O Cotidiano Monocular: análise do curta-metragem Le Cyclope de La Mer

 Cena do curta-metragem Le cyclope de la mer de 1999

O curta-metragem Le cyclope de la mer de 1999 é uma produção francesa, que, apesar de não fazer uso de falas, possui uma ampla gama de simbologias visuais em sua breve narrativa, enriquecida por uma rica banda sonora, todos estes elementos ainda são elevados devido à graciosidade da técnica stop-motion utilizada na composição das cenas. No conto acompanhamos a estória de um jovem ciclope que vive isolado num farol de uma ilha, tendo a companhia de suas bugigangas, um peixe solitário e algumas gaivotas. Sua rotina é composta pelos dias neste inóspito local, nas atividades diárias de sua existência, completadas pelo seu labor noturno de projeção da luz do farol no além-mar, trabalho este que é reforçado pela sua própria condição fisiológica monocular, focada diversas vezes pela câmera durante o curta.

Alguns elementos podem ser destacados na construção da narrativa de Le cyclope de la mer, que aumentam o seu grau dramático e existencial, assim como em outras obras similares. Trata-se da presença do mar como metáfora da imensidão do mundo e pequenez da imanência, a ilha como símbolo máximo do isolamento resultando em olhares, trejeitos e situações de melancolia (vide o foco ao momento de ir para cama do ciclope, ou seus hábitos cotidianos, acompanhados pelos gritos dos pássaros apenas) e a figura do farol, numa icônica referência à vontade de comunicação com o exterior, em dialogia ao único olho do personagem principal da obra.

Outro ponto que merece destaque na animação é o apuro com a trilha sonora, que consegue passar ora tenuemente ora mais tempestivamente as emoções e situações as quais o ciclope, personagem título da obra, perpassa durante os poucos minutos da projeção. Dentre estas melodias podemos destacar a intensa Une Destruction Aveugle e as profundas Matin Mécanique e Divertissement De Poisson, compostas pelo galardoado músico Yann Tiersen, autor de outras trilhas fílmicas memoráveis como as dos filmes Le Fabuleux Destin D’Amelie Poulin (2001) e Goodbye Lenin! (2003).

De forma similar a animações, igualmente premiadas, como o japonês A casa dos pequenos cubinhos (2008) e, em certo ponto, até com o brasileiro Trancado por dentro (1989), o pequeno conto do ciclope isolado numa ilha nos traz mensagens de reflexões existenciais profundas. Tais subtextos podem perpassar desde o manuseio e construção de suas ferramentas e residência, a interação com os elementos naturais que o cercam, a expectativa de locução com outrem além-mar, a perseverança na manutenção de sua rotina ostracista, dentre outros.

A chegada de uma tempestade anuncia o evento da causalidade na pacata rotina do ciclope, que em composição com a banda sonora da projeção contribui para aumentar o apelo dramático desta passagem, que magistralmente se inicia com uma iniciativa de replicação do farol em miniatura no interior do aquário, após uma fatídica tentativa de suicídio por não se adaptar ao ambiente mimético construído pelo ciclope. E, após a turbulenta noite entre trovões e açoites das águas, o dia apresenta o cenário de destruição que assola o farol. Dentre móveis, esculturas e demais destroços de estilhaços da mimese criada pelo personagem central vemos o principal impacto provocado casualístico da noite pregressa, a cegueira do Ciclope, que será aprofundada metaforicamente nesta segunda parte do curta.

Após o esporro vindo dos céus a quietude reversa do respectivo evento. Dentre as decisões a serem tomadas pelo protagonista ocorre inicialmente a libertação do seu companheiro de solidão marítima. E mesmo com sua atual condição, ou seja, a perda de sua visão, que o absorvia da realidade solitária em que vivia, o ciclope utiliza os elementos da destruição para a realização de uma fogueira final, a qual se encerra com um distanciamento perspectivo do farol no imenso mar noturno.

Se se pode enaltecer uma alegoria mais enraizada na temática existencial do curta-metragem esta pode ser escolhida como sendo a da visão, e o personagem principal em sendo um ciclope justifica tal recurso narrativo para interpretação dos apreciadores da mensagem do breve filme. Deste modo, aquele que sempre buscava um contato com o mundo pelo olho luminoso do imenso farol acaba por perder o seu próprio farol, num momento de descobrimento do seu próprio eu interior, a alvura de sua cegueira não deixa de ser inquietante neste aspecto, fazendo um diálogo luminescente entre esta e os raios luminosos do farol em alto mar.

Por fim, a solidão ou o estado de estar sozinho como muito bem retratado no curta-metragem de Jullien traz à tona uma velha discussão, àquela na qual o ser humano, ou neste caso o ciclope, mesmo exercendo um esforço de isolamento frente à sociedade, acaba por buscar alguma forma de interação ou partilha com outros entes, mesmo que de forma subjetiva ou projetiva, como é o caso do cuidado diário com o farol da ilha.

Por possuir camadas metafóricas consideráveis, Le Cyclope de la Mer, sugere múltiplas interpretações, das quais, podemos sugerir ao invés da titulação desta pequena resenha, avistamento, haja o seu contrário, o ocultamento do mundo de si, por opção próprio Ciclope, que após todos os eventos que suscitaram o estremecimento de seu esmerado mundo, o mesmo escolhe por manter a seu enclausuramento, potencializado por sua derradeira condição de privação do aspecto fisiológico que o define, a visão.

 

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

LE CYCLOPE DE LA MER

Diretor: Phillippe Julien
País: França
Música: Yann Tiersen
Duração: 13 minutos
Ano: 1999