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Educação interculturalidade: limites e possibilidades na contemporaneidade

Este artigo analisa a formação do ser humano através da educação formal e informal bem como através da cultura e por que não dizer pela privação cultural que impede esta construção. A partir das reflexões teóricas e metodológicas apresentadas nos textos como referenciais para discussão, a construção da humanidade da autora Maria Helena Pires Martins e a profissão docente e o cuidado com a vida do autor A.J, Severino, dentre outros autores correlatos, analisamos as seguintes questões, o papel da cultura e educação na constituição da humanidade, o que é a educação como cultura e a docência como profissão do cuidado.

O problema que norteia este estudo é: Quais são os limites e possibilidades do ser humano na educação intercultural? O objetivo do trabalho é verificar quais são os limites e possibilidades enfrentados pelos sujeitos no que diz respeito à educação e a interculturalidade. A análise da questão proposta se também se apoia nos argumentos de Benevides (2000) que destaca a importância da formação de uma cultura de respeito à dignidade humana e Candau (2008) que evidencia interculturalidade como educação para o reconhecimento do outro e para o diálogo entre os grupos sociais e culturais. Para Candau (2008) não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa. Não se pode conceber uma experiência pedagógica desvinculada das questões culturais da sociedade.

É notável o pensamento da autora quando coloca como condição de ensino a pedagogia que envolva a educação intercultural onde seja abordado situações típicas empíricas que de fato sejam vivenciadas pela sociedade e estudantes.

Nesse aspecto fazendo uma analogia do ser humano a um metal precioso, seja o diamante ou mesmo o ferro, sabemos que precisam ser forjados ou moldados, pois nascem na natureza brutos, imperfeitos e inacabados. O diamante é lapidado, polido, lixado e até mesmo escovado nas diversas formas para chegar ao brilho reluzente.  Quanto ao ferro é forjado na água e fogo para se tornar um produto de utilidade, e o ser humano é constituído no decorrer do seu desenvolvimento biológico, genético, físico, intelectual, emocional pelos processos da educação, cultura e a   herança de seus pais, que podem ou não influenciar na construção enquanto indivíduo.

Fonte: encurtador.com.br/anxNU

Dentro deste contexto, o ser humano vai se formando via educação, começando com a primeira instituição transmissora a família, depois escola e igreja, que gradativamente vão entrelaçando com a cultura já existente ao redor desde individuo e com a cultura que passa a ser construída por ele de acordo com a recepção interior de todos os fenômenos (a arte, a música, a liberdade e outros). Neste sentido a cultura é transmitida, repassada, construída e geradora de conhecimentos que são reforçados ou não   na educação.  Aqui fazemos referência a Paulo Freire citado no artigo, que nos mostra os tipos fundamentais de educação, a conhecida educação bancária que vigora como soberana no trono da formação humana e a educação libertadora ou libertária, que é forjada via lutas incansáveis das minorias no decorrer da nossa história. Neste emaranhado, educação e cultura se fundem, ambas estão e se fazem presentes do nascer ao morrer do ser humano, molda de acordo com o ambiente, com a educação formal ou não formal, de acordo com a concepção daqueles que formam o indivíduo e de acordo com a cultura apreendida.

Nesta relação de construção do ser humano e da humanidade, cultura e educação desempenham papeis de relevância, pois podem construir indivíduos capazes, autônomos, livres, feliz e realizados como também indivíduos presos aos cárceres que a própria vida impõe. Neste sentido a escola, local mais organizado para transmissão da cultura e da educação, tem um papel fundamental, e deveria ser espaço onde cultura e educação estivessem  a serviço de uma formação mais humana, justa, igualitária, sensível, promotora principalmente da cultura da paz em todos os sentidos, da cultura da felicidade e bem estar, e não espaço de manutenção das classes no poder, das desigualdade, injustiças, fracassos e principalmente infelicidades e inferioridade muitas vezes provocadas  pela descriminação e  privação da educação e cultura.

