Qual é o trabalho das mães? – Parte 2

Thais Rodrigues Vilela- thaisrv@rede.ulbra.br

Dando continuidade às reflexões sobre trabalho e maternidade, a segunda parte deste texto analisou a conjuntura da mulher mãe no mercado de trabalho.

As mães casadas estão menos presentes no mercado de trabalho por motivação pessoal (MADALOZZO; BLOFIELD, 2017), ou seja, a presença do cônjuge reduz as chances de participação feminina. Isso pode ser explicado pelas maiores exigências para encontrar um emprego aceitável, dado que os custos de oportunidade e o salário de reserva tendem a ser maiores entre essas mulheres, devendo compensar a redução do tempo dedicado aos cuidados ou possibilitar o acesso a serviços de creche (SCORZAFAVE; MENEZES-FILHO, 2001 apud GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).

Outra possibilidade é que o acréscimo do trabalho doméstico não remunerado reduza também a chance de conciliação com o trabalho remunerado (GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019), no entanto, apesar de mulheres (21,4 h/sem)  dedicarem quase o dobro de tempo que os homens (11 h/sem) em afazeres domésticos e de cuidado, indicadores de raça e classe as afetam de forma desigual: mulheres brancas dedicavam 20,7 horas semanais a tais atividades enquanto mulheres pretas ou pardas empregavam 22 horas; mulheres que fazem parte dos 20% com menores rendimentos domiciliares per capita realizavam em média 24,1 horas semanais, enquanto as que estão entre os 20% de maiores rendimentos dispensavam 18,2 horas (IBGE, 2021).

As Estatísticas de Gênero, IBGE (2021, p.03), ressaltam que 

Essa diferença mostra que a renda é um fator que impacta no nível da desigualdade entre as mulheres na execução do trabalho doméstico não remunerado, uma vez que permite acesso diferenciado ao serviço de creches e à contratação de trabalho doméstico remunerado, possibilitando a delegação das atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, sobretudo a outras mulheres.

Ainda em relação aos resultados encontrados no estudo de Madalozzo e Blofield (2017), as duas principais restrições enfrentadas pelas mães que não trabalham, tanto casadas (38%) quanto não casadas (58%), são: elas estão procurando, mas não conseguem encontrar trabalho ou não têm acesso a cuidados com seus filhos e, por isso, não podem trabalhar.

Aquelas que tentam ingressar no mercado após a maternidade comumente não passam das invasivas e constrangedoras entrevistas de emprego ao serem questionadas a respeito de gravidez, maternidade ou mesmo estado civil. Heloani e Barreto (2018, p. 133) descrevem como atos de violência na fase de seleção de pessoal

[…] se submete o aspirante a procedimentos que constituem uma verdadeira invasão de privacidade e um desrespeito no que concerne à sua intimidade. […] atentarem contra a dignidade , produzirem humilhações ou tiverem um caráter discriminatório […] não devem ser aceitos como instrumentos técnicos de avaliação para fins admissionais de emprego. Perguntas desnecessárias […] em nada contribuem para um bom processo seletivo e causam um constrangimento pessoal inadmissível, maculando desde o início a imagem da organização.

Os empregadores supõem que mulheres mães de crianças pequenas incidirão em maiores taxas de absenteísmo do que o restante da população, e essa discriminação faz com que as taxas de desemprego para essa população específica sejam ainda mais elevadas (SORJ; FONTES; MACHADO, 2007 apud GUIGINSKI; WAJNMAN, 2019).

