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Sessão de Terapia – Júlia e Sofia: o amor de transferência e a “queda” do analista

Sessão de Terapia é um drama televisivo brasileiro original da Globo Play, adaptada por Jaqueline Vargas, com roteiros de Cadu Machado, Ana Luiza Savassi, Luh Maza, Ricardo Inhan, Marilia Toledo e Emilio Boechat, sob direção de Selton Mello. A série conta com Zé Carlos Machado (o psicanalista Theo) e Selma Egrei (a supervisora Dora) nos papéis principais nas três primeiras temporadas e Selton Mello (o psicanalista Caio) e Morena Baccarin (a supervisora Sofia) a partir da quarta.

A produção lançada em 2012, ilustra o que seria um consultório de psicanálise e acompanha a rotina de um psicanalista e seus pacientes. E o conteúdo abordado na série é especialmente focado nas questões emocionais e nos conceitos de psicanálise e psicologia trazidos e ilustrados pelos personagens.

A série tem relevante valor pedagógico para os estudantes das áreas da saúde mental pois as histórias, escritas sob orientação de psicólogos, descrevem os abstratos e desafiadores institutos da teoria psicanalítica entre os quais: transferência; complexo de édipo; inibição sintoma e angústia.

No presente texto, os casos de apaixonamento analista-paciente retratados nas histórias das personagens Júlia (1ª Temporada) e Sofia (4ª Temporada) serão usados para facilitar a compreensão do conceito freudiano de “amor de transferência” ou transferência erótica.

Caio e Sofia na abertura da 4ª temporada de Sessão de Terapia – Globo Play

Iniciemos com a teoria!

Em A Dinâmica da Transferência, escrita por Freud em 1912, o autor explica “como surge necessariamente a transferência numa terapia analítica e como ela chega a desempenhar seu conhecido papel no tratamento”. (FREUD, 2010, p. 101).

Para Freud, todo ser humano teria um modo característico de conduzir a vida amorosa, no que tange: às condições que estabelece para o amor, aos instintos que satisfaz e aos objetivos que coloca. E esse padrão é repetido diversas vezes em diferentes relacionamentos experimentados pelo sujeito. Contudo, somente parte do mencionado padrão, “impulsos que determinam a vida amorosa”, estaria acessível à personalidade consciente daquele que o pratica, outra parte está inconsciente. Ou seja, “foi detida em seu desenvolvimento, está separada tanto da personalidade consciente como da realidade, pôde expandir-se apenas na fantasia ou permaneceu de todo no inconciente, de forma que é desconhecida da consciência da personalidade”.  (FREUD, 2010, p. 101).

Deste modo, Freud alerta os psicanalistas acerca do amor de transferência, assegurando ser normal que o investimento libidinal de uma pessoa em parte insatisfeita, mantido esperançosamente em prontidão, seja ele consciente ou inconsciente, também volte-se para o médico. (FREUD, 2010, p. 101).

Fonte: encurtador.com.br/bDX07

A transferência, enquanto deslocamento do investimento libidinal, não é prerrogativa da psicanálise ou da psicologia, mas pode ocorrer em qualquer relação experimentada pelos sujeitos. Porém, no contexto da análise o fenômeno ocorre com mais intensidade devido tanto ao propósito de atuar como a mais forte resistência à continuidade da análise decorrente dos conteúdos recalcados no inconsciente, quanto à tarefa da psicanálise de decidir todos os conflitos utilizando como ferramenta o manejo da transferência.

O texto A Dinâmica da Transferência de 1912 identifica tipos de transferência: de cooperação, a transferência positiva sublimada, ou de resistência, a transferência negativa que se dá tanto nos casos em que o vínculo transferencial adquire um caráter hostil, quanto nos casos de transferência erótica, quando o vínculo transferencial assume um caráter sexual. Desta feita, esclarece Freud que:

é inegável que o controle dos fenômenos da transferência oferece as maiores dificuldades ao psicanalista, mas não se deve esquecer que justamente eles nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos dos pacientes. (FREUD, 2010, p. 108).

No texto de 1915 Observações sobre o Amor Transferencial, Freud explicou existência e as formas de manejo ético e profissional que o analista deve ter ante à transferência erótica ou amor de transferência. Trata-se de uma inclinação amorosa do paciente que torna-se intensa e que tem origem na necessidade sexual direta do analisando, o que inevitavelmente produziria uma oposição interna à continuidade da análise. (FREUD, 2010).

Fonte: encurtador.com.br/zDST4

Deste modo, o apaixonamento pode ser visto como um esforço do analisando de manter recalcados conteúdos inconscientes e distrair o analista que começa a se aproximar desses temas.

No que tange à contratransferência, ou seja os efeitos do enamoramento do paciente na psiquê do analista, que, por vezes e a depender das condições de sua própria análise poderia reconhecer-se também enamorado e disposto a concretizar a fustigada relação, Freud explica:

para o médico, significa um valioso esclarecimento e um bom aviso quanto a uma possível contratransferência que nele se prepara. Ele tem que reconhecer que a paixão do paciente é induzida pela situação analítica e não pode ser atribuída aos encantos de sua pessoa, e que, portanto, não há motivos para ele ter orgulho de uma tal “conquista” como seria chamada fora da análise. (…) o analista nunca deve aceitar a ternura que lhe é oferecida. Já dei a entender que a técnica analítica exige que o médico recuse à paciente necessitada de amor a satisfação pela qual anseia. Seria um grande triunfo para a paciente se a sua proposta de amor tivesse efeito, e uma completa derrota para o tratamento. (…) O caminho do psicanalista é um outro, para o qual não há modelos na vida real. A paciente, cuja repressão sexual não foi abolida, apenas impelida para trás, se sentirá então segura o bastante para trazer à luz todas as suas condições para o amor, todas as fantasias de seu anseio sexual, todas as características de sua paixão, e a partir delas abrirá por si mesma o caminho até os fundamentos infantis de seu amor. (FREUD, 2010, p. 161-163-165-166).    