Mencionando aqui a espécie dos mamíferos, sabemos que o homem é o animal mais dependente do outro homem, do nascer ao morrer, em vários momentos da existência o homem precisa do seu semelhante, e hoje vivemos um momento delicado, difícil, sofrido e porque não dizer momento de aprendizagem. Neste tempo de pandemia, de covid-19 a vida nos revelou que somos todos iguais, neste agora tanto faz quem você é, ou que você tem, todos estamos passiveis de morrer e necessitamos dos mesmos cuidados, embora saibamos que ainda existem algumas diferenças veladas.

Fonte: encurtador.com.br/quGI9

Presenciamos rupturas de comportamentos, mudanças de hábitos, reinvenção das diversas profissões, evolução na ciência na produção de medicamentos e vacinas, mudanças na educação, nas formas de comunicação e no uso das tecnologias. Uma nova cultura digital surgiu que mexeu com as estruturas dos analógicos (como nós), com o mercado e outras estruturas. A escola rompeu barreiras até então “esquecidas” e “desvalorizadas” nas suas propostas pedagógicas. E o professor viu-se obrigado a se reinventar, superar obstáculos, buscar a criatividade e inovação e principalmente deixar de ser o centro do ensino e aprendizagem. Revelou-se também, que nossa educação está precária, que a formação de nossos educadores não corresponde as novas exigências do momento inusitado que vivemos. O período mostrou inúmeras desigualdades na educação, na formação dos professores, nas propostas pedagógicas, nos investimentos privados e públicos para atender a uma demanda urgente de não deixar a educação a beira do caminho, visto que  muitos setores buscaram novas formas de caminhar, mas o que mais chamou a atenção foi o descompromisso por parte dos poderes públicos com educação e cultura de um povo e uma nação.

DESENVOLVIMENTO

É inegável que existe uma fragilidade no olhar da sociedade sobre o diferente e que esse olhar se reflete na maioria das vezes de forma preconceituosa e exclusiva culminando em pensamentos e comportamentos que não condizem com práticas inclusivas em nossa sociedade. Candau (2012) apud Pierucci, no seu instigante livro Ciladas da diferença (1999), assim sintetiza esta tensão:

Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo que a resposta se abrigava segura de si no primeiro termo da disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta se deslocou. A começar da segunda metade dos anos 70, passamos a nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se, em ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os humanos, somos diferentes de fato (…) , mas somos também diferentes de direito. É o chamado “direito à diferença”, o direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente. The right to be diff erent!, como se diz em inglês, o direito à diferença. Não queremos mais a igualdade, parece. Ou a queremos menos, motiva-nos muito mais, em nossa conduta, em nossas expectativas de futuro e projetos de vida compartilhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes uns dos outros. (Pierucci, 1999, p. 7)

De acordo com os autores não é sobre estigmatizar, mas sobre repensar a questão do ser diferente e ser igual. Outrora essa luta era muito apoiada no sentido de que todos éramos iguais, hoje o pilar se centra sobre ser diferente sendo reconhecido por suas especificidades na sociedade.

Fonte: Rádio Castrense – Semana da interculturalidade começa hoje em todo o país.

Educação intercultural é um assunto bastante complexo quando se trata de uma sociedade que até pouco tempo atrás escravizava pessoas como se a abolição da escravatura não existisse, que segregava alunos dentro de classe de aula por causa de suas diferenças. Partindo deste raciocínio podemos refletir nos passos do processo da educação intercultural. É fato que no continente latino-americano está em desenvolvimento a educação intercultural, mas ainda enfrenta vários entraves principalmente no que diz respeito ao entendimento, visão e percepção da sociedade em si. A escola entra com um papel fundamental de falar e ensinar sobre novas maneiras de ver, entender e praticar o ensino transcultural. Esse manejo se dá quando o educador tem sua didática pautada na transdisciplinaridade onde se percebe o próximo como parte de um todo com uma visão que contempla o antes, o durante e o depois. Essa contemplação permite o desenvolvimento amplo sem amarras dentro do plano de ensino escolar. É urgente uma reforma do pensamento em todos e principalmente nos educadores!

