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Uma leitura psicanalítica da ansiedade: o relato da angústia dos adolescentes no pós-pandemia

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Carolina Vieira de Paula (Psicóloga, CRP 23/2190).

Como um iceberg, o sofrimento psíquico pode ser bem maior do que transparece.

Ser adolescente em 2022 é ter enfrentado o real da pandemia da COVID 19.   E, muitas das vezes, é estar encarando grande sofrimento em decorrência da falta de elaboração dessa experiência. Tal sofrimento, foi identificado e anunciado pelo UNICEF, braço da Organização das Nações Unidas para infância e adolescência, desde o final do ano de 2021, no relatório “Situação Mundial da Infância 2021: Na minha mente: promovendo, protegendo e cuidando da saúde mental das crianças”. Segundo o alerta da agência internacional: o impacto da covid-19 na saúde mental de crianças, adolescentes e jovens é significativo, mas somente a ‘ponta do iceberg’. 

Em março de 2022, logo após o início das aulas presencias no Brasil, jornais de grande circulação e relevantes sites de notícias anunciam o imperativo da terrível realidade e nomeando como ansiedade a angustia dos adolescentes. Nesse sentido, tem-se os seguintes destaques: Revista Veja São Paulo – explosão de casos de ansiedade entre adolescentes no pós-pandemia; Revista Saúde Abril- Sinais de depressão e ansiedade dobraram em jovens na pandemia, diz estudo; Jornal Estadão – Crises de ansiedade em adolescentes e crianças desafiam famílias e escolas. 

Em junho de 2022, fui convidada pela psicóloga Ana Paula Viana de Oliveira para, junto com ela, ministrar, aos alunos do terceiro ano do ensino médio do Colégio Estadual São José, em Palmas-TO, uma palestra intitulada Desafios da ansiedade em adolescentes. 

A queixa, motivada pela da escola, era de que, por parte dos estudantes, pululavam inúmeros relatos de crises de ansiedade, automutilação e até mesmo casos de ideação suicida. E o pedido inicial era de que realizássemos uma palestra motivacional, fundada no que Lacan chama de discurso universitário, para dar dicas práticas para que os adolescentes enfrentassem o sofrimento nomeado como “ansiedade”. 

Contudo, ante à proposta, a teoria psicanalítica nos impunha reflexões necessárias. O que pode ser atribuído como significante ao termo ansiedade apontado pelos professores da escola? E como nós poderíamos supor uma ansiedade única que contemplasse todos os adolescentes? Receber conhecimento, em nível consciente, seria suficiente para minimizar o sofrimento dos alunos?   

A reflexão sobre o alcance e a legitimidade do conteúdo atribuído ao termo ansiedade pelos professores da escola, nos remete ao texto “O Inconsciente” de Freud (1915) quando explica que: “psicologicamente mais correto seria talvez afirmar que sem maior reflexão nós atribuímos, a cada outro indivíduo, nossa própria constituição e, também, nossa consciência, e que tal identificação é o pressuposto de nossa compreensão”.

No mesmo sentido, Freud (1915) nos alerta sobre a existência de uma dimensão inconsciente no sujeito, apontando que “há atos de que a consciência não dá testemunho. (…) Então será preciso adotar o ponto de vista de que é uma pretensão insustentável exigir que tudo o que sucede na psiquê teria de se tornar conhecido também para a consciência”

Sobre o sofrimento dos adolescentes, no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905) explica que: as condições típicas de desenvolvimento sexual da fase da puberdade implicam na maturação dos órgãos do aparelho sexual, na concentração do prazer no foco genital e em mudanças na orientação da libido, antes autoerótica para objetal.  Diante disso, é destacado o problema da tensão da excitação sexual na adolescência que “tem de trazer em si o sentimento de desprazer”.   

Por outro lado, acerca da impossibilidade de supor um modo de sofrer único que representasse todos os adolescentes, Lacan já havia nos advertido que “a mulher não existe” como constructo único, mas que deveriam ser tomadas uma a uma. E desta forma, não poderíamos supor que existisse O adolescente, nem que fosse possível imaginar causas, efeitos ou soluções padronizadas para o sofrimento ou angústia nomeados de ansiedade. 

