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O fascínio pela tela e o desenvolvimento dos sentidos na infância

Os desenhos animados chamam a atenção pelo colorido e pelos efeitos sonoros, ao mesmo tempo em que podem proporcionar, ao corpo, alterações funcionais. A alteração dos batimentos cardíacos quando vemos um desenho de aventura, por exemplo, relaciona-se ao conteúdo bem como a interpretação do conteúdo das imagens e, portanto, tal efeito relaciona-se às emoções humanas. Aquilo que se relaciona à emoção das pessoas pressupõe uma integração entre os sistemas de captação e de compreensão do mundo e de expressão nele.

Desse modo, pode-se dizer, que o fascínio pela tela não éapenas fruto do processo pelo qual o homem se aliena. O fato de as telas dispararem processos que vão além do foco da atenção é condição suficiente para se encarar a televisão como um ativo meio de formação, inclusive afetiva, do ser humano. Isso não é o mesmo que dizer que precisamos das televisões (e congêneres) para nos formarmos. Pelo contrário, ela é apenas um instrumento moderno, potencializado pela tecnologia digital.

http://www.gemind.com.br/3952/televisao-faz-mal-bebes/

A criança, quando nasce, pouco integra e não sabe que integra os seus aparelhos de captação do mundo externo. Apesar disso, avança intuitivamente reagindo ao meio em que se encontra, mesmo que dependa vitalmente de quem lhes faz crescer. Fazer crescer depende de muitas outras coisas além da televisão. A mudança da voz dos pais, músicas, ritmos, luminosidades, vento, objetos com temperaturas diferentes, gostos e tato promovem o desenvolvimento infantil uma vez que faz o bebê integrar seus sistemas de captação de estímulos e informações.

A compreensão que a criança faz do meio em que vive, nos primeiros anos da vida, é pautada em sensações ligadas àsatisfação e à segurança, reconhecendo-as pela diferenciação de sensações opostas que nela gera insatisfação e insegurança. Trata-se de um sistema comunicacional entre tecidos e órgãos que captam estímulos, integrando-os, promovendo uma mistura de incômodos, satisfações, movimentação e cansaço. A criança reage a essas mudanças com movimentos e com sons que são reconhecidos por adultos que, por sua vez, com aquela interagem e promovem, em nível verbal e não verbal, comunicação e, portanto, constroem linguagens.

Tal integração, que se dá nas relações humanas, depende de como integramos, enquanto seres individualiazados e sociais, nossos sistemas de captação, codificação, decodificação e emissão da linguagem. A fala usa e, ao mesmo tempo, cria a linguagem. É a capacidade de nos referirmos ao mundo e, portanto, de dizermos sobre as transformações oriundas do “ir sentindo”, incluindo, nesse fenômeno, os resultados da captação dos cinco sentidos (tato, paladar, olfato, visão e audição) chamados de percepções. Uma vez que o “ir sentindo” depende da comunicação, a fala depende das várias linguagens desenvolvidas por cada agrupamento humano e, portanto, não sópossui o papel de referir sobre o mundo, mas também o de construir as relações e os fenômenos.

O tema da linguagem e da estimulação infantil, nos leva ao tema inicial desse texto, sobre o qual passo a explorar a partir da seguinte questão: qual o papel da televisão e do videogame no desenvolvimento cognitivo infantil?

A televisão e o videogame são eficientes na promoção da linguagem oral e na integração de sistemas de comunicação uma vez que trabalham com as cores, os sons, os símbolos e as emoções. As cores, os sons, os símbolos e as emoções da criança, quando assiste à TV, acomodam-se nas diversas maneiras que a criança as possa acomodar, a depender do espaço que possui, deitadas, em pé, sentadas, de cabeça para baixo e etc. O tempo é também um fator determinante: seguir programas que contam histórias que se conectam ao longo do tempo permite à criança aprender histórias, acumular aprendizados, além de ver como um mesmo contexto (os lugares nos quais se passam os desenhos) pode variar em seus elementos.

