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Entre conchas e algas: Ariel, a princesa ruiva pseudomoderna

Ariel é a princesa da Disney lançada em 1989, baseada no conto homônimo do escritor Hans Christian Andersen. Em todos os filmes da Disney, a família branca, nuclear e de classe média é utilizada como símbolo generalizado de unificação ideológica. A unidade mínima através da qual a Disney define sua visão de capitalismo, gênero, identidade nacional e atitudes de classe (Giroux, 1995).

Depois de uma série de princesas baseadas em jovens da idade média (Branca de Neve, Bela Adormecida), surge Ariel, a Pequena Sereia. Para resgatar seu prestígio, a Disney busca uma figura mitológica, a sereia, e faz uma releitura para os tempos contemporâneos, realizando uma adaptação para uma história infantil.

Como as suas antecessoras, Ariel também é jovem, tem 16 anos de idade; e tem a mesma sina: apenas um beijo apaixonado do príncipe pode salvá-la.Mas, diferente das princesas anteriores, ela não espera pela sua chegada, ela vai atrás dele.

A princesa é uma sereia que mora no fundo do mar, e, insatisfeita com sua realidade, passa a espiar a vida dos seres humanos, ignorando os conselhos de seu pai. Eis que ela conhece o príncipe Eric e o salva de uma tempestade, mas vai embora antes que ele possa conhecê-la.

A bela faz um pacto com a bruxa Úrsula, trocando sua voz por um par de pernas. Caso conseguisse um beijo de amor do príncipe, em três dias, se tornaria humana para sempre.

Se superarmos a fantasia, vemos aí uma importante implicação simbólica, pois Ariel troca a sua voz, seu instrumento de manifestação, pela forma humana, para tentar conquistar o príncipe. E sabe-se que a capacidade de expressão foi a principal forma de poder, ao menos inicialmente, dos movimentos feministas.

Para convencer Ariel da troca, Úrsula, a bruxa do fundo do mar, convence a sereia de que homens não gostam de mulheres que falam. Que, para Giordan (2012) é uma mensagem clara de que as mulheres devem ser recatadas, obedientes e concordarem com tudo o que lhe disserem, não tendo ‘voz própria’, renunciando às suas opiniões e seus desejos.

Giroux (2003) traz um comentário interessante em relação a essa personagem, que trago na íntegra dado a sua importância:

A Ariel deste filme se converte em uma metáfora da narrativa tradicional da dona de casa. Quando a bruxa do mar, Úrsula, diz a Ariel que ficar sem sua voz não era tão grave porque os homens não gostam de mulheres que falam, a mensagem se dramatiza quando o príncipe tenta conceder o beijo do amor verdadeiro a Ariel apesar dela nunca ter falado. Dentro desta narrativa de limites tão restritos, a feminilidade dada a Ariel é a recompensa de casar-se com o homem adequado e renunciar sua vida anterior desprezível do mar na qualidade de modelo cultural para o universo das eleições femininas e o processo de tomar decisões segundo a visão do mundo da Disney (Giroux, 2003, p.136).

Trocar sua voz por um par de pernas para conseguir encantar o príncipe tem uma significação tão grande, que implica em várias interpretações. Primeiro a ligação com o mito original da sereia, como um ser mitológico que seduz os homens com sua voz encantadora, para depois os matar.

Deste modo, sem voz, Ariel não corre o menor risco de sucumbir às intenções de suas ancestrais. E depois ao atual fenômeno de mudança do corpo, onde mulheres recorrem a procedimentos cirúrgicos para se tornarem mais belas. Estão dispostas a pagar o preço de uma mutilação em nome da beleza. Vale tudo para conquistar o sexo oposto?

A construção da identidade de gênero feminino nos filmes da Disney é uma questão forte. Como em outros filmes, em Ariel a personagem está subordinada a um homem.

Mas ela é uma princesa que luta por isso, para sair de seu mundo, para conquistar o que deseja, ainda que para isso tenha que abrir mão da sua voz. Essa questão ilustra a condição da mulher no final da década de 80, época em que foi lançado o filme. Muitas estão se inserindo no mercado de trabalho, e, na tentativa de conciliar carreira, marido e filhos, se vêem obrigadas a abrir mão de alguma coisa em busca de seus sonhos.

A tensão entre rebeldia e aceitação também se expressa na aparência física da personagem, o cabelo vermelho, um sinal claro de rebeldia. A figura mitológica original da sereia tem o cabelo loiro. Alguns experts especulam sea escolha do cabelo ruivo da personagem deu-se porque ela passava vários momentos do filme em cenários escuros, o que inviabilizava o tom amarelo, predominante nas princesas da Disney. Creio não ser este o motivo. Precisando adaptar a figura mitológica para um cenário contemporâneo e infantil, a Disney escolheu o cabelo vermelho, o que costuma conferir ao personagem uma imagem rebelde e moderna (CASTELO, 2010).

Em relação a sua aparência, Ariel é como as demais protagonistas dos desenhos da Disney: altamente sensual, magra, seios fartos, cintura fina, cabelos sedosos e esvoaçantes. Uma alusão a própria boneca Barbie. Sob uma aparente ingenuidade, passa a ideia de que meninas devem dar atenção à imagem, à aparência.

Quase 25 anos se passaram desde o lançamento de Ariel, e, podemos nos perguntar qual o efeito da cultura da mídia e seu efeito socializante, colocando a disposição imagens e figuras com o qual o público possa se identificar. Será que a geração que cresceu assistindo Ariel, ainda que seja de mulheres independentes, inseridas no mercado de trabalho, continua vivendo sob essa crença, preferindo não discutir com seus maridos para preservar o casamento? Eu ousaria dizer que sim. Será que elas ainda se preocupam em ter seios fartos, cinturas finas e cabelos longos, a despeito de sua dupla jornada como mulher e esposa? Eu também ousaria dizer que sim.

Referências:

BRAGA, Mônica Mitchell de Morais. Saga da Pequena Sereia – os Estudos Culturais “No maravilhoso mundo da Disney”. Revista Humanidades em Foco, ano 2, nº 4, out-dez, 2004, ISSN 1807-9032. Disponível em: <http://terra.cefetgo.br/cienciashumanas/humanidades_foco/anteriores/humanidades_4/textos/cultura_arte_pequena_sereia.doc> Acessado em 15 de janeiro de 2014.

CASTELO, Hilton. A representação do ato de fumar no processo de construção do ethos.Intratextos, UERJ, Rio de Janeiro. vol. 2, nº 1, pp. 20 – 32, 2010. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intratextos/article/view/1757>

GIORDAN, Isabela. Ser ou não ser princesa? Eis a questão. Afinal, devemos ser salvas pelo princípe ou nos tornarmos heroínas de nossas histórias? WebJornal – Unesp, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Departamento de Comunicação Social. 29/06/2012 Disponível em: <http://www.mundodigital.unesp.br/webjornal/materia.php?materia=2713> Acessado em 13 de janeiro de 2014.

GIROUX, Henry A. ‘Memória e Pedagogia no Maravilhoso Mundo da Disney. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos Estudos Culturais em educação. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.

_____. La cultura infantil y la películas de dibujos animados de Disney. In: Cine y entretenimiento Elementos para una crítica política del filmes paiados. Barcelona: Ed. Paiados Ibérica, S.A, 2003.

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