(En)Cena – A Saúde Mental em Movimento

Eu, mãe de 6 filhos: uma experiência no SUS

Baseado no relato de Ivone Creuza Santos Antunes

15 de maio de 2018, Conceição do Araguaia-PA

Somos de São Paulo-SP. Mudamos para Conceição do Araguaia-PA em julho do ano de 1998. Todos os nossos familiares ficaram lá enquanto eu, meu esposo e nossos 5  filhos viemos embora, a saber: Aline, Thiago, Angélica, Samuel e Letícia.

Na segunda metade do ano de 1999 descobri que estava gestante há 3 meses e que a família iria aumentar um pouquinho. Esperávamos uma menina.

Tinha muita preocupação em relação à assistência que receberíamos, por que eu já sabia que na cidade quase não havia recurso. Sendo assim, comecei a fazer o pré-natal em uma clínica particular e ao final do acompanhamento falei para a médica que eu queria muito que ela fizesse meu parto já que eu não conhecia nenhum médico da cidade. Ela negou alegando que o parto teria que ser pago. Eu então perguntei o valor e ela apenas sorriu na minha cara. Falou o nome de alguns médicos e falou para eu procurar outra pessoa. Naquela época a cidade era comandada pelos médicos. Eles eram tão unidos que sempre que chegava algum novo, davam um jeito de mandar ir embora.

Não foi muito fácil no início, pois ainda tínhamos pendências para resolver em São Paulo.

Já nos dias perto do nascimento da nossa filha, meu esposo recebeu um comunicado e teve que viajar às pressas. Mas pediu ao seu primo, Mário, que morava na mesma cidade, que desse assistência à nossa família enquanto ele estivesse longe. E assim foi.

Certo dia, estava na minha casa e comecei a sentir as dores. Na época nós tínhamos uma Kombi e um irmão da igreja, amigo nosso, dirigiu rumo ao hospital.

Como a cidade era pequena e com poucos recursos,  resolvi ir direto para o hospital particular da cidade o “São  Lucas”, pois achava que era o melhor.

Cheguei lá a noite e passei bastante tempo andando de um lado para outro já quase sem aguentar de tanta dor. Enquanto isso, as enfermeiras sorriam, conversavam, brincavam. O assunto tava mais interessante do que as minhas contrações sufocantes. Passado certo tempo, fizeram o exame para saber quanto tinha de dilatação e continuaram conversando.

Fonte: https://goo.gl/RJ71bL

 Quando eu senti que os ossos do meu quadril se abriram, não consegui mais andar e a dor só piorava. Eu dizia:

– Por favor!  Não estou  aguentando mais!..

A resposta era sempre a mesma:

-Continua fazendo força. Agora é com você!

-Ela já vai nascer!!

-Faz força, “siá”.

E o assunto delas ainda era mais importante do que minha filha que já estava quase nascendo enquanto eu ficava imóvel de tanta dor no corredor do hospital.

A cada vez que eu as interrompia, percebia que elas se irritavam mais.

Era a noite do dia 15 de maio de 2000. E finalmente quando elas viram que já era hora, uma foi preparar a cama, colocar a escadinha para eu subir. Pensei “Eu não consigo nem me mexer, como vou subir uma escada?”

Consegui me ajeitar e finalmente minha bebê nasceu. Mas não ouvi o chorinho dela. Muito estranho, pois todos os 5 filhos choraram, menos ela.

As enfermeiras a levaram para fazer os procedimentos e eu fiquei naquela cama, sem ninguém para me preparar. Tive medo de contrair alguma infecção.

Logo depois me trouxeram ela. No quarto tinha apenas um ventilador e eu com tanto calor que o suor escorria. Coloquei a Luciana na ponta da cama para o vento não ir nela, enquanto esperava passar aquele calor insuportável. Fiquei olhando tentando imaginar se ela seria branquinha ou morena, já que só eu e o Thiago somos negros. Mas ela tinha a cor estranha, era pouco acinzentada com tons rosados.

Na manhã do dia 16 fui liberada para ir embora. A irmã Camila foi me buscar no hospital e levar para casa.

