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50 tons de cinza: porque o óbvio passa despercebido

Concorre ao OSCAR de Melhor Canção Original

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Furor entre as mulheres. Este é o principal efeito do filme 50 tons de Cinza, que estreou recentemente no Brasil, embora uma boa parte do público já soubesse o final, devido ao fato da obra ser baseada na trilogia da escritora britânica E.L. James, um romance erótico que já vendeu mais de 100 milhões de cópias no mundo, e 5 milhões somente no Brasil (VEJA, 2015a).

O filme, uma adaptação de um livro de mesmo nome, conta a história de Anastasia Steele (interpretada por Dakota Johnson), uma ingênua e desastrada estudante de literatura de 21 anos que conhece o empresário Christian Grey (interpretado por Jamie Dornan), um bilionário de 28 anos. Apesar de sua inexperiência, Ana se mostra decidida se envolver com Christian e se entregar a relação amorosa que se inicia entre os dois. A estudante se deixa seduzir por um homem que ela idealiza como perfeito. Mas a medida que a relação se desenvolve, Grey mostra que tem gostos peculiares e é adepto a práticas sexuais sádicas.

Do ponto de vista do espectador que não leu o livro, e não faz ideia de como a trilogia se desenvolve, toda a trama parece desconcertante. Em vários momentos do filme, Anastasia se mostra hesitante. Não consegue compreender porque sente tanto amor e tanta repulsa pelo mesmo homem. Seus sentimentos estão confusos. Ao lado de presentes, passeios e aparentes demonstrações de afeto, estão a indiferença, o ciúme, a possessividade e uma violência psicológica sutil. Percebe-se claramente que ele atua por meio de um esquema de reforço intermitente, onde o reforço não ocorre após a emissão de um tipo de comportamento, mas forma aleatória (Skinner, 1972). Deste modo, a jovem Anastasia não entende porque o namorado tem comportamentos tão destoantes.

No entanto, Grey percebe intuitivamente que suas ações mantém o comportamento de interesse de Ana por mais tempo e diminui os riscos de uma extinção rápida. Apesar de ser uma ferramenta muito poderosa, este tipo de reforço (Pinto & Ferreira, 2005) apresenta conseqüências perniciosas, pois Ana se mostra cada vez mais confusa e mais incapaz de perceber o que está acontecendo, ao passo que se envolve cada vez mais intensamente com o milionário, experimentando práticas sexuais envolvendo violência.

Para um espectador mais atento, esta dualidade não passa desapercebida. Trata-se de uma relação doentia e perigosa, permeada por abuso físico e emocional (Grossman, 2015). O papel agressivo cabe ao homem, enquanto a Anastasia se limita a um papel passivo e defensivo. Tudo indica que se trata de um caso de perversão, em que Grey manifesta desejos sádicos, pois o que ele “sente, é tão somente o desejo de cometer atos violentos e cruéis em pessoas do outro sexo e uma sensação de volúpia” (Krafft-Ebing, 2009, p. 2) conjunta aos atos de crueldade

Nesse ponto do filme, o espectador começa a se perguntar se Anastasia é masoquista ou se não está compreendendo os desdobramentos dos encontros com Grey, que se tornam mais violentos a medida que se repetem. Pois no masoquismo “o sujeito se faz objeto diante do parceiro transformado em atormentador do seu fantasma, e goza pela erotização da dor infligida no seu parceiro” (VALAS, 1990, p.66). E a protagonista se mostra uma mulher bonita, mas que não percebe sua própria beleza, sendo extremamente ingênua e demostrando baixa autoestima.

Para além das especulações psicológicas, é preciso atentar-se para a fórmula midiática e comercial da mocinha boba que se apaixona por um homem poderoso, já vista outras vezes no cinema, como na saga Crepúsculo (MAIA, 2013; VEJA, 2015a). No entanto, a moça pretensamente ingênua, depois de experimentar o máximo de violência que Grey se diz capaz, resolve recuar e abandonar o relacionamento. O filme termina, e as luzes se acendem. O público sabe que haverá continuação da história, porque ainda faltam dois livros. As mulheres saem do cinema num frenesi desmedido. Mas, o que passou despercebido?

