(En)Cena – A Saúde Mental em Movimento

Quero ser John Malkovich

Podemos afirmar que o sujeito é verdadeiramente aquilo que aparenta ser?

Articulando as discussões da Psicanálise e o filme “Quero ser John Malkovich”, quais forças veladas operam em nossas vidas de modo a nos determinar e definir nossas ações e comportamentos? Indique uma cena (ou mais de uma cena) que materializa esta situação de fragilidade, nomeando personagens em articulação com aspectos conceituais. Lembre-se de refletir sobre as funções de EGO, ID, SUPEREGO e, fundamentalmente, o INCONSCIENTE.

Resposta:

Não. O sujeito é complexo, uma polifonia de vozes (já observado no século XIX por Dostoiévski), e, como diz Lacan, numa clara crítica ao cartesianismo de Descartes, o homem pensa onde não é e é onde não se pensa. O que transparece na superfície do indivíduo é parte do que ele, conscientemente, deixa ser visto. Mas, em uma observação mais aprofundada são nítidas as contradições entre aquilo que a pessoa aparenta ser e o que verdadeiramente é. Essas contradições residem no inconsciente do sujeito, pois se as contradições viessem à tona em sua totalidade no consciente, muito provavelmente o homem se fragmentaria.

Primeira Cena – Marionete
http://youtu.be/LU19Rqy1s9Y

A primeira cena do filme traz uma metáfora da projeção do inconsciente do personagem Craig. Nela a marionete executa uma espécie de dança do desespero. O ápice da cena se dá quando a marionete olha para o alto e “vê” quem tem domínio sobre seus movimentos (Craig), assim ela busca o espelho e nele observa, em vários aspectos, como sua figura é vista pelo outro, a triste figura que ele é e, principalmente, vislumbra a figura que poderia ser. Não suportando o que enxerga, ele destrói o espelho, mas mesmo com a destruição de sua imagem, ele ainda existe. Assim, a marionete pode ser representada pelo EGO consciente, que está preso às regras da sociedade, família etc representados pelos fios que a movem através da autoridade do SUPEREGO (o títere). Em meio a tudo isso, há pulsões que residem no inconsciente do indivíduo, representadas pelo desespero e angústia da marionete.

Na cena seguinte, tem-se o “diálogo” entre Craig e o macaco. Esta cena solidifica a ideia da profunda angústia vivida pelo personagem. “Você não sabe a sorte que tem de ser um macaco, pois consciência é uma maldição terrível. Eu penso, eu sinto, eu sofro”. O seja, por maior que fosse o dom que ele tinha (em relação às questões profissionais, por exemplo), a figura na qual ele estava preso, ou seja, o homem em que ele se transformou, não tinha como seguir adiante, só lhe restava a triste consciência da sua limitação e o cansaço do seu corpo exposto na decadência da sua própria figura. Essa figura decadente é fruto dos recalques às pulsões advindas do seu inconsciente.

Um dos personagens mais intrigantes do filme é a Maxine, dado o enorme poder de manipulação que ela exerce sobre os demais personagens. No entanto, ao invés de discorrer comentários sobre a sua força, é interessante a interpretação de uma possível projeção do seu parceiro ideal (uma junção do homem e da mulher desejados) tendo como base a figura do John Malkovich quando este está sob a influência de Lotte. Pode-se observar que tal junção é o ideal para Maxine, já que ela tem a sua disposição, em um mesmo ser, o corpo do homem e o “olhar” de uma mulher. De igual forma, há em Lotte o desejo de ser para a Maxine essa simbiose “homem e mulher”, que é sentida no momento em que ela é John Malkovich. Daí tem-se a frustração da personagem, pois ao sair do Malkovich, ela retorna sua condição de ser “somente mulher”. Evidencia-se o recalque que é trazido à tona no momento que, sendo John Malkovich, ela dá vazão aos seus mais recônditos desejos, rompendo tais barreiras.

A fila que se forma para “ser John Malkovich” representa um anseio coletivo de ser o outro, quando a pessoa que você é não reflete aquilo que você queria ser. Algumas indagações emergem desse fato: a vontade de ser um outro é universal? Em algum ponto da vida, talvez haja um desejo de desapegar-se do “ego”, não para ser um outro, mas para buscar um “eu” que pela sua própria complexidade é inatingível? Por mais bem resolvida que uma pessoa seja, há sempre uma falta?

Em uma das últimas cenas do filme, pressionado pelo Dr. Lester e por Lotte, Craig tem que decidir entre a vida de Maxine e a sua vida como John Malkovich. Nesse embate, ele percebe que até sua figura como Malkovich é frágil, incompleta, falha. Assim, quando questionado se é Malkovich, ele grita “não sou John Malkovich”. Então, nesse momento, ele deseja separar-se de seu objeto de desejo. Até então, a figura de Malkovich funcionava simbolicamente como um “falo” e separar-se dele, numa atitude de castração, seria seu pior pesadelo. No momento em que o poder advindo do objeto de desejo perde um pouco o sentido pela consciência de sua limitação, ele sai e volta a ser Craig. Isso porque, ao final, ele entende que sempre foi o Craig, mesmo no corpo do outro, ainda era ele.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

QUERO SER JOHN MALKOVICH

Diretor: Spike Jonze
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, Catherine Keener, Orson Bean;
Ano: 1999
País: EUA, Inglaterra
Gênero: Drama

Nota: Questão apresentada pela professora Alice na disciplina de Psicologia Clínica I (2008/1) no curso de Psicologia do CEULP/ULBRA

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