Pelo fato de a televisão alavancar o aprendizado por meio da narrativa, descrição e contação de histórias, o tato tende a não ser ativado no momento desse aprendizagem, uma vez que a atenção está voltada para a captação visual e auditiva. O olfato e o paladar também raramente integram-se no aprendizado mediado pela TV. Por outro lado, o contato com brinquedos, com a comida, com animais, com outras crianças, com adultos, com objetos e coisas em geral tende a integrar, na aprendizagem infantil, um número maior de sentidos, desde que dispostos em relações sociais facilitadoras de criatividade, em espaço suficiente para a movimentação e para o brincar além de tempo apropriado para a construção de conteúdos simbólicos. Não adianta ter muitas coisas acessíveis; os objetos são apenas meios de interação e, portanto, de construção simbólica, mas, para tanto, a mediação de outras pessoas (crianças e adultas) é necessária. E ésobre isso que a Pedagogia se debruça.

A televisão e o videogame também possuem a capacidade de mediação entre a criança e o par imagem-som, limitada, contudo, pois eletrônica. Por mais que alguns softwares sejam mais eficientes na comunicação de informações e no estímulo àmemória, pelo fato de integrarem apenas dois sentidos humanos (visão e audição), não possuem capacidade equivalente à mediação humana. Nessa discussão, não estáem questão qual mediação é melhor, mas, antes, visa-se apontar a imprescindibilidade da mediação humana, direta, pele com pele, no desenvolvimento infantil.

Voltando à questão da integração de sistemas de captação, na infância ela pode ser comparada à fome. A criança busca aprender. Isso não é o mesmo que dizer que se trata de um ato voluntário. O meio a estimula, ela reage, buscando-o, descobrindo-o. As metáforas conseguem dizer mais completamente sobre isso: o girassol busca o sol, os mamíferos recém-nascidos buscam a mama, o broto busca o ar, as crianças buscam interagir. O fator simbólico é um elemento que se constitui no início do desenvolvimento da criança. Traspondo o significado das metáforas ao desenvolvimento infantil, diria que as crianças, já em seu primeiro ano de vida, buscam aprender.

Dando prosseguimento às metáforas, pode-se dizer que a criança tende a dedicar mais tempo ao “prato” de sentidos que mais lhe sacia a fome de todos os seus sentidos. Em muitos casos, esse prato é a TV que, por sua vez, tende a excluir três sentidos: o tato, o paladar e o olfato. Nos casos em que o interesse pela televisão é maior, pode-se pensar que o que mais está saciando o interesse da criança pela estimulação é um meio de comunicação que a estimula, mas não por completo. Tal fato leva-nos a afirmar, pelo menos como hipótese, que as relações que a criança, nesse caso, faz em seus diversos aprendizados estão, do mesmo modo que a TV, excluindo a estimulação e a integração dos sentidos, uma vez que a TV, que em geral integra e estimula apenas dois, éo que a mais sacia. A criança, quando acompanha histórias contadas pela televisão, avança, sem fronteiras, nos territórios da atenção, da memória e do pensamento, sem, contudo, integrar nesse processo os sentidos do tato, do paladar e do olfato. Pode-se concluir, também hipoteticamente, que, em muitos casos, o pensar, o atentar-se e o uso da memória desenvolvem-se com um desenvolvimento hipertrofiado da visão, regular da audição e hipotrofiado dos demais sentidos.

As hipóteses levantadas são, logicamente, precipitadas, mas não absurdas. Demandam avaliações também sobre qual posição o desenvolvimento dos sentidos humanos têm ocupado nas relações humanas e no aprendizado escolar. Talvez tais sentidos são, da mesma forma, renegados a uma posição subalterna à visão e à audição.

