“Com a força que sinto em mim, creio-me capaz de suportar todos os sofrimentos, contanto que me possa dizer a cada instante: ‘Eu existo’. Entre tormentos, crispado pela tortura, mas existo! […] eu existo apesar de tudo, vejo o sol e, se não o vejo, sei que está lá. E saber isso já é toda a vida.” (Dostoiévski, 2008, p. 329)
A premissa de Severance é a ruptura mental feita a partir de um implante inserido no cérebro, uma tecnologia original criada por uma grande corporação denominada Lumen. Esse procedimento provoca a existência de duas consciências em uma mesma mente. Uma que existe nas oito horas de trabalho, e a outra que vive todo o resto do tempo. Não há interação entre as consciências, logo a pessoa que passa pela ruptura não tem memória do que fez no trabalho, tão pouco aquela consciência que existe no trabalho terá memórias do que é, do que fez, ou do que foi. Parece um conceito reconfortante para algumas pessoas, considerando o quão insuportáveis são alguns locais de trabalho. Mas há um desenrolar de variáveis a partir desse conceito que traz à tona alguns dos mais antigos questionamentos que permeiam a natureza humana.
A série inicia justamente com a pergunta mais complexa que podemos fazer para alguém ou para nós mesmos: quem é você? Aqui já fica claro que a história não será sobre Inteligências Artificiais (IAs) que tudo sabem e tudo geram. Parte da narrativa, em alguns aspectos, até explora a ideia de que o capitalismo nos tornou subprodutos de nós mesmos, presos à produção de algo que enriquece apenas alguns poucos e que muitas vezes nem é necessário de fato. Mas a série vai além dessa crítica: questiona identidade, consciência e autonomia, mostrando que o dilema não é apenas social ou econômico, mas existencial.
Já no início a estranheza de Severance nos provoca sentimentos universais, como a sensação de desamparo, o medo do desconhecido, a leveza e o peso da falta de sentido, e a transformação produzida pela convivência. Nesse contexto, sentimentos e propósitos precisam ser inferidos a partir de um conjunto de peças bem articuladas, como se fosse uma trova em que cada palavra tivesse que compor uma forma com sentido em um espaço delimitado, ou um quadro de Monet, em que o olhar à distância favorece a compreensão do todo. Assistir algo assim, que exige tempo e reflexão para entender o que as nuances formam, é um bálsamo considerando a obviedade, a superficialidade e a rapidez dos dias atuais.
Mas voltando à pergunta “quem é você?”. A partir dela, acompanhamos o desenrolar de duas consciências que coabitam uma mesma mente. Existe aquela que tem história, traumas, raivas, angústias, e tem a outra, que nasce sem lembranças e sem vínculos. Assim, sem todo o histórico de dor, alegrias e sofrimento, espera-se da personalidade que é erigida a partir da ruptura uma adequação mais rápida e sem questionamentos às tarefas que lhes forem designadas.
Nesse cenário, somos apresentados a três personagens já ambientados em viver como internos (Mark S, Irving B, Dylan G), que cumprem as ordens sem indagações, são premiados quando atingem metas, acreditam nos manuais da organização como se estes livros tivessem sido escritos por seres mais iluminados, transformando-os na única fonte de informação e, consequentemente, a única verdade. Mas quando chega Helly R, tudo muda, pois ela questiona esse existir “do nada”, não aceita verdades fabricadas, ou executar rotinas sem entender sua finalidade. E é justamente o “nascimento” de Helly R que dá início a série, com a pergunta existencial citada acima. No primeiro frame da série (figura a seguir), Helly R está deitada em uma mesa de uma sala de reuniões, mas pela forma como a fotografia da série é conduzida, tem-se a impressão de que ela está em um útero e que sua nova consciência é despertada por uma voz externa.