A Leticia e o Samuel eram bem pequenos, ela tinha quase 2 anos e 8 meses, ele faria 4 aninhos dois dias depois. Os dois estavam brincando na terra, todos sujos. Quando viram que nós havíamos chegado,  ficaram elétricos, ansiosos para conhecer a irmã recém nascida. Falei para tomarem banho primeiro e foram correndo, disputando quem terminaria primeiro. Não demorou muito tempo e vieram, os dois, limpinhos e cheirosos para ver o rostinho da nossa bebê.

Lembro que a Camila estava dando banho nela na banheira e o Samuel chegou a jogar água com aquela mãozinha pequena. Os olhos deles brilhavam de tanta felicidade.

No meio da tarde a Luciana começou a  chorar desesperadamente e pela minha experiência, acreditava que fosse cólica. Pedi ao Thiago que fosse na farmácia comprar um remedinho enquanto eu massageava a barriguinha dela na esperança que aquele choro cessasse.

A Luciana chorava demais e resolvi levá-la ao hospital. Naquela hora tinha uma pessoa nos visitando e ela foi comigo. Enquanto eu dirigia, a nossa amiga segurava minha filha em seus braços.

Fui até o hospital mais próximo de casa, mas não quiseram atender pois ela não tinha nascido lá. Então fui correndo novamente para o hospital São Lucas. Estava escuro lá dentro, não tinha ninguém na recepção. Chamei, chamei até que veio um rapaz. Expliquei o que estava acontecendo e ele me disse que a consulta era particular, eu implorei para que nos atendesse pois tínhamos saído cedo de lá, mas ela não estava bem. Eu já estava desesperada e perguntei se tinha recurso para minha filha. Ele disse que não. Resolvi sair correndo para o Hospital Regional.

O médico, ainda no corredor, viu que minha filha chorava muito e perguntou o que estava acontecendo, expliquei a situação. Mais uma vez, ouvi o médico dizer que  não tinha condições de atender minha filha. Segundo ele, no hospital só tinha “injeção para cavalo”. Como estávamos no corredor, a enfermeira chefe  viu e me perguntou onde ela tinha nascido. Em pouco minutos ligou no São Lucas e falou que eu podia ir que eles iriam me atender.

A noite estava chegando e então voltei para o hospital onde ela nasceu. Ao chegar lá, fui muito mal recebida, as pessoas me olhavam com expressão de desprezo e me deixaram falar com o médico.

Fonte: https://goo.gl/e5GGGq

Ele veio, examinou minha filha e começou a resmungar que ela estava desidratada, falou comigo como se eu não tivesse cuidado da minha filha. Fiquei indignada! Onde já se viu dar água para uma bebê recém nascida??!  Ele saiu no corredor sem nem olhar no rosto das enfermeiras dizendo:

-Aplica isso, aquilo, coloca tal coisa!!

E logo vieram as enfermeiras para aplicar medicamento. Começou a saga para encontrar a veia da Luciana. Fura daqui, dali e nada de achar.

Meu coração se partiu em mil pedaços, estavam judiando da minha bebê. Algum tempo depois a moça que estava comigo comentou que poderiam encontrar alguma veia na cabeça e só então eu lembrei que quando o Samuel e Thiago foram internados com pneumonia, o medicamento era na cabeça. Na hora me culpei por não ter lembrado desse detalhe e por deixar furarem minha filha tantas vezes.

Perguntei à elas se poderia ser feito isso. E a resposta foi:

-Pode ser sim, mas nós precisamos da sua autorização para raspar o cabelinho dela.

“O que era cortar um cabelo, que pode crescer depois, perto do sofrimento que estavam causando na minha filha tão pequena???”

Nesse período em que me ausentei de casa, a irmã Edna ficou com as crianças enquanto a Aline, que é a mais velha, não chegava da escola.

Mais tarde o Mário ficou sabendo do ocorrido e foi atrás de nós no hospital, ao chegar lá perguntou se tinha condições dela ser bem atendida e que dinheiro não seria o problema já que era só disso que eles falavam.

Decidimos levá-la à Araguaína, e o médico falou que ela não aguentaria a viagem, a menos que tivesse uma bomba de oxigênio.

Dessa forma, começamos a procurar quem tinha essa bomba já que não tinha no hospital. Fomos atrá de três médicos. Um tinha mas estava quebrada, o outro tinha mas faltava uma parte, e a outra já tinha emprestado.