Primeiramente, quando aqui uso o termo “escola”, não me refiro a todas ou a algumas em específico. Trata-se de um termo para se falar àquilo que julgo ver e haver em comum em muitas escolas brasileiras, baseando-me na observação que já pude fazer, nos artigos relacionados à escola e em minha vivência profissional. Trata-se de um ensaio despretensioso no que tange à comprovação das hipóteses, mas que pretende gerar debate.

As escolas são, em muitos casos, lugares que possuem menos cores que a televisão; tendem à assepsia monocromática desviada com letras e números cuja animação passa desapercebida diante da animação disponível na televisão.

http://www.zun.com.br/cuidados-com-a-voz-do-professor/

O som trabalhado é em geral a fala pausada e, por vezes, cansada, de um professor que é pouco escutado e que não recebe alguma orientação para o cuidado com o seu principal instrumento de trabalho, a voz (sem contar as mazelas que todos, empiricamente, sabemos haver nas condições de trabalho nas escolas); além disso, a tendência é o uso da voz sem explorar sua extensão de tons, de timbre e de ritmos.

Na escola, pouco se estimula o tato, uma vez que o contato com o lápis prepondera sobre o contato com a diversidade da matéria, sua temperatura, sua viscosidade e plasticidade; além disso, o ensino de ofícios (como marcenaria, pintura, carpintaria e etc) é, infelizmente, considerado secundário e reservado ao púbere que se encontra à margem do sistema escolar. A exploração do corpo pela atividade física éfeita da maneira mais disciplinar possível com o declarado objetivo de fazer as crianças gastarem a energia para poderem se aquietarem nas cadeiras. Educação sexual não há, além de uma série de informações que visa o controle de natalidade e a hiperadequação à norma hetero-cristã-sexual.

Quanto ao paladar e ao olfato, a plastificação e uniformização das refeições tem contribuído ao enfraquecimento da capacidade que o ser humano possui no uso desses sentidos. Na escola, o paladar é estimulado apenas recreacional e ligeiramente e o olfato é o mesmo da cidade: de cimento, talvez cinza.

A escola é, portanto, um lugar de estímulos iguais para crianças que querem ver coisas diferentes e que vêem coisas diferentes na televisão, todos os dias. A fala é, na maior parte do tempo controlada, tanto na altura, quanto no tempo e no local, sem contar o controle do conteúdo. A criança que não se interessa pela escola ou se interessa menos por ela do que pela televisão, além de carregar estigmas ligados ao não aprendizado fica dois turnos na escola, o mesmo lugar que, provavelmente, tem grande responsabilidade por sua falta de interesse.

Que efeitos a precariedade de estimulação do tato, do olfato e do paladar produz no aprendizado e, portanto, na constituição do ser humano? Que relação fazemos com nossos próprios corpos e que insistimos em passar culturalmente? Pelo fato de os sentidos estarem ligados ao reconhecimento e à percepção do próprio corpo, tal falta de integração deve levar a alterações em tal reconhecimento e na percepção como um todo. Tal precariedade produz certamente efeitos  na criação do ritmo, na integração dos sistemas de recepção e transfusão de mensagens, na dança, no sexo, nas relações, na vida. Afinal, a dança é apenas, geralmente, uma recreação nas escolas e não um meio de formação social e de percepção corporal!

Os ritmos no viver humano demandam espaço, passagem de tempo diferente do tempo do mercado e que acompanhe as mudanças corporais com uma linguagem corporal criativa e expressiva. O que as crianças escutam e vêem na escola supera, na saciação da fome por aprendizagem, o que escutam e vêem na televisão e nos games?

Talvez o papel da TV seja importante, o que não quer dizer que devemos cultuar a TV. O que quero dizer é que os efeitos da TV são mais potentes do que imaginamos. Mas a pergunta que fica e que talvez me leve a outra escrita é: o que nossas crianças andam a tocar, a ouvir, a cheirar e a degustar no sistema educacional? Que concepção de corpo temos construído socialmente? Que corpos a sociedade tem moldado?

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