Por Lucilene da Silva Milhomem Campos – damilhomem44@gmail.com
Como Estrelas na Terra é um drama que retrata a exclusão social em face do que é diferente. Tal temática ainda é presente e traz sofrimento em todas as dimensões da vida, o que torna a referida obra cinematográfica comovente e atual, muito embora tenha sido lançada em 2007.
A falta de sensibilidade humana, o desconhecimento em relação à saúde mental e o desenvolvimento humano, a rigidez de determinadas personalidades, a surdez de algumas pessoas (profissionais) resvalam, por vezes, em intenso sofrimento, potencializado quando o tratamento de determinados transtornos é retardado, destruindo a autoestima daqueles que “gritam” por socorro.
A narrativa central acontece no interior de uma escola de ensino fundamental, especialmente nas brincadeiras de futebol com o protagonista, Ishaan Awasth, de dez anos idade, que sofre de dislexia.
O desconhecimento daqueles que o cercam quanto aos verdadeiros motivos do déficit de aprendizagem levam o personagem a apresentar reações que potencializam as suas dificuldades, como a rebeldia no comportamento, a tristeza e o isolamento, sem olvidar de todo o sofrimento psicológico, emocional, neurológico e social de Ishaan.
A dislexia se configura em um distúrbio genético que embaralha o aprendizado, dificultando a realização da leitura e da escrita. O cérebro, por razões ainda não totalmente esclarecidas, apresenta dificuldade para encadear as letras e formar as palavras, e não relaciona direito os sons às sílabas formadas. Ishaan Awasth sentia angústia porque não conseguia aprender a escrever e nem a ler, quando comparado aos demais alunos.
O cérebro do menino não diferenciava algumas letras do alfabeto. Ele trocava o “B” pelo “D”; o “R” pelo “S”; e o “H” pelo “T”. Fazia confusão na ordem de certas letras. Essa condição disléxica pode ser identificada durante a leitura, observada na escrita e no processo de soletração das palavras, considerando que é essencial, na aprendizagem, relacionar sons com os símbolos (objetos) e saber o significado deles. Ishaan Awasth padecia dessa habilidade básica que facilita o desenvolvimento do aprendizado.
Fonte: https://www.jornaldafranca.com.br/
Ishaan Awasth vivencia o sentimento de humilhação, de vergonha, de constrangimento, de Billings, quando posto de castigo e tudo isso é vivido com frequência e sentido por ele com intensidade.
Tais fatos ocorriam na escola, no seio familiar e nas brincadeiras de criança, fazendo com que, em decorrência das dificuldades mencionadas, suplantavam situações em que o coloca em desigualdade em relação aos cérebros das crianças da mesma idade que não tinham tal condição neurológica.
Houve uma situação na qual a professora solicitou ao estudante Ishaan que realizasse uma leitura em sala de aula em tom de voz que todos os presentes pudessem ouvi-lo. O garoto tentou explicar à professora que “as letras estavam dançando”. Em razão disso, as risadas tomaram contam da turma e a professora se irritava e ordenava para Ishaan que “lesse as letras dançarinas”. Devido ao transtorno neurológico, Ishaan não conseguiu fazer a leitura e foi tachado pejorativamente de “burro”, “retardado”, “preguiçoso” e, logo após, expulso da sala de aula.
A direção da escola, sem a expertise necessária para entender o real problema de Ishaan, que não se tratava de indisciplina, mas sim, de um transtorno neurológico (dislexia), chamou os pais do garoto para uma reunião. Entre as falas, disse aos genitores que “algumas crianças têm menos sorte e para elas existem escolas especiais”. E informou, ainda, que Ishaan vê os livros como inimigos e que o ato de ler e escrever se assemelha, para ele, a uma punição. Justificou, ainda, aos responsáveis, que a criança pede licença o tempo todo para ir ao banheiro e que as atividades dela, tanto escolar quanto as tarefas de casa, não melhoravam, indicando-o a transferência.
A família anunciou a Ishaan sobre a mudança de escola. E como era “rebelde”, iria para um internato, causando-o angústia, pesadelos e sofrimento. Suplicava-os para deixar em casa! Fazia promessa de melhorar, mas sem o seu consentimento, seus pais o levaram, sob o argumento de que era o “melhor” a ser feito. Foi para o colégio interno cujo lema é “Disciplinar Cavalos Selvagens”. Chegando lá, sentiu falta da mãe, do irmão, da casa, da rotina familiar, de tudo. Acometeu-se de uma imensa tristeza, de uma falta de ânimo, de um isolamento social, de um desinteresse generalizado.
Durante aula de artes, o professor da disciplina se apresentou aos alunos de forma criativa, sensível, observador e atento, dançando e cantando. Em determinado momento, ele solicitou que os alunos iniciassem uma pintura. Todos começaram, mas Ishaan não se animou. O educador logo percebeu o desinteresse e a falta de ânimo do garoto e ficou preocupado. E a partir de então, iniciou uma investigação e percebeu um padrão de escrita incomum, o que o levou a concluir que se tratava de um transtorno neurológico – dislexia.
