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AS CONTROVÉRSIAS DA CONSTELAÇÃO FAMILIAR EM UMA PERSPECTIVA ÉTICA

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A utilização do método alternativo contraria o Código de Ética do Profissional Psicólogo e acarreta  prejuízos aos pacientes.

 

Daniela Iunes Peixoto – danielaiunesp@rede.ulbra.br

As constelações familiares estão cada vez mais em alta na sociedade atual, especialmente no Brasil. Nota-se que essa prática também vem sendo adotada como instrumento de intervenção por psicólogos, que se denominam como “consteladores” e conduzem as sessões em grupo ou individualmente.

No dia 03 de março de 2023, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma nota a respeito das constelações familiares, apontando que a utilização deste método é contrária às resoluções do órgãos e várias normativas do Sistema de Conselhos de Psicologia.

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Profissional psicólogo.

Mas o que é a constelação familiar? Desenvolvida em 1980 por Bert Hellinger, um teólogo e filósofo alemão, era pautada na crença de um inconsciente familiar. A sessão consiste em uma encenação, na qual os participantes representam os familiares do paciente. De acordo com Hellinger, os “campos de energia” serão responsáveis por fazer com que os indivíduos da cena se comportem telepaticamente do modo correto, o que desencadeará conexões inconscientes e memórias reprimidas no paciente, tanto de seus parentes como também de seus ancestrais (HELLINGER, 1998)

Assim, a prática se assemelha às do psicodrama, por possuir a dramatização de vivências e da psicoterapia breve de ação rápida, já que acreditam ser necessário apenas uma sessão para eficácia. Os participantes recriam cenas que trazem à tona sentimentos que o paciente possui sobre sua família, e na sessão individual, usa-se bonecos, esculturas e outros recursos.

Segundo a teoria do filósofo alemão, todos os integrantes de uma família possuem um papel e, quando há a transgressão desses papéis, diversas formas de violência são experimentadas. No entanto, essa prática não possui qualquer embasamento científico, sendo denominada como uma pseudociência, o que torna o posicionamento do CFP de extrema importância.

No Código de Ética Profissional do Psicólogo, destaca-se o seguinte artigo das responsabilidades do psicólogo:

Prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional (CFP, 2005).

Dessa forma, entende-se que o uso de práticas sem o devido embasamento científico vai contra os princípios da ética profissional do psicólogo. Além disso, destaca-se a não necessidade de uma formação adequada para ser um “constelador”. É necessário realizar um curso, de duração média de seis meses, para se considerar apto a exercer a constelação. Deve-se enfatizar que a prática de constelar não substitui a psicoterapia convencional. Uso de medicamentos e acompanhamento psiquiátrico também não podem ser substituídos, ainda mais por essa técnica tão controversa com os fundamentos éticos da profissão.

Outro ponto ressaltado pelo Conselho Federal de Psicologia em sua nota, cita novamente o Código de Ética do Profissional Psicólogo, relacionando o dever do psicólogo de respeitar o sigilo profissional. No contexto da Constelação Familiar, muitas pessoas possuem acesso às sessões grupais, nas quais esses mesmos indivíduos interpretam os papéis dos parentes do paciente, participando de todo o processo terapêutico realizado. Essa conduta se mostra incompatível com o sigilo profissional e foi devidamente abordada pelo CFP em sua nota técnica. Além disso, considera-se que a prática da Constelação Familiar ainda viola os direitos de gênero e sexualidade respeitados pelo CFP, já que se pauta em conceitos patologizantes das orientações sexuais, das identidades de gênero, das existências que saem do padrão estabelecido pelas relações familiares e pela sociedades (CFP, 2023)

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Família conectada.

A prática também foi implementada no Sistema Único de Saúde (SUS), que a oferta como parte do Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Assim, distribuindo o alcance pela população brasileira e sendo financiada por essa mesma. Vale ressaltar que muitas das teorias apresentadas por Hellinger foram problematizadas. Como por exemplo, quando o autor apresenta que “o amor é geralmente bem servido quando uma mulher segue o marido na língua, na família e na cultura, e quando concorda que os filhos devem segui-lo também”.

