tommy Lee Jones (cônjuge varão), os quais estão em uma relação matrimonial há 30 (trinta) anos. Relação esta, em que os espectadores, vejam- na como um espelho, seja para os casais mais atentos ou, mais perceptível e identificadas pelo público feminino, coadunando perfeitamente, dentro do contexto psicossocial, à frase inversamente à original: qualquer semelhança, não é mera coincidência

Fonte: AdoroCinema

Como era praxe, em tempos pretéritos, não tão pretéritos assim, Kay, após consorciar-se, dedicou-se à família, abandonou o seu eu ideal para vislumbrar o futuro dos “outros eus”, seus tutelados, temendo o julgamento (complexo paterno), tanto o seu, quanto ao familiar e ao social. Sendo esposa e mãe exemplar, escutava-se para superar o medo da lei do outro.

Após o casamento dos filhos, Kay, sem as responsabilidades de outrora, sente a falta de diálogo e, concomitantemente, a falta de cumplicidade entre o casal. Apesar de estar experienciando a Síndrome do ninho vazio, caracterizado por quadro depressivo ao lidar com a ausência dos filhos. Contudo, Kay, sente-o às “avessas”, como se ela dissesse: filhos criados! Vida, cá estou eu! Ela sente falta de sua identidade e começa, então, a sair em busca de seu resgate. Perceber-se como mulher, bem como, que seu casamento está de mal a pior, seu desejo é reinventar-se e (re)encontrar-se. Onde, quando e como ela se perdeu dentro da geografia doméstica e familiar? 

Nessa busca de seu (re)encontro, ela também (re)descobre a mulher adormecida, eivada de desejos sensuais e sexuais. Quer recuperar e (re)acender a paixão de quando consorciou -se, quando então, vislumbra dias melhores com a terapia de casais, sob a assistência de um especialista no assunto. 

Enquanto Kay, outra tarefa pontuada pelo público feminino, tenta recuperar o casamento e (re)acender a paixão que os uniu, Arnold,  mantém-se em um estado de introjeção e resistência, travando um duelo interior no campo da verdade, o desejo humano x campo da autoridade, quedar-se aos encantos desejados de Kay, estava fora de cogitação, seria o mesmo que dizer: “ onde já se viu dois idosos se envolverem sexualmente, como dois jovens depois de 30 anos?  

Arnold, apresentava a estagnação do registro imaginário do seu eu, paralisado em questionar-se. Contudo, Kay não desiste de seu intento e Arnold acaba cedendo. O Dr. Feld (Steve Carell) o terapeuta, em uma tarefa hercúlea, atuando como um detetive psicológico, querendo desvendar os mistérios dos recônditos das almas desse casal, ou seja, com um olhar reducionista sobre as causas do afastamento, procura instigar as memórias onde o desejo era crível.

Na cena que apresenta a segunda sessão de terapia, é a cena mais emblemática do filme, nela revela-se resistência do esposo a ceder e procurar ajuda. Norteia-se quão distante está o casal. Perceptível a ausência de diálogo entre os cônjuges, haja vista, iniciam uma narrativa tímida e discreta de como se conheceram, depois, sobre o noivado encadeando o passado e, em seguida, falam sobre as questões sexuais. Neste último, o tempo entumece, estão desconfortáveis ao falar do e no assunto. 

Arnold busca evitar o desprazer, isto é, evita e irrita-se às evidências de quaisquer eventos que venham a despertar o que fora recalcado. A proposta do terapeuta é oposta a Arnold, Feld, quer que o casal resgate suas memórias prazerosas e tragam -as para o consciente e deixá-las fluir naturalmente. 

Arnold não se incomoda com a situação, sua estagnação é visível, não se importa ou valora o que a esposa sente ou pensa. Quando do exercício do tocarem-se, evita essas preliminares. Em suas crenças limitantes, ceder seria o mesmo que fraquejar como homem. O medo do julgamento do outro. 

Aparentemente apresentando características neuróticas, ao ser tocado, ele não a toca. Seu corpo está inerte, pulsos cerrados. Todavia, seu ego o trai, o prazer flui, mas, pede abruptamente que ela pare, o medo do julgamento suplantar o desejo. A Raiva que ora diz sentir, é exatamente o medo do SENTIR e, de se jogar, entregar-se aos sentimentos de outrora. Em seu monólogo interior, sua rigidez comportamental, demonstra o apego em não querer abandonar a transferência herdada de seus familiares, seria o mesmo que enfraquecer a linhagem hereditária.

Fonte: AdoroCinema

Notório o sintoma da insatisfação em Kay, os sentimentos dela estão em erupção, contrapondo a resistência de Arnold, ele repudia e desqualifica qualquer assunto que versa sobre a relação marital. Para ele, tudo está perfeito, para quê investir energia em algo que já está agradável? Somente ela está realmente determinada nesse resgate, dificultando sobremaneira o processo terapêutico. 

O interesse mútuo facilita uma colheita proficiente, uma vez que a psicanálise cuida do investimento, da reconstrução dos liames subjetivos do sentimento que encontra -se desalinhado por falta de ser alimentado, mas, que está apenas adormecido. Porém, para reconstruir, faz-se necessário desconstruir e, não raro, essa desconstrução causa sofrimento ao trazer à baila, sentimentos, desejos reprimidos e (re)encontros com seus medos.

O terapeuta, usando a ferramenta da associação livre, esteve atento também às linguagens não verbais, elas estão carregadas de informações sobre os pacientes, tais como os olhares, tanto de reprovação quanto de satisfação entre eles. Ateve-se tanto à transferência quanto à contratransferência. Observou o distanciamento entre eles no sofá, quando caminham lado a lado e pelo fato de dormirem em quartos separados. O silêncio também fora seu alvo, pois este, também estava repleto de significado e significante, um agente revelador para o terapeuta, um coadjuvante na construção do processo terapêutico.  

A partir dessa premissa, quando notava dificuldades na execução das tarefas, o terapeuta, já selado o vínculo de confiança e empatia para com os cônjuges, determinantes que facilitaram a promoção da terapia, flexibilizava-as, facilitando aos pacientes expressarem suas emoções durante as atividades, faz uso de metáforas tal qual a do nariz quebrado, não se quebra o nariz aos pouco,  pois, o casal estava diante de situações dolorosas, desconstruir algumas e (re)inventar outras.     

Na devolutiva, o terapeuta percebendo que ainda havia potencial para o casal melhorar a qualidade de vida conjugal, orientou-os a continuarem com a terapia de casal quando retornassem para casa. 

REFERÊNCIAS

Artigo- Uma Leitura Psicanalítica do Laço Conjugal- Lídia Levy de Alvarenga. 

Albangela C. Machado fala sobre a psicanálise no tratamento de casais.

Bate-papo | “Psicanálise de Casal e Família”, de Rosely Pennacchi e Sonia Thorstensen

Filme “Um Divã Para Dois 2012 – Comédia Romântica”. Youtube.1.abr de 2020. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=UnTuyt_JA3Q&ab_channel=MikaelGuntherFilmes>.Acesso em 31março de 2023.

FICHA TÉCNICA DO FILME

FILME:Um Divã para Dois- Hope Springs 

DIREÇÃO:David Frankel

ROTEIRO:Vanessa Taylor

ELENCO:Meryl Streep, Steve Carell, Tommy Lee Jones, Jean Smart, Marin Ireland, en Rappaport, Susan Misner, Daniel Flaherty, Patch Darragh, Anita Storr, Lee Cunningham, John Franchi, Elisabeth Shue.