Fonte: Pexels

As mães trabalhadoras que estão empregadas em jornadas integrais de trabalho por muitas vezes submetem-se a situações de trabalho intenso. De acordo com Dal Rosso (2008), há intensificação do trabalho quando o tempo de não trabalho, ou tempo livre, passa a ser engolido pelo trabalho. Exemplos dessa intensificação estão presentes em grande parte dos depoimentos apurados por Novais (2010), uma vez que tanto na esfera pública quanto privada, há negligência por parte das empresas para com as mães trabalhadoras, culminando em denúncias a respeito das entrevistas de emprego e os questionamentos sobre filhos e demissões diante de gravidez ou não cumprimento de horas extra, que entram em conflito com o tempo familiar, evidenciando que para os empregadores a presença de filhos é vista como um obstáculo. “Neste sentido, as exigências familiares podem entrar em conflito com as exigências profissionais e gerar, nos indivíduos, significações de fraco desempenho profissional, incompetência ou até mesmo insatisfação com o trabalho” (NOVAIS, 2010 p. 110).

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A respeito da dificuldade de conciliação entre exigências familiares e exigências de horas extras, dois depoimentos chamam atenção. Uma das trabalhadoras, Paula,  relata que a exigência de trabalho por turnos, em especial aos domingos em que entrava às 9 horas e só saía às 20 horas, lhe impedia de estar com sua família gerando sentimentos de insatisfação com o trabalho e culpa em relação aos filhos, resultando em sua dispensa:

“(…) Não tinha tempo para os meus filhos, não tinha tempo para nada. Depois, aos domingos havia algumas festas, festas de anos e eu não podia ir a nenhuma. Depois, os meus filhos cobraram-me isso. […] É horrível ouvir um filho dizer que a mãe está ausente. Para mim é horrível. Despedi-me.” (NOVAIS, 2010, p. 111).

Seligmann-Silva (2017) considera desgaste mental um conceito que abrange tanto a dimensão psíquica (sofrimento mental) quanto a psicofisiológica (estresse laboral e aspectos psicossomáticos). A autora ressalta que estudos da temática sugerem que existe prejuízo de ordem cognitiva e psicoafetiva, que afetam os sentimentos e os relacionamentos humanos em contextos diversos, como no trabalho, na família e na comunidade. Ela ainda alerta que a constância de situações opressivas e insatisfação no trabalho combinadas a ausência de possibilidades de mudança ou enfrentamento, conduz o processo de desgaste ao transtorno psiquiátrico ou doença psicossomática. 

Na esfera psicoafetiva, relacionada a degradação dos sentimentos e percepção de si, podemos observar claramente tal prejuízo no depoimento de Maria José, relatado com tristeza:

“ […]  Eu não vi a minha filha crescer! Se eu trabalhava, quer dizer, eu trabalhava de segunda a domingo, não é? […] Portanto, eu não… eu não…eu não vi, isso dói muito. Eu não vi a minha filha crescer. Não vi! Não vi a minha filha crescer! (emociona-se e chora) (…) quero conhecer melhor a minha família, porque nós somos uma família, mas um bocadinho afastados uns dos outros. Isso, para mim, já chega! Afastados, porque eu tinha que estar a trabalhar.” (NOVAIS, 2010, p. 112).

Algumas mulheres relatam que não podem trabalhar porque não têm acesso a cuidados com seus filhos, e de fato, apenas 35,6% das crianças de até três anos frequentavam escola ou creche em 2019, o que sugere que a oferta adequada de creches possa facilitar a inserção das mães ao mercado de trabalho (IBGE, 2021). Sorj (2013) sinaliza que a socialização do cuidado proporcionada pelo acesso a creches e pré-escolas tem potencial de estimular o desenvolvimento da independência econômica e autonomia das  mulheres, se relacionando de maneira positiva com o trabalho das mães. Barbosa e Costa (2017) investigaram essa proposição ao longo do período de 2001 a 2015, e também encontraram efeito positivo e significativo entre oferta de creche e probabilidade de participação materna no mercado.

Yannoulas (2002, p.56) ressalta que 

É importante levar em consideração que as creches e pré-escolas são fundamentais no desenvolvimento futuro das crianças e seu aproveitamento escolar […], além de outorgar um contexto de segurança e tranquilidade para os pais e as mães durante a jornada de trabalho. 