A problemática das relações de gênero. Mais uma vez a mulher está num papel de submissão. Há séculos a condição biológica feminina tem sido utilizada para legitimar processos sociais (PEDRO, 2005; SCOTT, 1995), em que homens e mulheres, são categorizados de forma diferente, onde o aquele ocupa uma posição de superioridade, dominação, racionalidade, e o último o de submissão e subserviência. Para Scott (2012) a dimensão social da relação entre homens e mulheres precisa ser problematizada, porque a “anatomia das mulheres não é o seu destino” (p.335), e os papéis e comportamentos determinados pelo nascer homem ou mulher devem ser discutidos.

O que 50 tons de cinza pode significar em termos de subjetividade? Que as questões de gênero encontram-se tão arraigadas, as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas, que as próprias mulheres não conseguem perceber isso, excitando-se com cenas em que o feminino é tido como submisso, frágil, inocente e desprovido de auto-estima.

Para Fraser (2006) a desvantagem social das mulheres restringe sua “voz”, impedindo sua a participação igualitária nas esferas públicas e na vida cotidiana, inclusive na formação da cultura. Apesar da história ter sido escrita e roteirizada por mulheres, os críticos consideram que ainda se constituiu numa produção machista, devido a muita nudez feminina e quase nenhuma masculina (VEJA, 2015b). Se o filme foi criado para o público feminino, é possível que “elas iam querer ver a câmera se demorando mais em Jamie Dornan” (VEJA, 2015b, p.1), o ator que interpreta Christian Grey.

A reação do público feminino, que não percebe a dominação masculina, nem quando ela é escancarada em alta definição, corrobora com as questões postas por Bourdieu (1999):

A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça (Bourdieu, 1999, p.19).

Trata-se de um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica (FRASER, 2006), que, se não é percebido, não pode ser modificado. O que aponta que a injustiça de gênero deve ser combatida com mudanças não só na economia, como querem as mulheres de agora, mas também em outras esferas, como a política e a cultura (FRASER, 2006). Aguardamos as cenas dos próximos capítulos, ou melhor, da trilogia.

 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1999.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça numa era pós-socialista. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006.

Grossman, Miriam. A ‘carta de uma psiquiatra sobre 50 tons de cinza para os jovens. Trad. Marcos M. Dal Ponte. Psico On-line News, 2015. Disponível em: <http://www.psiconlinews.com/2015/02/a-carta-de-uma-psiquiatra-sobre.html>. Acessado em 25 fev. 2015.

KRAFFT-EBING, R.. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,  São Paulo,  v. 12, n. 2, Jun.  2009.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142009000200012&script=sci_arttext>.  Acessado em 27 fev. 2015.

MAIA, Ygo. Resenha: 50 tons de cinza. Mergulhando na Leitura – Blogspot, 2013. Disponível em: <http://ymaia.blogspot.com.br/2013/05/resenha-cinquenta-tons-de-cinza.html>. Acessado em 27 fev. 2015.

PEDRO, Joana Maria.Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.

PINTO, Rodrigo Diniz; FERREIRA, Lívia Freire. Ciência do Comportamento e aprendizado através de jogos eletrônicos. Anais do I Seminário Jogos Eletrônicos, Educação e Comunicação – construindo novas trilhas. UNEB, Salvador – Bahia, outubro/2005. Disponível em: <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/novastrilhas/textos/rodrigopinto.pdf>. Acessado em 28 fev. 2015.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SCOTT, Joan Wallach. Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, dez. 2012.

SKINNER, B.F. Tecnologia do Ensino. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.

VALAS, Patrick. Freud e a Perversão. Trad. Dulce Henrique Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

VEJA. Quem é quem em ‘Cinquenta Tons de Cinza. Cinema, fev. 2015a. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/quem-e-quem-em-cinquenta-tons-de-cinza>.  Acessado em 28 fev. 2015.

VEJA. Diálogos de ’50 Tons de Cinza’ provocam risos em Berlim. Cinema, fev. 2015b. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/dialogos-de-50-tons-de-cinza-provocam-risos-em-berlim>. Acessado em 28 fev. 2015.

Trailer:

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016


FICHA TÉCNICA 

CINQUENTA TONS DE CINZA

Título Original (EUA): Fifty Shades of Grey
Direção: Sam Taylor-Johnson
Roteiro: Kelly Marcel
Baseado em: Fifty Shades of Grey de E. L. James
Música: Danny Elfman
Estúdio: Focus Features
Ano: 2015

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