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O homem revoltado: uma filosofia da revolta para um Brasil em conflito

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Há livros que nos chamam pelo título, outros pelo autor, e existem aqueles que nos convocam por inquietações silenciosas, que habitam há tempos em nossa alma. O Homem Revoltado, de Albert Camus, faz exatamente isso: reúne essas três chamadas simultaneamente. Em tempos marcados por polarizações políticas, discursos inflamados e uma sensação difusa de absurdo, falta de sentido e justiça, reencontrar Camus é como caminhar, desconcertado, para o centro do furacão. Não para buscar refúgio, mas para encontrar uma lógica na única solução que resta a nós: a revolta.

Publicado em 1951, este livro é uma continuação existencial de O Mito de Sísifo. Contudo, desloca-se da pergunta sobre o suicídio — o sentido da vida — para uma questão mais urgente e violenta: temos o direito de matar? Camus não se limita a responder; ele dissolve essa pergunta, tensiona suas fronteiras e a expande, devolvendo-nos outra, fundamental: o que significa agir com dignidade num mundo que naturalizou a violência?

Não se trata de uma leitura fácil, pois não poderia ser. O Homem Revoltado é um convite rigoroso a pensar nosso tempo sem atalhos morais ou escudos ideológicos. É um ensaio filosófico, político, ético e visceral. Mais que isso, um manifesto em favor de uma rebelião que não traia a vida, mas que a celebre. Para este leitor, despertou o eco de uma inquietação antiga: como ser justo sem tornar-se juiz? Como buscar sentido na justiça num mundo essencialmente injusto?

A temática central da obra reside na tensão entre a rebelião humana e a violência que ela pode justificar. Camus parte de um paradoxo existencial e histórico: o mesmo impulso que nos leva a recusar a injustiça pode, quando corrompido por ideologias absolutas, legitimar outras formas de opressão.

Esse desvio da rebelião aparece com clareza na Revolução Francesa. O legítimo clamor por liberdade, igualdade e fraternidade rapidamente se transforma no Reinado do Terror, quando a guilhotina se torna símbolo de uma virtude radicalizada. Robespierre, em nome da moral republicana, justifica o assassinato político como método de purificação social. A justiça que se buscava contra a tirania torna-se, ironicamente, instrumento tirânico.

Camus revisita também a Revolução Russa, revelando como o ideal de um Estado proletário degenerou em regime totalitário sob Stálin, onde milhões foram eliminados em nome de uma “humanidade futura”. Nesse contexto, o assassinato em massa deixa de ser passional para se tornar “lógico”. É o que Camus denomina “crime racional”: um homicídio friamente justificado pela coerência interna da ideologia. A liberdade, transformada em doutrina, deixa de ser caminho para tornar-se destino imposto, mesmo à custa da vida humana.

A revolta metafísica se deforma ao absolutizar sua negação. Camus usa o exemplo do Marquês de Sade, cuja busca por liberdade absoluta e a transgressão dos valores tradicionais o levam a defender o assassinato como expressão da liberdade do desejo. Assim, a revolta libertina aprisiona o outro à vontade do sujeito e o destrói.

O nazismo representa o limite último dessa revolta desfigurada. Ao negar qualquer valor inerente à vida e reduzir a existência à vontade de poder, o regime hitlerista encarna o suicídio lógico da humanidade. Para Camus, a destruição nazista não visava apenas o inimigo externo, mas também a própria ideia de humanidade. O absurdo existencial, ao invés de ser enfrentado com lucidez, é consumido pela lógica da destruição total.

Esses exemplos evidenciam o alerta fundamental de Camus: quando a revolta perde a consciência de seus limites, torna-se o oposto do que pretendia combater. A negação do mundo, seja pela recusa niilista, seja pela imposição utópica, termina por justificar a supressão da dignidade humana, exatamente aquilo que despertou a indignação original.

Diante disso, Camus propõe a noção de medida. Não como resignação, mas como princípio ético da revolta autêntica, aquela que resiste sem se tornar opressora, que luta sem justificar o crime, que afirma a vida mesmo enquanto nega a injustiça.

