(En)Cena – A Saúde Mental em Movimento

A necessidade de flexibilidade e mudanças de paradigmas na construção de uma vida melhor: Um diálogo com Ailton Krenak

Fonte: Rovena Rosa/Agência Brasil

Pensar no fim do mundo hoje não é uma realidade distante, basta abrir qualquer rede social, ver um jornal, ou sair de dentro de casa. São crises ambientais, guerras, violências desmedidas, consumismo desenfreado dos recursos naturais e daria para listar outros milhares de fenômenos que podem acabar com nossa existência. Todos provocados ou intensificados por nós, humanos. Soma-se a esse cenário caótico uma população extremamente adoecida, fruto desse modo de viver criado por nossa “civilização”, que alimenta a mentira de que “precisamos” de mil e um apetrechos para sobreviver. Nos afastamos das nossas origens, tomamos a natureza como objeto e até a nós mesmos. Tudo que produzimos vira comércio. Nessa perspectiva, esse trecho do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo de Ailton Krenak traz a seguinte reflexão: 

“Acabaram os cientistas. Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria. Antes de essa pessoa contribuir, em qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro a essa nossa ansiedade de perder o seio da mãe, vem logo um aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente”, (Krenak, 2020, p.31). 

Ailton Krenak / Fonte: Fliparacatu-Divulgação

Ao ler este trecho, eu me senti descobrindo ouro. Estamos tão submersos em fazer da nossa vida pura mercadoria a serviço do capitalismo neoliberal, que a universidade serve ao mercado da profissão e não ao desenvolvimento intelectual, o conhecimento se tornou mero objeto, não se usa mais ciência para se descobrir mundos, trata-se de como desempenhar melhor, de estatísticas, de rotular, padronizar, embalar e vender tudo, então perde-se aí uma grande oportunidade de redirecionar a busca de conhecimento, o fazer da ciência  uma modificação de paradigmas, para uma mudança significativa de estruturas, como uma ferramenta revolucionária e não para fazer mais do mesmo : aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente”. E sobre esse pensamento de Krenak quero destacar dois pontos: o primeiro é que ele invoca o fato que essa mesma ciência pode ser usada para salvar o ser humano do caos instaurado na humanidade advindo desse modelo de vida no qual estamos submersos, dessa pandemia de adoecimento mental, dessa catástrofe ambiental, e da pobreza de espírito, seria a hora de usar nossa capacidade criativa, nossos conhecimentos ancestrais para criar novas formas de vida “para abrir uma janela de respiro”. E o segundo é a crítica a esse modo de vida em que tudo se torna commodity, até expressões da alma como: Arte, música, dança, e a espiritualidade que tornam-se mercadorias pois: “Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria”.

Penso aqui que flexibilidade seria uma ferramenta indispensável numa mudança a nível de mundo, onde vivemos com padrões tão altos e fixados em papéis tão rígidos. O primeiro e mais nocivo dos papéis tendo a dizer que é um pensamento estabelecido no inconsciente coletivo de que todos estamos fazendo ou precisamos fazer algo grandioso, com performances de desempenhos inalcançáveis ditadas pelo neoliberalismo, que só gera sofrimento e adoecimento, e são incansavelmente potencializadas pelas redes sociais e seu imediatismo pois: “…ela pode nos induzir a uma grande ilusão de resultados, de eficácia. Você se dedica a esse ambiente por horas a fio e acho que está movendo alguma coisa, mas na verdade podemos ficar ali a vida inteira e não mover nada.” (Krenak, 2020, p.49), tendo essa fala  como gancho já engato uma segundo ponto que é a ideia que coloca o homem com  funcionamentos para além de sua capacidade física e mental ,vivemos o maior tempo de aceleramento da história, que gera adoecimento em massa, depressão, ansiedade e um excesso de patologização do comum, pois também é uma era que banaliza, exclui e ridiculariza qualquer vestígio mínimo de humanidade, já dizia Byung:

“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de  desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos de obediência’, mas ‘sujeitos de desempenho e produção’. São empresários de si mesmos, no lugar de ‘proibição’, ‘mandamento’ ou ‘lei’, então ‘projeto’ ou ‘iniciativa’ é ‘motivação’. A sociedade disciplinar é dominada pelo ‘não’. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, pelo contrário, gera depressivos e fracassados.”, (Byung-Chul Han, 2015).