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Ishaan estava com a sua autoconfiança destruída e sem vontade de fazer suas atividades. O educador ampliou várias possibilidades criativas para desenvolver a aprendizagem do menino e, por consequência, a sua autoestima. Os sinais de melhora logo começaram a aparecer, como uma rosa murcha que recebe água.
É interessante ressaltar que a melhora do garoto não se deu devido ao fato da descoberta do transtorno, mas em decorrência da metodologia usada, da paciência, da sensibilidade, da criatividade, do respeito e de muita vontade de ajudá-lo, de erguê-lo e dar vida ao menino, valorizando a habilidade de pintura de Ishaan – algo em comum entre o professor e aluno.
Pertinente ressaltar que o educador, para trabalhar a autoestima do menino, apresentou grandes referências mundiais de personagens históricos, que apesar do transtorno, obtiveram sucesso, como: Albert Einstein, Agatha Christie, Pablo Picasso e Leonardo da Vinci. Para o processo de aprendizagem, em relação à escrita, utilizou-se dos sentidos – a própria pele, audição, tato, olfato. Usava o meio ambiente, a arte, associava o símbolo ao objeto, tudo para que Ishaan absorvesse e aprendesse de forma a suprir exatamente a sua necessidade de aprender, de forma leve, criativa e dinâmica. Um verdadeiro exemplo de empatia e amor.
De acordo com a Associação Brasileira de Dislexia (2016), o transtorno é considerado específico de aprendizagem e é de origem neurobiológica, caracteriza-se por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração.
Há pouco tempo criou-se a Lei nº 14.254/2021, que dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem.
No artigo 3º da referida Lei, subscreve-se que os educandos com dislexia, TDAH ou outro transtorno de aprendizagem que apresentam alterações no desenvolvimento da leitura e da escrita, ou instabilidade na atenção, que repercutam na aprendizagem, devem ter assegurado o acompanhamento específico direcionado à sua dificuldade, da forma mais precoce possível, pelos seus educadores no âmbito da escola em que estão matriculados e podem contar com o apoio e orientação da área de saúde, de assistência social e de outras políticas públicas existentes no território.
Percebe-se que a elaboração da Lei foi um passo importante para iniciar a mudança, mas ainda precisa de outras ações para que ocorra a alteração de paradigma para que de fato a inclusão social aconteça na prática. Exige-se esforço, empenho, dedicação, pesquisa, estudo e os recursos em todos os níveis, além da adequação da estrutura física e da adaptação à realidade.
Os possíveis sinais — Alguns sinais na pré-escola
- Dispersão;
- Fraco desenvolvimento da atenção;
- Atraso do desenvolvimento da fala e da linguagem;
- Dificuldade de aprender rimas e canções;
- Fraco desenvolvimento da coordenação motora;
- Dificuldade com quebra-cabeças;
- Falta de interesse por livros impressos
Alguns sinais na idade escolar
- Dificuldade na aquisição e automação da leitura e da escrita;
- Pobre conhecimento de rima (sons iguais no final das palavras) e aliteração (sons iguais no início das palavras);
- Desatenção e dispersão;
- Dificuldade em copiar de livros e da lousa;
- Dificuldade na coordenação motora fina (letras, desenhos, pinturas etc.) e/ou grossa (ginástica, dança etc.);
- Desorganização geral, constantes atrasos na entrega de trabalho escolares e perda de seus pertences;
- Confusão para nomear entre esquerda e direita;
- Dificuldade em manusear mapas, dicionários, listas telefônicas etc.;
- Vocabulário pobre, com sentenças curtas e imaturas ou longas e vagas;
O psiquiatra Carl Jung cunhou a frase: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Essa sabedoria é convidativa para que haja o pensamento crítico acerca da praxe profissional. Será que só a teoria basta para que o profissional exerça o ofício? Uma profissão que lida com o ser humano condiz com uma personalidade rígida? O que é necessário para escolher uma profissão coerente à personalidade e ao desejo?
A escola deve ser um ambiente de compreensão, acolhimento, amor e respeito – um ambiente seguro, com uma metodologia criativa, sensível e um ensino inclusivo e adaptado, repleto de profissionais competentes e com uma escuta acurada e atenta.
A sociedade precisa se engajar mais, respeitar mais e denunciar qualquer tipo de violência, além de se atentar mais quanto aos governantes que são colocados, em ambientes públicos e decisórios, como nas câmaras de vereadores, nas prefeituras, no Congresso Nacional e no Palácio do Planalto.
Referências
ASSOCIÇÃO BRASILEIRA DE DISLEXIA. Disponível em: https://www.dislexia.org.br/o-que-e-dislexia/ . Acessado em 04 de setembro de 2023.
LEI Nº 14.254, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2021 – Dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14254.htm. Acessado em 05 de setembro de 2023.
PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.