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Diagnóstico e Classificação em Psiquiatria: uma travessia

Em minha iniciação no campo da saúde mental de forma mais intensa este ano, na figura de médico residente em psiquiatria, sinto-me compelido a tecer algumas considerações sobre esta temática nebulosa e essencial que é o debate com relação ao diagnóstico e as classificações empreitados na clínica psiquiátrica, árdua tarefa que visa efetivar uma prática médica consistente e engajada com a vida.

A divergência nesta área é indubitável, facilmente observável quando se nota o reinado de duas grandes classificações (a CID 10 e o DSM IV que será transmutado em DSM 5 este ano) no trono dos esforços imperiais de abranger toda a vastidão e complexidade que emanam dos esforços da compreensão humana frente aos transtornos mentais.

 

Para que serve um diagnóstico? Para muitas coisas. Além de ser uma atividade cognitiva de investigação, discriminação e reconhecimento das condições mórbidas de um sujeito histórico e cultural numa determinada temporalidade (Banzato & Pereira, 2008), o diagnóstico pode também se reduzir a finalidade de um processo investigativo, a uma nomeação ou, em última análise, a um rótulo. Pior do que um “eu-etiqueta”, o diagnóstico pode tornar-se um modismo que impregna a riqueza das expressões humanas de ridículas simplificações, como tem-se visto corriqueiramente nos estados de tristeza que são encarados como episódios de depressão e os sofredores do “Mal da bipolaridade”.

Particularmente à psiquiatria, o diagnóstico traz por si alguns constrangimentos: tem seus limites borrados, tem repercussões além da corporeidade por incidir em agentes corporificados que resistem às apreensões categóricas pré-determinadas. E, por conseguinte, é fonte interminável de novos processos interpretativos e intersubjetivos. Ou seja, um retrato que não é estático!

Portanto, o diagnóstico psiquiátrico traz consigo uma zona de tensão, em que as diversas fronteiras que alinhavam a tessitura humana se colocam nuas e cruas: sua constituição biológica, suas influências morais, históricas e culturais; os desejos e as sensações; a interpretação e a intersubjetividade dos fenômenos envolvidos na compreensão do pathos. (Canguilhem, 1943)

Trocando em miúdos: a busca de um diagnóstico não é neutra. O modo como esta ferramenta é implementada na Clínica balizará uma série de interesses e intencionalidades, variando em escalas espectrais onde os pólos extremos do “ode ao cérebro” ou do “ode à mente” (Eisenberg, 2000) digladiam entre si em uma posição dialética que gestará compreensões mais ou menos reducionistas destinadas à compreensão da densidade do sofrimento psíquico.

Cabe ressaltar também a relação entre o diagnóstico e os sistemas classificatórios. Nesta interlocução carece de se dar ênfase ao fato de que as classificações devem ser subservientes ao diagnóstico (Banzato & Pereira, 2008). Do contrário, nós, clínicos, nos tornaremos reféns de nossos próprios instrumentos, ou pior, meros “copiadores” como dizia Estamira, no sentido de que toda a clínica perde sua potência e sua “ética dos encontros” ao se limitar ao enquadramento em critérios rígidos e intensamente reificados que perdem o status quo de representações e se empombam na figura de verdades indubitáveis.

Dito isto, cabe apontar que a classificação que funcionalmente visa diferir características mórbidas e dar subsídios mínimos para gerar critérios diagnósticos numa tentativa aproximativa de garantir ao transtorno mental uma roupagem próxima a de uma doença-entidade, tal como ocorre nas demais áreas médicas. Embora o aspecto arbitrário seja evidente na definição de entidades classificatórias, o reconhecimento de alguns padrões podem trazer alguns ganhos, sobretudo no que tange às estratégias terapêuticas e às avaliações prognósticas. Porém, é necessário sublinhar que os modelos classificatórios vigentes (CID 10 e o neo-DSM, o quinto) são ferramentas essencialistas, predominantemente empíricas e fundamentalmente politéticas, uma nova “Babel”, que permite ambivalências que migram das visões estigmatizantes das elaborações diagnósticas à banalização e aos modismos de alguns diagnósticos psiquiátricos da atualidade. (Banzato & Pereira, 2008)

Em síntese, os diagnósticos dos transtornos psiquiátricos bem como os esforços científicos hercúleos canalizados ao nascimento de modelos classificatórios a eles destinados mostram oquanto esta prática social é parecida com o sertão roseano: ao se adentrar à caatinga, às rotas tortuosas e espinhentas do sertão, o primordial não é a chegada (o diagnóstico nosológico, a “doença-entidade”) nem a saída (o enquadramento classificatório), mas a travessia que se dá a cada encontro com o paciente, no processo de escuta, que transborda as margens que o cerceiam.

Referências:

Banzato CEM & Costa, MEC. Diagnóstico psiquiátrico. Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM-UNICAMP 2008. Capítulo de livro no prelo. p. 1-20.

Banzato CEM. Classification in psychiatry: the move towards ICD-11 and DSM-V. Current Opinion in Psychiatry 2004; 17(6): 497-591.

Banzato CEM & Pereira MEC. Eyes and years wide open: values in the clinical setting. World Psychiatry 2005; 4(2): 90-91.

Canguilhem G. O Normal e o Patológico (1943). Tradução de Maria Thereza RG Barrocas. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

Eisenberg L. Is psychiatry more mindful or brainier than it was a decade ago? British Journal of Psychiatry 2000; 176: 1-5.

Fulford KWM. ‘What is (mental) disease?’: an open letter to Christopher Boorse. Journalof Medical Ethics 2001; 27: 80-85.

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