Fonte: https://www.scienceshumaines.com/

A leitura de O Homem Revoltado encontra um eco inquietante na atual situação social e política brasileira. A polarização entre esquerda e direita, longe de promover diálogos construtivos, tem funcionado frequentemente como uma cortina de fumaça para práticas autoritárias que reaparecem sob roupagens diferentes, mas mantêm um conteúdo opressor comum. Camus nos alerta que a rebelião, quando capturada por ideologias absolutas, corre o risco de se tornar justificativa para a violência, um alerta que se torna especialmente pertinente num país em que o ódio político se manifesta tanto na violência simbólica quanto na institucional e física.

No Brasil, essa tensão aprofunda-se em uma polarização afetiva na qual o motor principal das disputas não é o embate de projetos políticos, mas a rejeição do “outro”. A disputa deixa de ser sobre ideias para transformar-se em luta por identidade. Como consequência, a sociedade mergulha em discursos morais superficiais, enquanto práticas de exclusão, repressão e manipulação permanecem vigorosas, independentemente da coloração política dos governos. O que Camus denominaria “crime lógico” se manifesta aqui por meio de ações governamentais que, em nome da ordem ou da justiça social, preservam os mecanismos de dominação, apenas revestidos por novos discursos.

Igualmente, Michel Foucault contribui significativamente para essa análise ao demonstrar que o poder não se limita aos aparelhos repressivos do Estado, mas é difuso, capilar, presente nas relações cotidianas e nos discursos que definem o que é verdadeiro, aceitável ou legítimo. Sua crítica à racionalidade moderna evidencia que regimes antagônicos podem compartilhar a mesma lógica disciplinar: controle dos corpos, normalização dos comportamentos e silenciamento das dissidências, sempre em nome da razão ou da liberdade. Sob essa perspectiva, torna-se claro que a mudança de governo não implica necessariamente ruptura com a opressão, mas muitas vezes apenas sua reorganização.

Como Paulo Freire nos lembra, por sua vez, a opressão se sustenta não só pela força, mas também pela interiorização dos valores e discursos do opressor pelos oprimidos, que os assumem como naturais. Essa interiorização representa um obstáculo crucial à libertação autêntica, pois converte a rebelião em ressentimento estéril ou reprodução dos mesmos mecanismos de dominação. Nesse ponto, a crítica de Camus à revolta desprovida de ética encontra diálogo com a pedagogia freiriana: ambas requerem consciência crítica e a recusa da justificativa de fins nobres para meios violentos.

É nesse horizonte que O Homem Revoltado se ergue como uma proposta ética profundamente atual. Ao rejeitar tanto o niilismo passivo quanto as utopias absolutistas, Camus propõe uma revolta ancorada na medida humana, uma rebelião lúcida, que reconhece não haver valor maior do que a vida concreta. Em vez de substituir um dogma por outro, convida a um posicionamento que recusa a servidão voluntária, mesmo quando esta vem disfarçada de ideologia libertadora. Para Camus, a revolta nasce do reconhecimento da dignidade de todos, inclusive do adversário, e deve resistir à tentação de justificar o assassinato, literal ou simbólico, em nome de qualquer causa.

No contexto brasileiro, essa ética da medida configura-se como antídoto imprescindível para uma sociedade que oscila entre extremos. Indica que a verdadeira transformação política não emergirá da vitória de um lado sobre o outro, mas da construção de um espaço comum onde o diálogo seja possível e onde a justiça não se subordine à conveniência ideológica. O Homem Revoltado propõe, assim, uma rebelião que não destrói o outro, mas que resiste à lógica do poder que o reduz a inimigo. Uma rebelião que, como diria Freire, humaniza, e que, talvez completasse Foucault, resiste não apenas ao poder externo que oprime, mas também àquele que habita silenciosamente em nosso próprio olhar.

Fonte: https://revistacult.uol.com.br

No cerne da argumentação de Camus em O Homem Revoltado está o reconhecimento de que “toda revolta que destrói o outro acaba por destruir a si mesma”. Essa máxima não é apenas uma formulação filosófica, mas uma verdade que Camus torna vívida por meio de imagens e exemplos precisos. Ao afirmar que “o homem é a única criatura que recusa ser o que é”, ele indica que a revolta não é um acidente histórico, mas uma dimensão estrutural da condição humana.