Para Edgar Morin (1995) pensar no ser humano é não desprezar jamais sua capacidade cognitiva, seu interior é jamais reduzi-lo.  Morin (2011a) Por meio da epistemologia da complexidade, conclama: “Reformai-vos”! Reorganizai-vos!” Nota-se que o autor versa sobre sensibilidade, sobre intuição, sobre interior. Para ele, “o ser é sempre uma organização ativa, produto de interações.”

Hoje inclusão social requer todas essas características complexas que se refere o autor, requer mudança de pensamentos, mudança de atitude, reorganização, requer enação! Enação do grego que quer dizer “fazer emergir”.

 Varela (1991), escreveu sobre enação e dizia que o mundo mostra-se pela enação de regularidades perceptivas motoras. “Cognição, como enação, sugere o fazer emergir mediante manipulação concreta”.  Varela (1996:18) Para esse autor (1997) “o mundo emerge a partir da relação com o sujeito que o observa.” Exemplificando, é como o ovo e a galinha, que estão mutualmente implicados, ambos estão co-determinados e correlacionados.

Todo esse pensamento de enação do mundo com relação ao sujeito, faz analogia com o processo social inclusivo e com a ontologia complexa, onde segundo a autora Maria Cândida Moraes:

as relações entre sujeito/objeto, ser/realidade, são de natureza complexa, portanto, inseparáveis entre si, pois o sujeito traz consigo a realidade que tenta objetivar. É um sujeito, um ser humano que não fragmenta a realidade que o cerca, que não descontextualiza o conhecimento”. Um sujeito multidimensional, com todas as suas estrutruras  perceptivas e lógicas, como também sociais e culturais à disposição de seu processo de construção de conhecimento, já que a realidade não existe separada do ser humano, de sua lógica, de ua cultura e da sociedade em que vive”                                                  

Nessa perspectiva de Morais, em um processo análogo, Morin trata de inclusão com um olhar complexo quando se refere ao ser humano como uma organização ativa, produto de interações, com sua dinâmica funcional decorrente dessa relação com a organização. Transcorre como produto dessa relação a garantia da autonomia e dependência, a perturbação e a quietude, a sapiência e a demência e tudo aquilo que tece a vida e sua manifestação.

 Koff (2009, p. 61), considera que, “na discussão se os termos saber e conhecimento são sinônimos ou não, podem ou não ser usados indistintamente, o mais importante é considerar a existência de diferentes saberes e conhecimentos e descartar qualquer tentativa de hierarquizá-los”. Neste sentido, a perspectiva intercultural procura estimular o diálogo entre os diferentes saberes e conhecimentos, e trabalha a tensão entre universalismo e relativismo no plano epistemológico, assumindo os conflitos que emergem deste debate.

Fonte: encurtador.com.br/hiltS

Pensando na dimensão da importância do cuidado com a vida humana e o papel da docência pois como vimos nos artigos de estudo e reflexão, a educação é forma imprescindível de cuidado com a vida, daí a necessidade e urgência da formação docente. Ressaltando que esta formação docente é de responsabilidade dos órgãos competentes, instituições de formação, das políticas públicas, e do próprio docente, que não assume de fato o compromisso com a educação do próximo. Sabemos que existem inúmeras situações que impedem o bom desempenho do docente, tais como, falta de reconhecimento, a valorização salarial, o reconhecimento da profissão, as próprias condições e estruturas de trabalho, começando por recursos simples, até o próprio espaço físico. Mas por outro lado, há também, o desinteresse por parte do docente em investir na sua própria formação pessoal, o descompromisso com seus estudos, com seu aprimoramento na área específica, o lidar pedagógico, entre eles, o preparar bem suas aulas, seu planejamento, seus recursos, sua fundamentação teórica e outras.