Hellinger ainda diz que o embasamento da família consiste na atração sexual entre a mulher e o homem, afirmando que a homossexualidade pode ser acarretada por uma pressão para que a criança assuma o lugar de uma pessoa do sexo oposto no sistema familiar. Dessa forma, a ausência de um papel seria o “grande causador” da homossexualidade (HELLINGER, 2008)

Os trechos destacados pela sociedade não param por aí. O autor ainda alega que quando um pai abusa sexualmente de uma filha, não é culpa dele, e sim da mãe, já que a mesma não proporcionou amor suficiente ao marido. É extremamente necessário destacar o quanto os sistemas familiares contemporâneos se distinguem da ideologia de família apresentada por Bert Hellinger. As famílias monoparentais, as que dividem entre si as responsabilidades financeiras, entre outros modelos encontrados na atualidade, fogem do padrão criado pelo teórico (HELLINGER, 2010)

O Brasil é o único país que tem a constelação familiar como política pública de saúde. Em 2012, passou a praticar a “resolução de conflitos” no Judiciário e, em 2018, foi incluída no plano nacional de medicina complementar.

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Família divórcio.

Diante disso, torna-se possível destacar as influências do uso de tais teorias. Uma problemática muito levantada é a culpabilização da vítima pelas violências sofridas. Os traumas experienciados por essas pessoas, de alguma forma, é redirecionado para si mesmas, o que causa profundo sofrimento em sujeitos que já são vítimas. Levantar sentimentos e traumas do passado de um indivíduo pode provocar diversos prejuízos, principalmente quando quem estimula o relato e é responsável pela intervenção, não possui nenhum repertório técnico  e ético para acolher a demanda.  Existem várias declarações de pessoas que participaram de sessões de Constelação Familiar e se viram em profundo sofrimento após a experiência.

É fundamental que o processo experimentado por aquele indivíduo seja respeitado, e é comum ouvir relatos de pessoas que se depararam com situações que não estavam preparadas para lidar, ou que não tiveram o devido amparo após as sessões. Esse despreparo leva a uma confusão mental dos pacientes. Outro ponto levantado comumente é o perdão, que muitas vezes se faz presente e é estimulado nas Constelações Familiares. Algumas vezes, a pessoa é orientada a perdoar seus agressores, em outras é necessário que peça perdão aos mesmos. A hierarquia patriarcal defendida por Hellinger é uma base para tais crenças.

O método da Constelação Familiar promete, de forma rápida, tratar traumas e situações não resolvidas dentro do indivíduo. Porém, até que ponto é benéfico pular tantas partes do autoconhecimento? A psicoterapia não é breve. Respeita o processo de amadurecimento do paciente, promove reflexões, estimula o autoconhecimento, é sensível com suas reações e acolhe suas dores. O processo de cura não é realizado em algumas sessões, não há como fornecer uma “superação” em duas sessões.

O ambiente, o profissional, os indivíduos presentes, todos esses fatores são decisivos para uma evolução no quadro de certo paciente. Aplicar as teorias abordadas por Hellinger, tocar em feridas profundas que foram construídas ao longo de uma vida inteira, e prometer a “cura milagrosa” em alguns dias fogem de uma conduta ética da psicologia.

O sujeito, que pode ter sido profundamente impactado pelo que experienciou,sai da sessão de constelação familiar sem o entendimento correto do quão intenso foi aquele abalo psicológico, de quais serão as consequências. Diante disso, inclusive, nota-se muitos depoimentos de profissionais psicólogos que recebem pacientes que foram drasticamente afetados por esses métodos alternativos que, inclusive, além de promover efeitos deletérios às pessoas, carece também de evidências científicas.

Sendo assim, o posicionamento do CFP, diante de uma questão tão séria quanto o uso de Constelações Familiares por parte de profissionais psicólogo,s é imprescindível para a comunicar à sociedade a respeito dos possíveis efeitos colaterais da participação nessas atividades, bem como posicionar a categoria profissional numa direção contrária ao que se estimula nas Constelações Familiares. Neste sentido, afirma-se: a prática das Constelações Familiares, bem como seus pressupostos teóricos e filosóficos, são absolutamente contrários aos da Psicologia.

 

REFERÊNCIAS

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional dos Psicólogos, Resolução n.º 10/05, 2005. Brasília, 2005

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota Técnica 1/2023 – Visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar, também denominada Constelações Familiares Sistêmicas. Brasília, 2023.

HELLINGER, B. (2010). Ordens do amor: um guia para o trabalho com Constelações Familiares. São Paulo: Pensamento-Cultrix.

HELLINGER, B. (1998). A Simetria Oculta do Amor. São Paulo: Cultrix.

HELLINGER, B. (2008). Viagens Interiores. Patos de Minas, MG: Atman.

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