Humanização: um breve ensaio sobre sua trajetória política na saúde

Como política pública, a humanização via PNH1, foi pensada como possibilidade de enfrentamento e superação dos desafios enunciados pela sociedade brasileira quanto à qualidade e à dignidade no cuidado em saúde, bem como para redesenhar e articular iniciativas de humanização do SUS e enfrentar problemas no campo da gestão e da organização do trabalho em saúde, é o que afirma Pasche et all (2011). Deduz-se então que a Humanização é um movimento eminentemente político que denuncia e objetiva abarcar as necessidades dos atores envolvidos na produção de saúde, quais sejam usuários, trabalhadores e gestores.

O SUS foi gestado em um período em que havia muitas proposituras de mudanças, do desejo de se fazer diferente do que se vinha fazendo. Era o tempo da busca pela mudança e a humanização procura resgatar e promover a manutenção dos princípios que nortearam a militância pelo SUS, bem como a densidade do que tal movimento conseguiu expressar na concepção complexa do sistema de saúde. Este reencantamento, como uma ação coletiva, requer uma alteração na comunicação, segundo Heckert (2009) et all. A resposta por esta alteração foi a humanização da saúde.

Desde o início o processo de construção do SUS já apontava para necessidade da humanização na concepção e operacionalização das políticas públicas de saúde em vários contextos, geralmente ligados à busca de melhoria na qualidade da assistência à saúde do usuário e também ao reconhecimento iminente dos trabalhadores da saúde (PAIM, 2009). No que tange ao usuário, a reivindicação era por mais acolhida, resolutividade e disponibilização de serviços. Já pelo lado dos trabalhadores são postuladas melhores condições de trabalho e qualificação na formação no intento de atender de maneira eficiente as demandas complexas que o processo saúde-doença os impõe. Somando-se a isso a necessidade do alcance dos objetivos de uma assistência efetiva o bastante para cumprir com os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade assumidos pelo SUS.

Anteriores à PNH existiam ações que eram desenvolvidas no campo da saúde pública buscando induzir práticas com orientações humanizadoras, como o Programa de Atenção ao Parto e Pré-Natal e o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). Todavia, eram programas com pouca articulação, produzindo um fazer fragmentado. Atribui-se a estas ações um caráter acrítico no que diz respeito aos modelos vigentes de atenção e de gestão.

Apartir da flagrante fragilidade das ações precursoras que o Ministério da Saúde ousou inaugurar a PNH, enfatizando que a humanização “deve ser vista como política que transversaliza todo sistema: das rotinas nos serviços às instâncias e estratégias de gestão, criando operações capazes de fomentar trocas solidárias, em redes multiprofissionais e interdisciplinares” (BRASIL, 2008), o que implica a inclusão dos gestores, profissionais e usuários na promoção de processos humanizados na produção de saúde, o que requer uma indissociabilidade entre os modos de gerir e de cuidar.

Neste aspecto os princípios da Humanização buscam fomentar autonomia e protagonismo de trabalhadores, usuários e gestores, aumentando o grau de co-responsabilidade na produção de saúde, estabelecendo vínculos solidários, participação coletiva na gestão, a transversalidade e a indissociabilidade entre atenção e gestão. Busca, enfim, transformar os modelos de atenção e de gestão dos processos de trabalho em saúde e compromisso com a melhoria das condições de trabalho e atendimento. Entende-se por princípios aquilo que causa ou força a ação, ou que dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas (BRASIL, 2008).

Dessa forma, reafirma estes princípios e propõe outras reflexões do humano a partir do que é vivido nos serviços por todos que o produzem cotidianamente (usuários, trabalhadores e gestores da saúde). Sendo o princípio o que causa, força ou dispara algo, a transversalidade na PNH amplia a comunicação intra e inter grupos, transformando os modos de se relacionar ese comunicar entre os sujeitos.

Sendo assim, transversalidade como princípio, compreende que a gestão e a atenção se articulam entre si, diferenciando-se dos modelos verticais e hierarquizados ainda existentes em muitas realidades, buscando desfazer as hierarquias, criar e fortalecer redes. Entendendo-se rede como apoio e sustentação das ações e políticas. Pois essa humanização encontra-se na contracorrente das concepções humanistas apoiadoras de determinadas visões de homem, ancoradas na religião, nas ciências e na política permanentemente ligadas a juízos de valor conservadores da realidade posta (FOUCAULT, 2008).

Nesse processo de construção de um paradigma é proposto um método, entendendo-se método como um modo de caminhar que esteja em concordância com esses princípios estabelecidos. Tal método, o método da Tríplice Inclusão, propõe a inclusão de todos os sujeitos nos processos de produção de saúde e alteração nos modos de gestão dos serviços, de maneira a aumentar o grau de comunicação, afirmar a inseparabilidade entre atenção e gestão e a corresponsabilização dos autores e atores desse processo, gestores, usuários e trabalhadores (os três componentes da aliança) como um caminho que está em construção atualmente (BRASIL, 2008).

