O mito da mulher guerreira: uma análise da canção ‘’estou nervosa’’ filme Encanto

Mais uma canção do filme Encanto (DISNEY, 2021), Como já vimos, o filme é rico em metáforas e reflexões, nos fazendo perceber que animação não é só coisa de criança. De fato é um verdadeiro encanto. Dessa vez vamos falar sobre a canção  ‘’Estou nervosa’’ no original ‘’surface pressure’’. Produzida por Lin- Manuel Miranda.

 

 

Antes de falar sobre a canção, cabe entendermos  um pouco da personagem Luísa, a qual  é marcada pelo arquétipo da mulher guerreira, tanto em sua aparência alta, com grandes músculos,  como o dom que ela recebeu da casita; força física. E é  através desse dom, que ela usa de estratégias e artifícios para ajudar as pessoas. 

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As sociedades antigas e medievais, encontraram na transmissão dos mitos a forma de perpetuar, seus medos, anseios, verdades, e fantasias (DETIENNE,1992). O mito por trás da mulher  guerreira nos mostra que para tal  titulação uma mulher deve ser justa, disciplinada, corajosa, intrigante e competente, alguém que faz de tudo para atingir metas, e coloca o bem maior dos outros acima do seu. As mulheres guerreiras dos mitos e histórias, sempre causaram sentimentos contraditórios nos homens, ao qual desenvolveram um certo fascínio por elas, devido as suas habilidades no manejo de armas, e no campo de batalha, sendo vista com temor, ao mesmo tempo em que sua feminilidade desata e desafia a coragem e honra masculina. 

 A mulher guerreira, sempre muito forte mas ao mesmo tempo feminina, perpetua o imaginário de homens até hoje, alguém que consegue suportar tudo e ao mesmo tempo trazer a satisfação necessária. ‘’E, desta feita, a mitologia vai se adaptando e modificando ao longo dos tempos, pois “em cada imagem que cria e inventa, a mitologia se metamorfoseia e seu saber se desloca: ela toma a forma efêmera do espaço que habitou um dia.” (DETIENNE, 1992, p. 226)

Percebemos na canção  um desabafo de Luisa, frente ao seu papel ao revelar a sua sobrinha o quanto anda sobrecarregada dos diferentes afazeres em prol da vila e da família, mas que até então faz sem reclamar ou questionar.

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Descartes (1596- 1650) na sua perspectiva do dualismo substancial, nos diz que somos constituídos de uma coisa extensa, o ccorpo, e uma coisa pensante; a mente, que vivem em constante interação e que formam um todo único.  Ele ainda aponta que quando estamos em uma emoção, significa  que possuímos um conhecimento intuitivo, direto, subjetivo não apenas sobre o que ocorre na mente, mas também no corpo. ‘’Cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante.’’ Descartes (1973a, p. 242).

Luisa é movida por esse misto de sentimentos ao mesmo tempo que se dispõe da audácia de querer combater,  da compaixão de querer ajudar, é cercada por um medo que enfraquece seus poderes e incita a fugir, mas ela não pode, pois quem iria fazer suas atividades? quem conseguiria estar no seu lugar? a pressão é tão grande que percebemos a ansiedade surgindo em seu desabafo. 

‘’ a pressão

é tanta por aqui-qui

que já me estressou, uou

e a pressão faz tic, tic, tic

meu limite chegou,uou, oh ,oh ‘’

Assim como Luisa, muitas mulheres compartilham dessa ansiedade, e sentem que já chegaram aos seus limites por  tantas cobranças e afazeres. As ditas ‘’mulheres guerreiras’’, não querem mais ”guerrear’’. Uma matéria  do buzzfeed intitulada: ‘’Precisamos parar de romantizar o termo “mulher guerreira” (Sofia Riccardi) Nos trouxe relatos de algumas mulheres, que estão cansadas de serem tratadas assim. Materia completa: http://encurtador.com.br/wHIPX

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Um paralelo entre esses desabafos e a canção, é a sobrecarga de afazeres, sociais, familiares e pessoais, a conciliação de tantas coisas chega a parecer impossível.  ‘’Se antes a “mulher perfeita” era a que cuidava bem do lar e da família, hoje ela precisa se destacar profissionalmente sem descuidar das questões anteriores e, ainda, ter um corpo modelo.’’( MORAES 2012, p.4).

Pesquisas feitas demonstram que mulheres são mais afetadas pelo estresse e esgotamento profissional, do que os homens. A  justificativa para isso são as inúmeras cobranças entre: trabalho, casa,filhos, saúde, conjugue, autocuidado. Essas mulheres são marcadas por um cansaço, falta de energia, desmotivação, desinteresse, irritação, mudanças de humor repentino, redução na concentração, esquecimento, desânimo, sentimento de fracasso e uma baixa autoestima. 