E quando nos propomos a viver como máquinas de desempenho, o homem coloniza até sua condição humana, nesse trecho do livro “A terra dá, a terra quer”, traz um bom desenho de que :  “Contudo, não são todos os animais que conseguimos adestrar. Alguns ficam atrofiados fisicamente – quando se exige do animal um esforço físico para além do que é capaz. Outros ficam atrofiados mentalmente – quando o animal recebe um choque mental violento” (Bispo, 2023, p.7). Então ao exigir do ser humano que física e mentalmente consiga dar conta de toda essa insanidade moderna, é igual a insistir em um colapso de ambas as esferas, não é à toa que vivemos essa epidemia de mentes e corpos atrofiados, vivendo dia após dia como autômatos.

Por fim é necessário ressaltar o papel mais destrutivo o da individualização, em que nos separamos da terra e uns dos outros, nos colocando como únicos responsáveis pela nossa própria existência e bem estar, algo que resulta numa  lógica de auto culpabilização e sentimentos de fracassos pois já sabemos que os níveis onde se deve chegar  tornam-se inalcançáveis, mas a maior sandice da história é o ser humano comprar essa mentira ,pois nós somos sociáveis desde o ventre, não temos capacidades de existirmos sem o contato com o outro, e essa mentira de auto suficiência, de sermos superiores a todas as espécies só resultou no sucateamento, e destruição do maior órgão vivo, o nosso planeta, onde cada ecossistema necessita do outro para manter sua existência, assim retratando nossa realidade, e diria que até superficialmente, pois as questões que aqui trouxe não engloba todo o problema, e nessa perspectiva é que penso, Como mudar essa realidade? o que traria luz a esse túnel escuro?, se não uma flexibilidade, uma nova forma de olhar a nossa existência, questionar os roteiros frouxos, não se contentar em aceitar essa como única condição de vida, é ousar novas formas de viver, é criar novos mundos, ou até povoar velhos mundo com a sabedoria de nossos ancestrais, de forma simples e objetiva Krenak contribui com seu pensamento: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar. (Krenak, 2020, p. 57)”. 

Espantosamente brilhante essa sugestão de que se esse modelo de existir está sufocante, por que não pensar em um outro? Por que só aceitar? Por que não ir contra essa rigidez de pensamento de que só devemos aceitar, e seguir a maré? O nosso saudoso Nego Bispo que hoje já ancestralizou, contribuiu com seu pensamento otimista, que é necessário confluências: “um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluência, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente” (Bispo, 2023, p.9). É na retomada do contato com o outro que podemos criar e fortalecer uma nova forma de existência, é no contato com o outro que nos transformamos em outro alguém, um contato genuíno e real que desafie os formatos de relações líquidas que nossa sociedade atravessa, e é assim que criaremos novos contextos e escreveremos uma história possível, da qual não sairemos destruídos, evocando mundos diversos que se implodem na existência com o outro, assim Nego Bispo através de um diálogo com Krenak, traz a fala: “procura animar uma perspectiva em que as confluências não dão conta de tudo, mas abrem possibilidade para outros mundos”. (Krenak ,2020, p. 42) e assim tomo de empréstimo a sabedoria ancestral de Nego bispo em: A terra dá, a terra quer:

“Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a 3 confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização… e assim por diante. (Bispo, 2023, p. ). 

Nego Bispo / Fonte: Brasil de Fato

Aqui ele traz de forma genial em sua fala simples, a possibilidade de repovoarmos nossos imaginários, para a sociedade do desempenho o descanso, para o individualismo o coletivismo, para o fim do mundo um recomeço, pois não existe fim na perspectiva de Antônio Bispo dos Santos:

 

“Nós, caminhando pelos penhascos,

atingimos o equilíbrio das planícies.

Nós, nadando contra as marés,

atingimos a força dos mares.

Nós, edificando nos lamaçais,

atingimos a firmeza dos lajeiros.

Nós, habitando nos rincões,

atingimos a proximidade da redondeza.

Nós somos o começo, o meio e o começo.

Existiremos sempre,

sorrindo nas tristezas

para festejar a vinda das alegrias.

Nossas trajetórias nos movem,

Nossa ancestralidade nos guia.”

(Antônio Bispo dos Santos).

Referências 

BISPO, Antônio. A Terra dá, a terra quer. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2019. 

BYUNG-CHUL HAN. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015. 

KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2022. 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2019. 

(Sem autor definido). Redes da Maré. Somos começo, meio e começo – um até breve a Nêgo Bispo. Rio de Janeiro,2023. Disponível em: <link>.

 

 

 

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