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Criação agiota: o débito emocional que nos consome

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Há uma espécie particular de usura que não se pratica nas esquinas sombrias da cidade, nem nos escritórios envidraçados dos bancos. Esta agiotagem se instala no território mais íntimo da existência humana: o coração. E seus cobradores não batem à porta com ameaças explícitas, eles já moram dentro de casa, às vezes desde sempre, tecendo uma rede de débitos emocionais que se perpetua através das gerações como uma herança maldita.

Todo ser humano nasce devedor. Não por escolha, mas por necessidade biológica e emocional. Precisamos de cuidado, proteção, amor e alguém nos oferece esses bens preciosos. Mas alguns credores emocionais, mesmo os bem-intencionados, transformam esse cuidado natural em uma transação perversa. O amor vem acompanhado de juros compostos: expectativas, culpas, chantagens sutis que se acumulam silenciosamente.

“Depois de tudo que fiz por você…” essa frase ecoa como o barulho de uma calculadora emocional, somando sacrifícios, multiplicando obrigações, criando um saldo devedor que jamais conseguimos quitar. O pai que trabalhou demais, a mãe que abriu mão dos sonhos, os avós que “se sacrificaram pela família”, todos eles, mesmo amando genuinamente, podem se tornar agiotas involuntários de nossa liberdade emocional. O que distingue uma relação nutritiva de uma relação parasitária? A resposta está na direção do crescimento. Relações saudáveis são como jardins: cada pessoa floresce e, ao florescer, permite que a outra também cresça. Já as relações agiotárias funcionam como estufas viciadas, criam a ilusão de proteção, mas impedem o desenvolvimento natural.

A dependência emocional se alimenta de uma confusão fundamental: confundimos envolvimento com desenvolvimento. Estar profundamente envolvido com alguém pode nos dar a sensação de intimidade e conexão, mas se esse envolvimento nos diminui, nos limita, nos faz menores do que somos capazes de ser, então estamos pagando um preço alto demais por essa proximidade. Cada cobrança emocional deixa uma marca. Cada “você me deve isso”, cada “sem mim você não é nada”, cada silêncio carregado de reproches vai criando fissuras na nossa capacidade de nos relacionarmos de forma livre e autêntica. 

Essas faturas emocionais sempre em atraso, sempre insuficientes, geram fraturas profundas: A fratura da autoestima: Quando nossa validade depende de quitar dívidas emocionais impossíveis, começamos a acreditar que não merecemos amor incondicional. A fratura da autonomia: Cada decisão precisa ser aprovada pelo credor emocional, cada passo em direção à independência é visto como ingratidão. A fratura da percepção: Perdemos a capacidade de distinguir entre relações que nos nutrem e relações que nos drenam, porque nossa referência de “amor” está contaminada pela lógica da dívida.

O mais cruel nessa dinâmica é que quem cresce pagando faturas emocionais frequentemente se torna um cobrador emocional. Reproduzimos o que conhecemos. O filho que nunca conseguiu quitar a dívida com os pais se torna o pai que cobra dos filhos. O parceiro que se sente eternamente devedor se transforma no parceiro que faz o outro se sentir em débito. É assim que a agiotagem emocional se perpetua: cada geração passa para a próxima, não apenas amor e cuidado, mas também a conta a pagar, os juros acumulados, a sensação de que o amor é sempre condicional, sempre insuficiente, sempre devendo algo mais.

Como identificar quando estamos presos nessa rede?

Alguns sinais são reveladores :

O amor vem sempre acompanhado de condições: “Se você me amasse, faria isso…”

O passado é usado como moeda de troca: Favores e sacrifícios anteriores são constantemente relembrados como dívidas pendentes.

A culpa é a ferramenta de cobrança: Sentimo-nos culpados por buscar nossa felicidade, por fazer escolhas diferentes, por simplesmente existir como indivíduos autônomos.

O crescimento pessoal é visto como traição: Cada passo em direção à independência é interpretado como abandono ou ingratidão.

Quebrar esse ciclo exige uma revolução íntima. Precisamos declarar uma espécie de independência emocional, não para nos tornarmos insensíveis ou ingratos, mas para aprendermos a amar e ser amados sem a mediação da dívida.

Isso significa: reconhecer que o amor verdadeiro não gera débitos. Quando alguém nos ama genuinamente, esse amor é um presente, não um empréstimo. Não precisamos “pagar de volta”, precisamos apenas receber com gratidão e, quando possível, ofertar o mesmo tipo de amor incondicional a outros.

Aprender a distinguir gratidão de obrigação.

Podemos ser profundamente gratos pelos cuidados que recebemos sem nos sentirmos eternamente obrigados a viver segundo as expectativas de quem nos cuidou.

Compreender que crescer não é abandonar.

Tornar-se quem realmente somos não é uma traição aos que nos criaram, é a realização mais plena do amor que recebemos.

Existe uma forma de amar que não cobra, não contabiliza, não acumula débitos.

É o amor que se alegra com o crescimento do outro, mesmo quando esse crescimento significa distância física ou diferenças de opinião. É o amor que oferece raízes quando somos crianças e asas quando estamos prontos para voar.

Esse amor não é menos intenso ou menos profundo, é apenas mais livre.

Ele reconhece que cada pessoa é um universo em expansão, e que tentar controlar ou limitar essa expansão é como tentar prender o vento em uma gaiola.

Curar as fraturas emocionais causadas pela agiotagem afetiva é um processo delicado, que exige tempo e, muitas vezes, ajuda profissional. Mas é possível. Começamos reconhecendo que merecemos relações que nos façam crescer, não que nos mantenham pequenos. Aprendemos a dizer não sem culpa, a escolher nosso caminho sem pedir permissão, a amar sem nos anular. E, talvez o mais importante: aprendemos a perdoar. Não porque os outros merecem nosso perdão, mas porque nós merecemos nossa liberdade. Perdoamos os agiotas emocionais, muitas vezes nossos próprios pais, não para absolvê-los, mas para nos libertarmos da prisão do ressentimento.

Quando finalmente nos libertamos da agiotagem emocional, podemos estabelecer um novo tipo de contrato com a vida e com as pessoas que amamos. Um contrato baseado na reciprocidade saudável, no crescimento mútuo, no amor que multiplica em vez de dividir.

Nesse novo paradigma, não somos nem devedores eternos nem cobradores implacáveis. 

Somos simplesmente seres humanos aprendendo a amar e ser amados de forma plena, livre e generosa. E descobrimos que, quando o amor não tem juros, ele se torna infinitamente mais rico. A verdadeira riqueza emocional não está em quanto devemos ou em quanto nos devem, mas na nossa capacidade de dar e receber amor sem condições, sem cálculos, sem faturas. É aí que encontramos não apenas a cura para nossas fraturas, mas a possibilidade de uma vida verdadeiramente abundante.

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