O Deserto dos Tártaros, escrito em 1941 por Dino Buzzati, mergulha no dilema existencial da espera, e é a partir dessa perspectiva que podemos desvendar a fascinante e, ao mesmo tempo, trágica jornada de seu protagonista, Giovanni Drogo.
A obra é um clássico da literatura italiana e não é apenas uma história de guerra e honra; é um estudo de caso sobre a procrastinação, a fixação obsessiva e a aceitação da mediocridade.
A Espera como Hábito
Giovanni Drogo é um jovem oficial que, ao ser transferido para a Fortaleza Bastiani, acredita que sua estadia será breve. Ele anseia por uma vida de glória e aventura, mas, em vez disso, encontra uma rotina monótona e a ilusão de um inimigo que nunca chega. O que começa como uma espera justificada e com tempo determinado para acabar se transforma em um hábito e, a cada dia, Drogo adia a decisão de partir, convencido de que algo grandioso está prestes a acontecer.
“ Drogo teria igualmente ido embora; mas já havia nele o torpor dos hábitos, a vaidade militar, o amor doméstico pelos muros cotidianos.” (pág. 56)
Essa fixação em um propósito externo e distante é a sua maior sabotagem psicológica. Ao abdicar do presente em nome de uma promessa vazia, Drogo abdica de si mesmo.
Assim, o hábito de esperar, de adiar a ação, se enraíza de tal forma que ele se torna incapaz de mudar de rumo. A vida, com suas oportunidades e desafios, passa por ele enquanto ele se fixa em uma expectativa vazia. Drogo, apesar de várias oportunidades de deixar o forte e seguir a vida, se acostuma com a rotina e a falta de propósito real e sua zona de conforto.
Ilusão de Propósito
A vida de Drogo na fortaleza se torna um ciclo interminável de vigílias e treinos a espera de um combate. Essa preparação é seu único propósito e a espera pelos tártaros é o “grande evento” de sua vida que se torna uma fixação obsessiva e se tornam a desculpa para a sua inércia.
Ao concentrar-se em um objetivo distante e inatingível, Drogo evita confrontar a realidade de sua vida estagnada. É uma fuga da responsabilidade de criar uma vida significativa, de tomar decisões e de enfrentar as consequências. Ele projeta todo o seu valor e significado na possibilidade de um único ato heroico, sacrificando assim outras possibilidades.
A Vida que Escapa
À medida que o tempo passa, Drogo envelhece na fortaleza, e a vida que ele tanto queria ter escapa por entre os dedos. Ele vê amigos e colegas partirem,morrerem, enquanto ele permanece preso à sua espera. A ironia trágica da história é que os tártaros aparecem quando o forte está prestes a ser desativado, contudo, Drogo já está velho e doente, incapaz de lutar, e então é transferido e faleceu no caminho após um momento de epifania sobre sua existência.
O final do livro é uma poderosa lição sobre como fixação em um propósito futuro e a recusa em agir no presente levam à perda de oportunidades e, em última análise, a uma vida não vivida. Drogo não é um herói trágico por lutar, mas sim por não lutar. Ele se torna o prisioneiro de suas próprias escolhas, de seu hábito de adiar, e da ilusão de que a vida real está sempre “logo ali na frente”. A vida passa, e ele se acostuma com a mediocridade de uma existência vazia, aceitando-a como seu destino.
Assim como Drogo, muitos de nós nos aprisionamos em “fortalezas” cotidianas: um serviço insatisfatório que mantemos à espera de uma “oportunidade melhor”, um relacionamento tóxico que não terminamos na esperança de que “vá mudar um dia”, ou uma amizade que já não nos faz bem, mas a qual nos apegamos por comodidade. A espera se torna o nosso refúgio, a ilusão de que a vida real começará quando algo externo finalmente acontecer. A tragédia de Drogo nos lembra que a vida que queremos ter pode, e muitas vezes irá, escapar por entre os dedos, enquanto fixamos o olhar em um horizonte que pode nunca chegar.
E você, em que fortaleza tem esperado pelos seus próprios tártaros?
Ficha técnica:
Título: O Deserto dos Tártaros
Autor: Dino Buzzati
Apresentação: Ugo Giorgetti
Tradução de: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
Tradução do original: Il deserto dei tartari
Editora: Nova Fronteira
Ano de publicação (8ª edição): 2020
ISBN: 9786556401287
CDU: 821.131.3-3
Classificação: Romance italiano
Série: Clássicos de ouro