Sorj (2013) analisou como alguns dispositivos de cuidado no Brasil influenciam a quantidade e qualidade da participação das mães no mercado de trabalho. No que tange a esfera legislativa e a associação entre benefícios de maternidade e estatuto do trabalho, que restringe as mulheres trabalhadoras àquelas que contribuem para a previdência social, expõem a consequências distintas a carreira profissional delas, intensificando a desigualdade entre mulheres em ocupações formalizadas e aquelas inseridas no trabalho informal. 

Se por um lado a maternidade é responsável por garantir a implantação de políticas públicas específicas para as mulheres, em maior nível ela as restringe a determinados espaços e trabalhos específicos. Dessa forma, não basta ampliar as políticas voltadas para essa população, mas reformular os eixos centrais que constituem as políticas públicas, de tal modo que estes permitam equacionar diferentes dimensões da vida humana. Yannoulas (2002, p.82): 

A vida não é só trabalho para os homens, como também não é só maternidade para as mulheres. Compor, equilibrar, equacionar as diferentes dimensões da vida humana deveria ser propósito maior das políticas públicas, tendendo ao exercício da cidadania plena por todas as pessoas, independentemente de seu sexo, idade, raça/ cor, religião, etc, e visando seu desenvolvimento pluridimensional (na vida política, laboral, familiar, cultural, afetiva, etc.).

Conclui-se que a atual configuração de divisão sexual do trabalho e a omissão do Estado em exercer seu papel para a garantia de direitos, cuidado e proteção dessas cidadãs, configuram dispositivos que impedem o acesso e a permanência das mulheres no mercado de trabalho, impactando diretamente na renda e consequentemente na pobreza dessa população. É necessário redefinir os papéis de gênero e ampliar a oferta e acesso de políticas públicas que permitam equacionar diferentes dimensões da vida humana. 

REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. L.; COSTA, J. Oferta de creche e participação das mulheres no mercado de trabalho no Brasil. 2017. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Ipea. IPEA, 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7805/1/bmt_62_oferta.pdf Acesso em: 12 nov. 2021.

DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. Sadi Dal Rosso. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p.

GUIGINSKI, J; WAJNMAN, S. A penalidade pela maternidade: participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos. R. bras. Est. Pop., v.36, 1-26, e 0090, 2019.

HELOANI, R; BARRETO, M. Assédio Moral: gestão por humilhação. Curitiba: Juruá Editora, 2018. 200 p.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. IBGE, 2021 – ISBN 978-65-87201-51-1. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf Acesso em: 10 nov. 2021.

MADALOZZO, R; BLOFIELD, M. Como famílias de baixa renda em São Paulo conciliam trabalho e família? Rev. Estud. Fem. 25 (1), Jan-Apr 2017.

NOVAIS, C. D. As trajectórias profissionais de mulheres na actual economia flexível e sua relação com dinâmicas familiares. 2010. 191 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, Portugal, 2010. Disponível em: https://1library.org/document/zx2rek4q-trajectorias-profissionais-mulheres-economia-flexivel-relacao-dinamicas-familiares.html Acesso em: 12 nov. 2021.

SCHMIDT, M. L. G.; SELIGMANN-Silva, E. Entrevista com Edith Seligmann-Silva: saúde mental relacionada ao trabalho ― concepções e estratégias para prevenção. R. Laborativa, v. 6, n. 2, p. 103-109, out./2017. http://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa. Disponível em: https://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa/article/view/1849/pdf Acesso em: 12 nov. 2021.

SORJ, B. Arenas de cuidado nas interseções entre gênero e classe social no Brasil. Cadernos de Pesquisa v.43 n.149 p.478-491 maio/ago. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/N4CfkgXHT8Gtgsr4RvDNhtP/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 13 nov. 2021.

YANNOULAS, S. C. Dossiê: Políticas públicas e relações de gênero no mercado de trabalho – Brasília: CFEMEA; FIG/CIDA, 2002. 93 p. Disponivel em: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/276/CFEMEA_Dossi%EA_Pol%EDticas_p%FAblicas_rela%E7%F5es_g%EAnero_mercado_trabalho.pdf?sequence=1 Acesso em: 12 nov 2021.