O nascimento dessa nova consciência traz à tona a pessoa que poderia ter existido no mundo externo, caso esta não tivesse sido transformada por todas as experiências que viveu. Mesmo tendo um chip separando as duas consciências, é muito provável que haja uma base comum, ainda que isso seja tão profundo que, de forma consciente, a pessoa não perceba. Agora, imagina existir de forma inesperada, já adulta, com uma série de entendimentos a priori, mas sem experiências, ou melhor sem a memória das experiências? Além disso, tendo que simplesmente aceitar que pertencerá somente a um lugar e que a sua vida será realizar um único trabalho, mesmo que este não tenha significado algum para você. Tristemente parece que estamos descrevendo algumas vidas (ou muitas), mas para Helly R (a innie) essa existência nem sequer é sua, pois a única pessoa que parece ter autonomia para viver de forma plena é a sua outie (innie e outie são as denominações usadas na série para a consciência interna e externa).
O intricado nível dessa condição na mente da personagem desencadeia uma luta pela saída do local, mas isso significa, também, ainda que ela não perceba conscientemente, o fim da sua própria existência. Esse comportamento traz à tona um dos componentes mais complexos da série, que nos dá uma ideia profunda do quão sofrida é a vida daqueles que estão esvaziados de sentido, cuja mente desliza entre um encadeamento de coisas sem significados que não são suficientes para tornar a existência possível (o final do episódio 4 da 1a. temporada mostra isso de forma brutal). Se somos uma polifonia de vozes, como alguns dos personagens de Dostoiévski parecem confirmar, ambas as consciências que dão vida à Helly R e Helena são parte de uma mesma pessoa, e talvez suportar que a pessoa que quer nos ferir seja nós mesmos traz à tona uma complexa dualidade capaz de suscitar uma caótica contradição interna dando à existência a conotação de um absurdo.
Ao final da primeira temporada, os innies, mesmo vivendo em um contexto totalmente insólito, sem autonomia ou liberdade, constroem vínculos, começam a experienciar emoções além das verdades construídas na corporação, e isso muda tudo. A história e nossas próprias memórias nos mostram continuamente a capacidade de resistência e adaptação humana, especialmente, quando se entende que há um propósito para viver. A primeira temporada finaliza com todos dando um passo em busca dessa autonomia, ao fazer o mundo de fora, que eles acreditam ser mais justo e feliz, enxergar a crueldade da vida sem perspectiva que há no andar da ruptura.
Com isso, é iniciada a segunda temporada e, na primeira cena, acompanhamos a corrida do personagem principal, Mark S, nos labirintos brancos do andar da ruptura na Lumen. Nesse ponto, Mark S ainda acredita que as necessidades do seu outie devam ser atendidas prioritariamente. A subserviência pode ser uma bênção obscura, um tipo de ignorância que evita sofrimentos a curto prazo, mas cobra seu preço. Mark Scout, o outie, é um homem que viveu um trauma profundo com a perda repentina da sua esposa. Por isso, sujeitou-se ao procedimento da ruptura, na esperança de que pudesse, por oito horas do dia, esquecer tudo o que viveu e a dor do luto fosse mais suportável. Mas a única coisa que conseguiu foi encurtar os dias, já que não tinha consciência do que fazia no trabalho.
Como as atuações de todos na série são fantásticas, é possível notar as pequenas diferenças que surgem nos outies a partir do impacto de suas vidas internas. Mark Scout, por exemplo, que está determinado a entender o que aconteceu com sua esposa, tem sensações e pensamentos afetados pelas experiências do innie Mark, ainda que ele ache que isso esteja acontecendo pela tentativa de reversão do procedimento. Um ponto que vem à tona em Severance é o quanto nossas certezas são definidas pelo contexto. Imaginamos que a fé, o amor e o ódio sejam sentimentos únicos e bem definidos, até que as escalas de cinza e a falta de resolução vão modificando a paleta da perspectiva. Isso provoca medo, porque questionar sobre quem nós somos, quando começamos a enxergar as várias camadas que nos compõem, pode ser desorientador, pois é sempre mais fácil ter respostas universais, acreditar em seres superiores, estabelecer céus e infernos.