Portanto, realizar uma palestra motivacional, à luz da psicanálise de Freud e Lacan, seria tarefa impossível, considerando a epistemologia da psicanálise, que tem como o objeto o resto do cogito, o conteúdo singular, inconsciente e inarredável do sujeito da ciência positiva. Era preciso escutar os adolescentes, um a um, como sugeriu Lacan para na equivocação de suas palavras, identificar o quer dizer o seu sintoma, a sua ansiedade, a partir do conteúdo reprimido no inconsciente de cada o sujeito. E acerca do conteúdo inconsciente reprimido, Freud (EU e o ID) propõe: “somos vividos por poderes desconhecidos e incontroláveis”

É necessário lembrar que, foi para compreender tais poderes que nos controlam e que estariam para além dos restos mnêmicos, das sensações e percepções de ordem corporal consciente, Freud desenha um projeto de psicologia científica. No qual tenta explicar a existência e o funcionamento do aparelho psíquico como justificativa para existência de causas inconscientes para o sofrimento humano, nos termos do rigor da ciência médica.

Apoiadas na teoria freudiana, transformamos a palestra em uma roda de conversa com alunos e alguns professores, na qual pudemos identificar traços de angústia em suas falas individuais. Angústia que, como nos orienta o seminário 10 de Lacan, apontava para o real e para a direção do tratamento. Ao perguntarmos aos 50 alunos quem deles sofria de ansiedade e descrevermos algumas das repercussões corporais do quadro, tais como falta de ar, arritmia cardíaca, pensamentos acelerados, dificuldade de atenção ou concentração, mais de 50% dos presentes levantou a mão se identificando. Surgiu de um deles uma pergunta inarredável: quem não é ansioso? E a partir desse gancho passamos a oportunizar a fala deles, em livre associação, e destacar, em cada um, os pontos de singularidade na descrição do fenômeno nomeado como ansiedade e com isso elevar a singularidade na direção da própria angústia.

Assim, concluímos que cada sujeito é um e, portanto, cada ansiedade é única. O sofrimento da mocinha de 16 anos que se apresentava com medo de sair de férias e ser surpreendida por uma nova pandemia, perdendo a possibilidade de contato com os amigos ante a hipótese de uma nova quarentena, não é o mesmo vivenciado pela colega de turma, que também apresentava sintomas de ansiedade com a aproximação das férias, posto que nesse período estaria em contato mais intenso com a mãe que recentemente se divorciou e afastara da convivência com o pai idealizado. É necessário o amparo da psicanálise, enquanto “psicologia das profundezas”, para promover a escuta do inconsciente e o tratamento singular a cada sujeito falante.  

REFERÊNCIAS 

FREUD, S. (1989). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. I, pp. 303-409). (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1895).

FREUD, S (1905). Obras Completas, Volume 6, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria e outros textos. 1ª ed. São Paulo. Companhia das Letras,2016.

FREUD, S (1915). Obras Completas, Volume 12. Introdução ao Narcisismo. Introdução ao Narcisismo, ensaio sobre metapsicologia e outros textos. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.  

FREUD, S (1923). Obras Completas, Volume 16, O EU e o ID. 1ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2010.  

GAULT, J.. Por uma epistemologia lacaniana. pdf

LACAN, J (1998). “Ciência e verdade”. IN: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge.

LACAN, J. (2005) O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

LACAN, J(1985). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Jorge Zahar Editor. 

VIEIRA, M. A (2015). Por uma epistemologia clínica. IN: Opção Lacaniana.

UNICEF (2021) https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/impacto-da-covid-19-na-saude-mental-de-criancas-adolescentes-e-jovens

BARBIRATO, F. (2022) A explosão de caos de ansiedade entre crianças e jovens no pós-pandeia. https://vejario.abril.com.br/coluna/fabio-barbirato/a-explosao-de-casos-de-ansiedade-entre-criancas-e-jovens-no-pos-pandemia/

CARVALHO, P. (2022) Sinais de depressão e ansiedade dobraram em jovens na pandemia. https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/sinais-de-depressao-e-ansiedade-dobraram-em-jovens-na-pandemia-diz-estudo/

Junior, G. (2022) Crises de ansiedade em adolescentes e crianças desafiam famílias e escolas.  https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,crises-de-ansiedade-em-adolescentes-e-criancas-desafiam-familias-e-escolas,70004054486

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