Nas últimas décadas, o consumo audiovisual global foi fortemente marcado pela centralidade da produção estadunidense. Séries, filmes e narrativas oriundas dos Estados Unidos ocuparam, por longo período, o lugar de principal referência simbólica do entretenimento mundial, estruturando imaginários, valores e formas de narrar conflitos humanos. Contudo, observa-se de maneira progressiva e consistente um deslocamento desse eixo, especialmente a partir da consolidação das plataformas de streaming, com destaque para a crescente adesão a produções sul-coreanas, como os K-dramas (doramas) e o cinema coreano. Esse fenômeno pode ser compreendido como resultado de transformações culturais, tecnológicas e subjetivas que atravessam a contemporaneidade.
Segundo Chalaby (2025), a produção audiovisual estadunidense atravessa um processo de saturação narrativa, caracterizado pela repetição de fórmulas, pela hegemonia de franquias, pela multiplicação de universos compartilhados e pela recorrência de remakes. Embora esse modelo ainda preserve força econômica e capacidade de alcance global, ele tende a produzir menor envolvimento emocional, gerando aquilo que alguns autores descrevem como uma fadiga cultural do centro hegemônico. Nesse cenário, o público passa a buscar narrativas que ofereçam sensação de novidade, sem exigir um rompimento radical com estruturas narrativas reconhecíveis.
É nesse espaço que a produção sul-coreana se insere de forma estratégica. As séries e filmes coreanos operam a partir de um regime de proximidade transnacional, conceito que descreve a capacidade de determinados produtos culturais dialogarem com públicos diversos ao articular elementos locais com temas universais (Park, 2024). Ainda que a língua, os códigos sociais e determinadas estéticas se diferenciem do padrão ocidental dominante, os conflitos envolvendo relações familiares, sofrimento psíquico, dilemas morais, amor, perda e sacrifício são amplamente reconhecíveis. Essa combinação possibilita ao espectador experimentar a alteridade sem vivenciar estranhamento excessivo, favorecendo processos de identificação.
Outro aspecto diz respeito à dimensão emocional das narrativas coreanas. Diferentemente de grande parte das produções estadunidenses contemporâneas, frequentemente marcadas pelo cinismo, pela ironia constante e por personagens emocionalmente distanciados, os doramas apostam no melodrama, na expressividade afetiva e na construção de vínculos intensos (Yoon, 2024). Em um cenário global atravessado pelo contexto pós-pandêmico e pelo aumento dos indicadores de sofrimento psíquico, essas narrativas oferecem espaços simbólicos de acolhimento emocional, identificação e elaboração do sofrimento, ao legitimar a vulnerabilidade humana e os afetos como dimensões da experiência.
As plataformas de streaming também desempenham papel importante nesse processo ao romperem com a hierarquia cultural historicamente sustentada pelo domínio estadunidense. Durante décadas, os Estados Unidos controlaram não apenas a produção, mas também a distribuição, a dublagem, a legendagem e as estratégias de marketing global. Com a consolidação das plataformas digitais, essa lógica foi desorganizada, na medida em que os algoritmos passaram a priorizar engajamento e retenção de público, e não a origem nacional do conteúdo. Nesse novo ecossistema, produções não anglófonas deixaram de ocupar o lugar de exceção, passando a integrar o consumo cotidiano de audiências globais (Park, 2023). A Coreia do Sul foi particularmente beneficiada por esse processo por já dispor de uma indústria audiovisual madura, organizada e tecnicamente competitiva, capaz de responder às demandas das plataformas.
Além disso, a ascensão do audiovisual coreano está diretamente relacionada a um projeto consistente de soft power cultural. Desde o final do século XX, o Estado sul-coreano investe estrategicamente na exportação de produtos culturais, articulando música, televisão, cinema, moda e gastronomia em um ecossistema simbólico conhecido como Hallyu (Hartzell, 2019). Dessa forma, o consumo de uma série ou filme coreano frequentemente se desdobra em contato com outros campos da cultura, ampliando o vínculo do público com esse universo e fortalecendo sentimentos de pertencimento e familiaridade simbólica.
As redes sociais e os fandoms também exercem função relevante nesse processo, na medida em que comunidades de fãs organizadas produzem traduções, conteúdos colaborativos, debates e compartilhamento de experiências, transformando o consumo audiovisual em uma vivência coletiva (Lee, 2020). Diferentemente do consumo mais individualizado característico do modelo audiovisual tradicional, o contato com produções coreanas tende a se articular a relações sociais mediadas por plataformas digitais, nas quais assistir a uma série implica adentrar um ecossistema simbólico compartilhado.
No contexto brasileiro, esse fenômeno encontra terreno fértil, uma vez que a cultura nacional historicamente valoriza narrativas melodramáticas, como evidenciado pela tradição das telenovelas, bem como a centralidade das relações familiares e dos afetos. Assim, os doramas dialogam de forma direta com repertórios já presentes no imaginário brasileiro, potencializando processos de identificação e reconhecimento emocional.
Sob a perspectiva da saúde mental, esse deslocamento no consumo audiovisual pode ser compreendido como um indicador das formas contemporâneas de enfrentamento do sofrimento psíquico. As narrativas coreanas oferecem modelos simbólicos de elaboração da dor, do luto e da frustração, permitindo que o espectador encontre, ainda que de modo indireto, recursos para refletir sobre suas próprias experiências. Nesse sentido, o sucesso dessas produções ultrapassa o campo do entretenimento e se articula às necessidades subjetivas de uma sociedade marcada por instabilidade, ansiedade e busca por sentido.
Portanto, a migração do consumo audiovisual do eixo estadunidense para a produção sul-coreana resulta da convergência entre a saturação do modelo hegemônico, a reconfiguração das dinâmicas de distribuição promovidas pelo streaming e a capacidade das narrativas coreanas de oferecer reconhecimento afetivo e proximidade emocional. Mais do que uma tendência cultural, trata-se de um fenômeno que revela transformações profundas na forma como os sujeitos buscam, no audiovisual, espaços de cuidado simbólico, identificação e elaboração psíquica.
Referências
CHALABY, J. K. Streaming giants and the global shift: building value chains in the platform economy. Journal of Communication, 2025. Disponível em: https://academic.oup.com/joc/article/75/2/112/7927093
HARTZELL, K. G. The global appeal of Korean television dramas. 2019. (Dissertação – Master of Arts em Communication, Culture and Technology) Georgetown University. Disponível em: https://repository.digital.georgetown.edu/handle/10822/1054912
LEE, Y. L. Cross-national study on the perception of the Korean wave. Sustainability, 2020. Disponível em: https://www.mdpi.com/2071-1050/12/15/6072
PARK, C. S. Creating a new South Korean style beyond hybridity. International Journal of Communication. 2024. Disponível em: https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/21993/4846
PARK, S. Global reception of South Korean content on Netflix. International Journal of Communication. 2023. https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/viewFile/20721/4396
YOON, H. A case of Netflix Originals Korean dramas. 2024. City Research Online. Disponível em: https://openaccess.city.ac.uk/id/eprint/33178/9/yoon-lee-2024-genre-in-transnational-television-a-case-of-netflix-originals-korean-dramas.pdf