Cabe aqui dizer que o professor precisa de formação e se formar, não só no aspecto da dimensão do conhecimento por si só, mas em todas as dimensões que hoje sabemos que são inerentes ao cuidado com o outro. Há a necessidade de uma mudança significativa nos cursos de formação docentes, nos programas e currículos. Vivemos um tempo que exige outras áreas que agregam na formação do docente, entre elas, destaco a neurociência que tem contribuído sobremaneira com a educação. Para bem educar o docente precisa entender como o individuo aprende, como ele reage as emoções que na maioria das vezes interferem na aprendizagem. Entender sobre as múltiplas inteligências, que muitas vezes se sobressaem a inteligência cognitiva, e ressalto a importância da inteligência emocional, a ética, os direitos humanos, a diversidade cultural, a arte, a música, a inteligência sinestésica e corporal.

Como mencionado nos textos de referência, o dom(vocação) e o saber comum, que horas foram suficientes para uma determinada época, hoje já não correspondem a contemporaneidade, nem as necessidades sociais, e muito menos ao tipo de seres humanos que necessitamos para o mundo atual. Lidamos hoje nas escolas com uma geração frágil, sensível, de grande capacidade de articulação e domínio do conhecimento, mas ao mesmo tempo, individualista, egocêntrica, e instantânea, muda-se de acordo com  onda do momento. Por isso a necessidade da formação docente ampla, principalmente no que diz respeito a dimensão do cuidado, pois sabemos que em muitas situações o docente(professor) tem muito mais influência sobre o sujeito do que a própria família e/ou outra instituição.

CONCLUSÃO

Neste universo da subjetividade que constrói a humanidade, podemos afirmar que a docência é a profissão mais comprometida com o cuidado da vida humana. Percebemos que mesmo diante de um novo modelo o qual estamos vivendo agora de educar, que estabelece o distanciamento do docente e discente, deixa bem claro que nada substitui a interação humana, o convívio, a proximidade, o contato, os olhares e a sensibilidade e outras competências e habilidades que se fazem necessárias para que o docente fundamentado na ciência e técnica consiga permear e mediar a construção desta humanidade. Neste construir, o docente necessita de pré-requisito alicerçados no estudo sistemático e aprofundamento teórico que o tire do senso comum e espontaneísta para um lugar de pleno domínio das tão necessárias habilidades que se fazem necessárias para garantir com dignidade a formação humana.

A humanidade do ser humano vai se constituindo ou construindo a medida que seu ser, corpo, alma vai absorvendo, moldando seu modo de agir e pensar, influenciado pela educação, cultura, natureza, sociedade e pela mediação por parte do docente que esteja  pautada além da dimensão cientifica, técnica, mas principalmente alicerçada  na sensibilidade,  solidariedade, empatia, o respeito ao próximo, o sentido de pertença, o amor ao trabalho, a presença significativa, responsabilidade, compromisso social, senso crítico, visão política, e para finalizar a doação. Cuidar exige doação, entrega, compromisso com o outro, e estar a serviço da construção do ser humano na sua integralidade e todas as dimensões e principalmente para que seja feliz.

Para que tenhamos uma sociedade mais justa, humana e fraterna, faz-se necessário investir significativamente na formação da sociedade, na formação do docente, nas mudanças das propostas pedagógicas, nos currículos e nos modelos metodológicos atuais  que  atendem as demandas de educação intercultural.

REFERÊNCIAS

BENEVIDES, M. V. Educação em direitos humanos: de que se trata? Palestra de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São Paulo, 18 fev. 2000.

CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. Multiculturalismo: Diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

KOFF, A.M.N.S. Escolas, conhecimentos e culturas: trabalhando com projetos de investigação. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.

MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy, 1995.30

MORAES, Maria Cândida. Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinaridade e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais/ Maria Cândida Morais.- São Paulo: Antakarana/WHH – Willis Harman House, 2008.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995

Rev118_Completa16x24_01062012_Gr.fica.indd (scielo.br) apud PIERUCCI, A.F. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999

Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos — Português (Brasil) (www.gov.br) Acesso em 22-03-2022.

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