Histeria – A ausência de afeto como causa patológica

Um dos filmes mais interessantes lançados recentemente é “Histeria” (Vários países – 2012), que trata do surgimento do popular (e ainda alvo de preconceito) vibrador, ou consolo. A comédia dramática se passa no intenso final do século XIX, época base da constituição psicanalítica, marcada por uma verdadeira “epidemia” de histeria, patologia até então atribuída exclusivamente ao sexo feminino, já que a medicina vigente utilizava-se do sentido estritamente etimológico para o termo, onde hysterikos se referia a uma suposta condição médica causada por perturbações no útero, hystera, em grego. Mais tarde, obviamente, se percebe que o problema não é peculiar à mulher, e que também acomete homens, embora em menor grau.

O filme usa uma linguagem leve para demonstrar que, na tentativa de encontrar um alívio para aquelas senhoras e senhoritas de diferentes idades, um jovem médico acaba por inventar um equipamento que substitui as mãos nas massagens/estímulos vaginais, já que ele desenvolveu um trauma em suas mãos, pela quantidade de intervenções que fazia diariamente; até então a massagem era única alternativa para aplacar as crises que acometiam as nobres pacientes. Lembremos que não se tinha claro que a histeria poderia ser decorrente de conflitos internos (pulsões reprimidas) que se manifestavam em sintomas físicos. Dentre outras coisas, pensava-se que era uma doença decorrente da ausência de “ventilação sanguínea” adequada na região uterina. O filme não se preocupa em mostrar esta faceta da doença, e sim exclusivamente o surgimento do vibrador.

No entanto, a invenção em si do apetrecho já descamba, numa análise mais ampla, para a questão do afeto (sua ausência, neste caso) como desencadeador de processos patológicos, outro viés que se pode abordar a partir do filme. E neste contexto é interessante observar como a medicina (bem retratada no filme pelos personagens dos doutores Mortimer Granville e Robert Dalrymple), a psicanálise, a filosofia da mente, a filosofia da psicanálise, e bem mais recentemente a psicologia, avançaram neste aspecto.

Para além da ficção, nos últimos 80 anos – e com mais vigor de 20 anos para cá – são inúmeros os trabalhos de pesquisa e as abordagens clínicas que seguem o rastro da dupla médica de “Histeria” e procuram demonstrar a relação entre produção (ou ausência) de afetos e as patologias relacionadas à psique. O mais famoso caso, provavelmente deve ser do médico americano Dean Ornish.

Se à época em que se passa o filme em questão a histeria era atribuída a distúrbios químico-orgânicos, com o passar do tempo esta e outras patologias foram estudadas sob novas perspectivas e, deste esforço, um dos mais incríveis resultados é a pesquisa de Dr. Dean, publicada no livro “Amor & Sobrevivência”, e que de alguma maneira, pelas “mãos” de um médico, é mais uma forma de tentar dirimir o sofrimento das pessoas que não conseguem lidar com suas questões internas.

Impossível ver o longa “Histeria” e não associá-lo ao trabalho do americano, que aborda a base científica para “o poder curativo da intimidade”. E por intimidade, neste caso, não se restringe as relações sexuais propriamente ditas mas, antes, toda relação em que o afeto dá o tom da interação.

Embora o simples, porém impactante pressuposto de Dr. Dean Ornish de que “nossa sobrevivência depende do poder curador do amor, da intimidade e de nossos relacionamentos como indivíduos, comunidades” não tenha sido abordado claramente no filme (apesar da relação amorosa do Dr. Mortimer Granville e da filha de seu sócio, Charlotte Dalrymple), as duas obras mantém pontos de contato, pontos estreitos e que tem como foco a “construção interna” como mecanismo que desencadeia tanto equilíbrios quanto desequilíbrios no corpo. Dr. Dean Ornish demonstra que “mudanças significativas no estilo de vida de cada um podem reverter doenças”.

Apesar de um enfoque maior nos pacientes com problemas no coração, o livro do Dr. Dean também dedica parte do espaço para aquelas pessoas, a exemplo das retratadas no filme “Histeria”, que têm dificuldade de tocar o próprio corpo (algo que é estimulado em algumas práticas orientais, como o Yoga e o Tai Chi Chuan, só para citar algumas) e o corpo das outras pessoas (como a aversão em abraçar ou beijar alguém). Estas pessoas estariam mais propensas a desenvolverem doenças. No filme, era notória a melhora das mulheres quando submetidas “ao toque” do médico. Apesar de aqui não haver o afeto em seu sentido estrito, no entanto o simples fato de se tocar o corpo da paciente já suscitava melhoras surpreendentes.

Em súmula, o que tanto o filme “Histeria” quanto o livro “Amor & Sobrevivência” abordam, em linhas gerais (porque há muitas outras “chaves” para se aprofundar, mas este artigo ficaria muito extenso) é que a observância do próprio corpo (e de suas necessidades mais básicas, como o ato de se tocar e/ou tocar outras pessoas), as relações afetivas e as construções sociais sadias são alguns (mas não exclusivamente, para que não se caia num dogmatismo) dos fatores predominantes para se evitar patologias de toda ordem, que variam desde alterações de humor e sentimentos reprimidos que resultam em problemas mais agudos, como em alguns casos a histeria, até patologias mais graves, como doenças cardíacas.

A dica do Dr. Ornish para que se evite no futuro novas ondas de patologias mentais (como ocorre em “Histeria”), dica esta que também foi defendida pelo filósofo e psiquiatra húgaro/americano Dr. Thomas Szasz, é que a noção de doença, em especial a mental, tem que ser conduzida como uma questão de relacionamento, seja interno, externo ou ambos.

O vibrador foi e continua sendo uma alternativa adequada para (a mulher em particular) “lidar” com o próprio corpo. No entanto, assim como para enfrentar um problema maior, mais sutil, não basta prescrever doses diárias de Prozac (que podem maquiar as causas de tal problema), as questões que se escondem nos recônditos do ser devem ser enfrentadas com (boa) vontade e tempo, tanto do paciente quanto do terapeuta. Dois ingredientes aparentemente em extinção na contemporaneidade, mas que devem ser perseguidos para que haja sucesso nos fins.

 

FICHA TÉCNICA

HISTERIA

Título Original: Hysteria
Países: Reino Unido/França/Alemanha/Luxemburgo
Gênero: Comédia / Drama
Direção: Tanya Wexler
Roteiro: Stephen Dyer, Jonah Lisa Dyer, Howard Gensler
Elenco: Hugh Dancy, Maggie Gyllenhaal, Felicity Jones, Jonathan Pryce, Rupert Everett, Ashley Jensen, Sheridan Smith
Ano: 2012
Duração: 100 minutos

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.