Sabemos que o stress é uma defesa natural do organismo, uma resposta fisiológica frente a agentes estressores. Quando existe a sobrecarga  dessas respostas, ocorrem consequências e danos à saúde. A sobrecarga da ‘mulher guerreira’ faz com que muitas mulheres de hoje desenvolvam o burnout e a ansiedade, pois estão tão empenhadas aos seus afazeres, que negligenciam a si mesmo. Podemos observar no trecho da canção:                                

‘’Não questiono se é pesado

O meu corpo suporta o fardo

Se me dão aço, eu piso, eu amasso

Com a força dos braços, eu faço estilhaço

Mas estou nervosa e ansiosa

Na corda bamba, sigo cautelosa

Estou nervosa

Como um herói que se cansou numa luta horrorosa’ Encanto (2021)

Essa sobrecarga ainda é marcada por julgamentos e críticas a si mesmo, quando não suportam mais e cedem a angústia, são por muitas vezes chamadas de surtadas.‘’É sempre um trabalho mental permanente, exaustivo e invisível, e portanto não reconhecido’’. Indiara leite (COMUNICA,2021)

‘Estou nervosa

Se eu não for generosa, me sinto ociosa

Não posso cansar, não posso falhar

Será que eu vou quebrar? o que me faz quebrar’’

Quanto a esse trecho da canção [..]

‘Estou nervosa, Eu fico ansiosa

Mas tento fingir ser corajosa

Estou nervosa

Ameaça é raivosa, fatal e silenciosa Encanto (2021)

Eu estou nervosa

Eu sei sou orgulhosa, a vida é perigosa

A casa vai cair, preciso agir

Eu uso a minha força, mas não sei como impedir ‘’ Encanto (2021)

 

Temos essa reflexão de Indiara Leite (COMUNICA, 2021)

” Infelizmente enquanto crianças, meninas frágeis e inocentes não sabíamos e ninguém nos disse que o mundo também é nosso por direito! Ninguém disse que a luta seria de igual para igual, ninguém dos falou de equidade e que por meritocracia conquistamos o que quer que seja, e por isso, corremos atrás do tempo, das oportunidades, das referências, do protagonismo, dos títulos e dos cargos, das migalhas e muitas vezes corremos contra outras mulheres para provar não sei o’que para não sei quem.

De acordo com a BBC (2021) especialista dizem que não existe uma única razão pela qual mulheres ficam esgotadas, mas que tem ligação com a forma com que as estruturas sociais e normais de gêneros se cruzam, ao causar desigualdades, um exemplo disso é o ambiente de trabalho.  Em geral, pesquisas ligam baixas rendas a altos níveis de estresse a uma saúde mental ruim.

No dia a dia vemos muitas mulheres como Luisa, sobrecarregadas, tendo que lidar com uma rotina exaustiva, equilibrando mil coisas, por isso precisamos repensar sobre o termo mulher guerreira, e as implicações que vem com tal ‘’estilo de vida’’.  É necessário entender que não está tudo bem, e poder proporcionar um espaço para que essas mulheres olhem para dentro de si, e se permitam sentir além dos julgamentos.  Precisamos ainda refletir e problematizar as questões de gêneros e combater o machismo tão estruturado ao qual coloca mulheres nessa posição. Ensinando as nossas garotas, que o lugar delas no mundo não é confortável, mas que lutamos para que seja, então está tudo bem sentir.

  A partir de hoje, quando você lembrar de uma mulher e pensar o quanto ela  é guerreira, pense também nas implicações que atribuem a ele esse fato e de que forma você pode ajudar, seja estendendo a mão, seja trazendo conhecimento,  de forma a tornar seus  fardos  menos pesados.

 

REFERÊNCIAS

COX, Josie.Por que mulheres sofrem mais de síndrome de burnout do que homens. BBC. 2021 Disponivel em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58869558> acesso em 06 de maio de 2022

ENCANTO. ‘’Estou nervosa’’. EUA. Disney+ 2021. 1:14.

LEITE, Indiara. Burnout nas Mulheres:sobrecarregadas para a romantização da “mulher guerreira. COMUNICA. 2021. Disponivel em <https://comunicarh.com/burnout-nas-mulheres-de-sobrecarregadas-para-a-romantizacao-da-mulher-guerreira/> acesso dem 06 de maio de 2022.

O mito da mulher guerreira: uma análise da saga de Hervör. João Pessoa: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, 2021, 258 páginas. ISBN: 978-65-00-22255-5

MORAE, E. Ser mulher na atualidade: representação discursiva da identidade feminina em quadros humorísticos de maitena. In TASSO, I., and NAVARRO, P., orgs. Produção de identidades e processos de subjetivação em práticas discursivas [online]. Maringá: Eduem, 2012. pp. 259-285. ISBN 978-85-7628-583-0. Available from SciELO Books .