A atitude psíquica frente aos aspectos infantis reprimidos promoveria a transferência erótica como uma forma de resistência, um processo defensivo do ego frente ao analista.  (SANTOS, 1994).

No inconsciente, o campo pulsional, os conteúdos que não foram satisfeitos e ficaram reprimidos tendem a retornar e exigir satisfação. Deste modo, o analisando, sob as condições favorecidas pela relação analítica repete o conteúdo da pulsão: seu modo de amar, seu modo de odiar e suas relações sexuais. E, com isso, tenta “resolver suas demandas afetivas insatisfeitas (o reprimido infantil), reatualizando-as perante a figura do analista. E cabe manejar a relação transferencial como sendo ferramenta de trabalho, conduzindo o analisando a insights, por meio da associação livre acerca dos conteúdos reprimidos que se expressam na relação que o paciente estabelece com o analista. (SANTOS, 1994).

A relação transferencial logo se converte em um poderoso estímulo que influenciará sua decisão no sentido desejado, isto é, no sentido de continuar a análise e enfrentar o conflito normal, com as suas resistências.

Agora, voltemos à série Sessão de Terapia!

Júlia – 1ª Temporada.

A transferência erótica da personagem Júlia, analisanda/paciente, e seu analista Théo, marca todos os capítulos da primeira temporada e interfere, inclusive, na vida pessoal do terapeuta, na sua supervisão e na relação deste com outros pacientes.

Julia em sessão com Téo. Globoplay

A bela e triste médica Júlia, se apaixona pelo analista Téo, no contexto da análise e se esforça por seduzi-lo e converter sua fantasia em relação sexual concreta. Contudo, como bem advertia Freud, a paixão descrita na história de ficção tratava-se, em verdade, de um subterfúgio inconsciente adotado pela analisanda/paciente para evitar a continuidade do tratamento analítico, justo quando este começa a ganhar corpo e a provocar o acesso às memórias encobridoras do sofrimento experimentado por ela decorrente um abuso sexual sofrido na adolescência. Ante à angústia que se avizinhava ela, então, precisava agir e atrair sexualmente o psicanalista para evitar que a análise continuasse e desvelasse um conteúdo insuportável. 

Detalhe, o abusador de Júlia tinha características semelhantes ao analista: era também um homem quase 30 anos mais velho, casado a quem ela teria dado pistas de interesse sexual, quando esperava proteção paternal. 

Ainda no caso Júlia, vale destacar o papel de Theo, na contratransferência. O analista representado na primeira fase da série é afetado pelo apaixonamento da paciente. Ela é uma mulher muito bonita e seus esforços para seduzir o analista chegam justo quando ele está se divorciando.

Por fim, também por sorte ou sincronicidade do fato de Júlia não ter atendido às ligações do analista no último episódio, Theo, com apoio da sua própria análise e supervisão, consegue manejar a relação transferencial de um modo positivo para a paciente e encaminhar Júlia para o fim da análise sem ter cometido os deslizes éticos alertados por Freud. Isso, todavida, não se dá sem angústia de ambos os lados ante à tarefa hercúlea da renúncia da paixão proibida.

Sofia – 4ª temporada.

Noutro sentido, Sofia não é a clássica paciente que se apaixona pelo terapeuta, mas representa a analista e supervisora de Caio, o protagonista da 4ª Temporada da série, que sucumbe às investidas dele e “caí” no erro prescrito por Freud quando os dois consumam o relacionamento sexual e tentam iniciar um “namoro” apesar das dificuldades trazidas justamente pela relação ser advinda da transferência em análise.

Fonte: encurtador.com.br/adhnC

Destaque-se que neste caso, há “queda da analista” visto que a profissional estaria advertida do deslocamento de libido objetal advindo da relação transferencial, em análise, e, mesmo assim optou por consumar sua relação amorosa com o analisando/paciente.

No caso de Caio a analista sabia que a tentativa de seduzi-la acontecia como meio de frear a análise e impedir de viesse à tona conteúdos reprimidos relativos à culpa que o paciente sentia pela morte da filha num assalto meses antes e, ainda, afetos recalcados decorrentes do abandono materno que ele sofrera na infância.

Os casos de Júlia e Sofia podem ser usados para facilitar a compreensão dos conceitos freudianos de “transferência” e “constratransferência”, e ainda, ilustra a distinção entre transferência positiva, negativa e erótica. Contudo, não devem servir para imputar julgamento às condutas profissionais de psicólogos e psicanalistas que tenham, por fim, se apaixonado por seus pacientes, a final, cada caso é um caso. E generalizações ou repreendas morais em abstrato não combinam com os elevados propósitos da psicologia.

  

Ficha Técnica

Título: Sessão de Terapia (1ª e 4ª Temporadas)

Ano de produção: 2012

Direção: Selton Melo

Gênero: Drama

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund, 1856-1939 Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”) : artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) / Sigmund Freud ; tradução e notas Paulo César de Souza. — São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Santos, Manoel Antônio. A transferência na clínica psicanalística: a abordagem freudiana. Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

ISOLAN, Luciano Ransier. Transferencia erótica uma breve revisão. 189 – Transferência erótica – Isolan Rev Psiquiatr RS maio/ago 2005;27(2):188-195

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