A PNH tem diretrizes que orientam suas ações e dispositivos que atualizam essas diretrizes por meio de ações, arranjos, tecnologias que disparam movimentos de mudança, o que demonstra o aspecto dinâmico da implementação da PNH. Ou seja, em muitos momentos o aprender na implementação da PNH se dá no fazer.  É importante que se atente para que os dispositivos sejam realmente utilizados, como tecnologias afirmadoras dos princípios  da humanização e,  dessa forma,  utilizados  de  acordo  com as demandas específicas, considerando-se as particularidades e diferenças dos serviços e seus trabalhadores.

Pensar a PNH a partir do seu sistema de dispositivos leva a perceber a necessidade do tema nas redes de produção de saúde como um ponto de concatenação, que atualmente tem se configurado como o principal objetivo das ações da PNH (BRASIL, 2009). Acionar cotidianamente nos serviços de saúde o exercício da co-gestão, da comunicação intra e intergrupos, ampliando o conceito de saúde como algo que não é apenas ausência de doença, implica em promover e ampliar as redes de conversa, redes de produção de saúde, que, com seus fios entrelaçados, deve estar desdobrada, aberta, para que seus fios possam se estender e amparar, sob pena de cair em desuso se estiver dobrada.

Dessa forma, também os serviços de saúde o são. Se estiverem dobrados com olhares localizados, atendimentos pontuais, várias possibilidades de atendimento são eliminadas e os serviços bloqueados como redes dobradas, pois não é suficienteque se pense restritivamente em questões administrativas e burocráticas do direito de acesso a serviços de saúde. Não que não sejam esses fatores relevantes, pois de fato o são, mas é preciso localizar no universo institucional os agentes que irão colaborar para a construção conjunta de tais projetos, ou seja, o elemento humano deve ser valorizado em sua essência em detrimento do fazer verticalizado e pontual.

Atualmente, vem crescendo o interesse pela humanização na área da saúde e cada vez mais recrudesce movimentos de Secretarias de Saúde para implantar a Política Nacional de Humanização.   Entretanto, não basta implantar a PNH nos serviços de saúde, mas avaliar como as práticas têm se efetivado no concreto das experiências dos trabalhadores e como tais práticas alteram os modelos de gestão.

A gestão precisa corrigir rumos e, possivelmente, experimentar outros dispositivos quando os que foram pensados não estão resultando em novos modos de trabalhar. Embora as falas demonstrem alguma dormência em relação à humanização, trata-se de um conceito e de uma prática extremamente importantes, que precisa ser tomada como aspecto inerente à constituição de uma política pública de saúde de qualidade e ligada à garantia da saúde enquanto direito social e fortalecimento da democracia e da cidadania .

Afinal, o que se espera, na prática, da humanização? Partindo dos dispositivos que são os modos de fazer, pode-se enumerá-los como Acolhimento com classificação de risco; Equipes de Referência e de Apoio Matricial; Projeto Terapêutico Singular e Projeto de Saúde Coletiva; Projetos de Construção Coletiva da Ambiência; Colegiados de Gestão; Contratos de Gestão; Sistemas de Escuta qualificada para usuários e trabalhadores da saúde, ouvidorias, grupos focais e pesquisas de satisfação; Visita Aberta, Direito de Acompanhante e envolvimento no Projeto Terapêutico; Programa de Formação em Saúde e Trabalho e Comunidade Ampliada de Pesquisa; Programas de Qualidade de Vida e Saúde para os Trabalhadores da Saúde e Grupo de Trabalho de Humanização. É necessário operacionalizar estes dispositivos.

Notas:

1 Para se entender o significado real e concreto da humanização enquanto política nacional faz-se importante que se tenha conhecimento de seu conteúdo. A PNH se estrutura a partir de Princípios, Método, Diretrizes e Dispositivos. Este estudo não visa uma caracterização ou descrição da PNH em si, mas busca conhecer os sentidos da humanização, porém, esta se encontra balizada pela PNH. Para maior entendimento da estrutura da PNH, sugere-se a leitura das diversas cartilhas disponíveis no site www.redehumanizasus.net e no site do Ministério da Saúde.

Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Documento base para Gestores e Trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Editora MS, 2008.

______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Documento base para Gestores e Trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília: Editora MS, 2008.

______.  Ministério da Saúde.  Secretaria Executiva.  Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Redes de Produção de Saúde. Brasília: Editora MS, 2009.

______. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Redes de Produção de Saúde. Brasília: Editora MS, 2009.

FOUCAULT, M. Arqueologia das ciências e historia dos sistemas de pensamento. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

HECKERT, A. L. C.; PASSOS, E.; BARROS, M. E. B. Um seminário dispositivo: a humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) em debate. Interface – Comunicação, saúde, Educação, v. 13, supl. 1, p. 493-502, 2009.

PAIM, J. S., O que é o SUS? Rio de janeiro, FIOCRUZ, 2009.

PASCHE, Dário Frederico. PASSOS, Eduardo. HENNINGTON, Élida Azevedo. Cinco anos da Política Nacional de Humanização: trajetória de uma política pública – Rev. Ciência e Saúde Coletiva, 16(11): 4541-4548 – 2011, Brasília – DF.

Mestranda em Ciências da Saúde (UFT). Assistente Social da Diretoria de Doenças Transmissíveis e Não-Transmissíveis da Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins. Professora do curso de Serviço Social do (CEULP/ULBRA).