Conseguimos achar um no Hospital Regional, mas a enfermeira não podia emprestar e deixar o hospital sem.

Insisti tanto com ela e prometi que devolveria logo. Ela percebeu o tamanho do meu desespero e resolveu emprestar. Pediu segredo absoluto pois ela poderia ser prejudicada.

Finalmente conseguimos a bomba, mas na hora de testar, percebeu-se que não tinha a máscara que colocava no rosto. A enfermeira pegou um frasco de soro que estava vazio e improvisou uma máscara.  Conseguimos o botijão com o oxigênio que segundo eles estava cheio e poderia aguentar ir até Goiânia, apesar de Araguaína ser perto.

Na madrugada do dia 17 seguimos viagem. Eu, o Mário e a irmã Camila. Ela foi levando minha filha no colo, pois eu tinha medo de algo pior. Por vezes perguntava se a Luciana estava respirando. Ela dizia que sim.

O Mário conseguiu contactar um amigo de Colinas e contou que estava levando a filha do Zé (meu esposo), em estado grave. Esse amigo dele conseguiu uma clínica e falou que poderíamos ir. Naquele dia eu só tinha almoçado e não comi mais nada, já estava fraca.

Durante a viagem, perguntava se minha filha estava respirando e a Camila dizia que sim. O Mário corria bastante para chegar o mais rápido possível.

Em dado momento vimos as luzes da cidade e ele falou que em 15 minutos já estaríamos lá. Me enchi de esperança! Perguntei novamente se a Luciana respirava. Mas logo desta vez a Camila respondeu:

-Quando chegar lá a gente vê!

Ao chegar na clínica, ainda de madrugada, a equipe estava na porta esperando a gente chegar e eu nem tive forças de descer do carro. Eles pegaram a criança e a médica gritou:

-Nesse botijão não tem oxigênio!!!!

Foram depressa para a clínica e lá de fora eu via eles colocando ela na mesa para examiná-la, enquanto todos ao redor estavam de cabeça baixa.

Eu ainda dentro do carro já estava pensando no que poderia ser.

Logo a médica veio, toda carinhosa dizendo:

-Ôh, Mãezinha! A sua filha não resistiu… E vocês não podem ficar aqui por que ela veio a óbito ainda em trânsito. Agora você precisa ser forte por que tem mais 5 te esperando! Eles precisam de você!

Me doparam de medicamento e pouco tempo depois tomamos viagem de volta à Conceição do Araguaia.

A Camila novamente levou ela em seus braços, já sem vida. O Mário abriu as janelas do carro na intenção de não dormir por causa do vento. E como entrava um vento gelado, algumas vezes cobri minha filha, pensei “Ela deve estar com frio!”.

Chegamos na nossa cidade quando o dia já estava amanhecendo e fomos direto na funerária comprar o caixãozinho dela. Era branco. Lá mesmo colocamos ela no caixão.

O seu sepultamento foi marcado para às 11h. Fui para a minha casa mas não  tive coragem de dizer aos pequenos o que havia acontecido. Na época ainda não era todo mundo que tinha telefone e o Thiago pegou a bicicleta e foi contar para os nossos amigos e irmãos na fé.

Quando deu a hora de ir para o velório, no cemitério mesmo, o Mário foi me buscar em casa. Deixei o Samuel e a Leticia em casa pois não queria que eles vissem aquilo.

Fui para o cemitério. Sobre duas cadeiras estava o caixãozinho com a minha Luciana.

Em determinado momento olhei perto de uma coluna e vi o Samuel olhando para a irmãzinha com o semblante triste e de cabeça baixa.

Não aguentei! Foi demais para mim! Me dilacerou…

Por fim, enterraram ela e eu nem quis mais ver nada.

Hoje ela completaria 18 anos. Não chegou a ser registrada e não tem certidão de óbito.

Fonte: Arquivo Pessoal

Não existe nenhuma foto. Nem seu pai o conheceu. Para o cartório ela nem existiu. Mas fez parte da nossa história e nunca deixou de ser minha filha. O único registro que temos dela é o exame do pezinho.

Luciana Antunes viveu quase dois dias, mas permanece em nossa memória até hoje. Quando me perguntam quantos filhos eu tenho, digo que tive 6, mas uma morreu.

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