Camus descreve o gesto da revolta como aquele em que o escravo diz “não” a uma ordem intolerável. Contudo, esse “não” é paradoxalmente também um “sim”, um sim à dignidade, à justiça, à vida que merece ser vivida. “A consciência vem à tona com a revolta”, escreve ele, sugerindo que é nesse instante de ruptura que o ser humano se afirma como sujeito moral, capaz de dizer basta, mas igualmente de reivindicar em nome de todos. Não por acaso, Camus destaca que “o revoltado não exige somente liberdade para si, mas para todos os homens”.

Essas passagens expressam a dimensão afirmativa da revolta que Camus defende: não se trata de um niilismo cego, mas de uma recusa à aceitação da violência como destino inevitável, de uma exigência por sentido e limites. É essa medida que ele propõe — não como resignação, mas como freio à barbárie disfarçada de razão histórica.

Assim, conclui-se que O Homem Revoltado vai além da crítica à violência legitimada por ideologias. Trata-se, sobretudo, de uma pedagogia do limite, uma convocação ética em tempos de extremos. Em um Brasil onde a polarização política enclausura o pensamento, onde a crítica é confundida com traição e o adversário é reduzido a inimigo, a leitura de Camus adquire uma urgência incontornável.

Sua proposta de uma revolta com medida — uma rebelião que afirma valores sem sucumbir ao dogmatismo, que recusa o assassinato mesmo diante da injustiça — oferece não apenas uma bússola moral, mas um possível recomeço. Tal qual a revolta autêntica, a reflexão camusiana exige coragem: a coragem de não se deixar aprisionar por soluções simplistas, de não renunciar à lucidez, de não converter a indignação em vingança.

Por fim, O Homem Revoltado nos convoca a um retorno à responsabilidade. Responsabilidade por nossas ações, por nossos limites e, sobretudo, pela vida do outro. Em tempos marcados pelo ressentimento, cinismo e pela simplificação violenta, a ética da revolta camusiana — lúcida, imperfeita, mas essencialmente humana — nos lembra que ainda é possível resistir sem odiar, transformar sem destruir e agir sem trair o que há de mais digno em nós.

Ficha Técnica: O Homem Revoltado

Título Completo: O homem revoltado

Autor: Albert Camus

Editora: Record

Ano de Publicação: 17 de agosto de 2017 (para esta edição)

ISBN-10: 8501111252

ISBN-13: 978-8501111258

Número de Páginas: 400

Gênero: Ensaio Filosófico (com inferências em Ciência Política, Ciências Sociais e Filosofia)

Idioma: Português

Sinopse: “O homem revoltado” é um ensaio de Albert Camus, autor laureado com o Prêmio Nobel. A obra explora questões filosóficas relacionadas à liberdade e dignidade humanas, posicionando-se contra regimes totalitários e o terrorismo. Camus discute o absurdo da condição humana e a importância da revolta contra a injustiça, especialmente os crimes cometidos pelo Estado. O livro critica a violência e a opressão justificadas em nome da revolução, defendendo uma abordagem humanista que prioriza os indivíduos em detrimento de sistemas abstratos.

Premiações e Reconhecimentos: Não se aplica diretamente a prêmios literários no mesmo sentido de ficção ou poesia, mas é uma obra amplamente reconhecida como um clássico da filosofia do século XX e um dos textos fundamentais para o entendimento do pensamento de Albert Camus e do existencialismo.

Referências:

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo: Record, 2004.

CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951. Edição digital disponível em: https://classiques.uqac.ca. Acesso em: 25 maio 2025.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 32. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 62. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Polarização política e intolerância no Brasil. Brasília: Ipea, 2022. Disponível em: https://www.ipea.gov.br. Acesso em: 25 maio 2025.

RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SCHELER, Max. O ressentimento na moral. Tradução de Hilton Japiassu. Petrópolis: Vozes, 2003.

FUKS, M.; MARQUES, P. H.. Polarização e contexto: medindo e explicando a polarização política no Brasil. Opinião Pública, v. 28, n. 3, p. 560–593, set. 2022. 

 

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