(En)Cena – A Saúde Mental em Movimento

Moonlight: Um Olhar Sobre o Masoquismo

Concorreu com oito indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Barry Jenkins), Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali), Melhor Atriz Coadjuvante (Naomie Harris), Melhor Roteiro Adaptado (Barry Jenkins), Melhor Fotografia (James Laxton), Melhor Edição ( Joi McMillon e Nat Sanders), Melhor Trilha Sonora (Nicholas Britell).

Vencedor nas categorias:

Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali) e Melhor Roteiro Adaptado (Barry Jenkins).

Leia Moonlight: sob a luz de Narciso – Parte 1

Chiron é um adolescente da periferia, tímido e acuado, que sofre bullying desde a infância. É filho único de uma mãe viciada em crack que se prostitui para manter o vício. Pela condição da mãe, desde cedo Chiron aprendeu a se virar sozinho (Parte 1).  Ao fugir de um grupo de garotos, é encontrado por Juan, um traficante, que junto com sua namorada Tereza, “adotam” Chiron e começam a dar suporte financeiro e emocional a ele. Mesmo assim, é sua relação com a mãe que definem, realmente, a personalidade do garoto, que chega à adolescência cheio de conflitos, pessoais, familiares e sociais.

O comportamento submisso de Chiron em sua relação com a mãe também se apresenta nas interações sociais. Na escola o bullying continua ferindo-o e, apesar de crescido, ele continua sendo chamado de Little, mas não gosta do apelido. A timidez de Chiron permanece gritante e sua sexualidade, reprimida.

Em um sonho ele observa Kev, o amigo de infância, transar com uma garota por trás, uma clara alusão ao sexo anal e uma revelação inconsciente de seus desejos homossexuais latentes. O sonho se dá logo após Kev relatar detalhes de uma transa com uma colega dentro da escola.

O desejo implícito de Chiron por Kev é bastante plausível. O amigo é o único que desde a infância lhe dá atenção; sendo bom de briga, tentou ensiná-lo a lutar para se defender dos colegas; também é o único que não o chama mais pelo apelido de infância (Little), mas lhe confere um outro status de grandeza ao chama-lo de Black, algo que intriga Chiron, afinal por que ele lhe coloca apelidos que não conferem com sua representação? Que intimidade é essa que lhe invade a alma sem permissão?

A baixa autoestima do adolescente continua a isolá-lo de todos e seus conflitos internos se intensificam. É no mar, onde Juan o ensinou a nadar, que ele busca refúgio, sob a luz do luar e a brisa da solidão. Mas é ali também que Kev aparece para tira-lo da água e apresenta-lo ao fogo. A água para Chiron simboliza não apenas o acolhimento de Juan, mas faz alusão ao ventre materno e à ligação simbiótica com a mãe, da qual ele nunca conseguiu se desvencilhar, aquela à cujo desejo ele continua escravo numa eterna tentativa de satisfaze-la para em troca conseguir, em seu olhar de aprovação, reconhecer a si mesmo e experimentar a sensação de pertencer ao mundo.

O fogo a que Kev se refere vai além do baseado com o qual provoca o amigo, também, é sob o efeito deste que eles compartilham suas angústias e se tornam mais íntimos. É ali mesmo que Chiron tem sua primeira experiência sexual, com o amigo.

Como bem disse Augusto dos Anjos, “a mão que afaga é a mesma que apedreja” [1].

Freud constata: “Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca estamos tão irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou o seu amor.” Acho essas frases são notáveis porque elas dizem claramente o paradoxo incontornável do amor [2].

Ainda embebecido com a nova situação, Chiron é surpreendido quando os valentões da escola provocam Kev, o exibicionista, que topa o desafio de bater em alguém, o alvo: Chiron, que em seu silêncio apanha e se levanta repetidas vezes até que lhe é desferido o golpe final e os colegas o espancam.

O choque pode ter reproduzido em Chiron o trauma do abandono materno, a primeira pessoa que devendo ama-lo o rejeitou, impedindo-o de experimentar a completude. Kev refez o mesmo caminho na mãe, fazendo-o acreditar no amor, trazendo a esperança da completude e, em seguida, e rejeitando-o. Na impossibilidade de significar tamanha dor, pela primeira vez, o garoto reage oferecendo a outra face.

Durante toda a vida, Chiron se permitiu ser a vítima, ocupando uma posição claramente masoquista diante da vida. A força do trauma faz com que ele reaja, masoquisticamente, mas desta vez com uma dose de sadismo. Fromm [3] afirma que tanto o sadismo como o masoquismo têm sua origem na relação simbiótica entre a mãe grávida e o bebê e, por isso, caminham lado a lado. Nem Hittler escapou à isto.

Hitler reagia primordialmente de maneira sadista para com o povo, mas masoquistamente para com o destino, a história, o “poder mais alto” da natureza. Seu fim — o suicídio em meio à destruição geral — é tão característico quanto o foi seu sonho de sucesso, de dominação total. (Fears of Escape from Freedom, E. Fromm, Londres, Routledge, 1942).

No momento do confronto, o que se vê é Chiron chegando ao limite da dor psíquica experimentada até então em sua posição humilhante, a cada vez que se levanta ele coloca a cara a tapa e se entrega à violência como se quisesse não apenas ver até onde vai, mas buscando o fim. Por outro lado, seu olhar não é mais o mesmo, mas encara o oponente, deixando claro que por sua dor também o fará sofrer.

“O eu se atormenta a si mesmo, faz mal a si mesmo para saber o que sentirá o Outro atormentado. É ali que Freud utiliza o verbo na sua forma reflexiva: “ atormentar-se a si mesmo”. Compreendemos assim que o nosso terceiro tempo do sadismo propriamente dito comporta dois momentos: o de fazer mal a si mesmo e o de fazer com que o Outro experimente a mesma dor que se sentiu.” (Nasio, 1997) [4].

É por isso que, mesmo diante do pedido de Kev para que se mantenha ao chão, ele se coloca em pé repetidamente, a cada vez que se levanta ele se fortalece. Seu olhar inicial, assustado e evitante, vai se tornando mais seguro, firme, altivo, como quem sabe o que quer, e ele quer com a sua dor provocar a dor do outro, como quem busca colocar um ponto final em sua atitude passiva (masoquista) passando então para uma posição ativa (sádica).

E, como se ainda faltasse um passo para o limiar da dor, ele ouve da assistente social da escola que ainda é um menino, “se fosse homem teria mais quatro a seu lado”. Finalmente, ele chora, confrontado com toda a sua impotência. Chega ao limite. E Chiron torna-se Black.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

(Versos Íntimos, por Augusto dos Anjos)

REFERÊNCIAS:

[1] ANJOS, Augusto dos. Eu & Outros Poesias. V.1. Rio de Janeiro: Civilização/Itatiaia, 1982, p.117.

[2] MOMBACH, Euremilter Maria. Amor, Narcisismo e dor. Disponível em: <http://www.circulopsicanaliticors.com.br/_files/artigo/11/5632676f33464.pdf>.

[3] FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[4] NASIO, J.-D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MOONLIGHT: SOB A LUZ DO LUAR

Diretor: Barry Jenkins
Elenco: Alex Hibbert, Ashton Sanders, Trevante Rhodes, Naomie Harris, Mahershala Ali
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 14

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