Nos episódios finais da segunda temporada, o que temos é a sensação de que há dor em todas as instâncias humanas. Há também uma sensação universal de desamparo, mas com uma certa inocência heroica na luta pela sobrevivência. Existir talvez seja a única coisa que está ao nosso alcance por uma fração de tempo. Então, quando Helly R e Mark S decidem continuar existindo, mesmo que isso não tenha sentido, parece que finalmente esses personagens tornam-se essencialmente humanos. Quando nas várias reações (reacts) postadas no YouTube as pessoas não entendiam por que eles corriam para lugar algum, já que não tinham perspectiva, fiquei chocada. Não é isso que fazemos quase sempre? Existir, mesmo sem ter uma compreensão do que isso significa, permanecer aqui e tentar sobreviver, mesmo sabendo que podemos ser “desligados” a qualquer momento.
Round like a circle in a spiral Like a wheel within a wheel Never ending or beginning On an ever-spinning reel […] Like the circles that you find In the windmills of your mind |
Redondo como um círculo em uma espiral Como uma roda dentro de outra roda Sem fim nem começo Em um carretel que gira sem parar […] Como os círculos que você encontra Nos moinhos de vento da sua mente |
The Windmills Of Your Mind, de Noel Harrison.
Com essa música e essa imagem feita em película, a segunda temporada é finalizada de forma brilhante. Mostra o casal protagonista correndo em uma espécie de espiral sem saída. Assim como Dom Quixote, que lutava contra moinhos de vento e era comparado a um louco, Mark e Helly, em um arrebatamento juvenil, desafiam o poder da Lumen, a vontade de seus externos e a lógica da existência, já que, para muitos, eles são descartáveis.
Sem fim nem começo, como uma roda dentro da outra, a consciência está em movimento e, quem sabe, para tornar a terceira temporada ainda mais complexa, não haja uma separação tão consistente como eles foram levados a acreditar. Como no livro clássico de Philip K. Dick, cujo título é uma pergunta — “será que androides sonham com ovelhas elétricas?” —, podemos imaginar que a nossa consciência esteja sempre em movimento, em espiral de contextos que nos tornam quem somos. Às vezes isso acontece em camadas tão profundas, que memórias e sensações só existem na inconsciência, não são compreendidas de forma clara, mas provocam mudanças intensas e nos transformam.
Imagina correr na esperança de alcançar um horizonte e, de repente, perceber que tudo é cíclico, que temos apenas isso aqui e que sempre seremos esmagados pelo tempo. Em Severance, há tanto uma crítica às grandes corporações que exigem a doação de seus funcionários como se estivessem em um culto perturbador, como também traz à tona a esperança que nos faz imaginar uma saída do ciclo, mesmo quando não há sentido ou lógica. Todos os artifícios que construímos para nos sentirmos menos desamparados, ou para termos uma maior sensação de pertencimento no tempo e no espaço, parecem sempre tão infantis quando observados de outra perspectiva. Ao final da temporada, a busca de um Equador pelos protagonistas, que possivelmente não exista da forma como eles imaginam, pode soar ingênua. Mas a simples esperança de que há algo já é suficiente para eles, algo que possam compartilhar por um breve espaço de tempo, assim como pode ser para alguns de nós.
Referência:
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2008.
Ficha Técnica – Severance
- Título: Severance (Ruptura)
- Ano de lançamento: 2022
- Gênero: Drama, Ficção científica, Thriller psicológico
- Criação e Roteiro: Dan Erickson
- Direção principal: Ben Stiller
- Distribuição: Apple TV+
- Temporadas: 2 (terceira em produção)
- Elenco principal: Adam Scott (Mark S, Mark Scout), Britt Lower (Helly R, Helena), John Turturro (Irving B), Zach Cherry (Dylan G), Tramell Tillman (Mr. Milchick), Patricia Arquette (Harmony Cobel), Christopher Walken (Burt G).