A vivência da pessoa com deficiência visual durante a adolescência: Hoje eu quero voltar sozinho

O filme retrata a vivência do jovem Leonardo, quem tem cegueira desde a infância, e sua forte ligação afetiva com Gabriel, seu colega de classe recém-chegado à escola. Com leveza e sensibilidade, a trama retrata os desafios de viver com a cegueira, o preconceito contra demonstração de afetos homoafetivos, e também contra a possibilidade de que uma pessoa com deficiência possa ter um relacionamento afetivo e, por regra, seja assexual.

Antes da chegada de Gabriel, Leonardo era muito apegado à Giovana, sua colega de classe e melhor amiga. Na verdade, ela era sua única parceira na escola, além de ajudá-lo no caminho de volta para casa.

Apesar de não ter outras ligações sociais importantes – excetuando sua família – Leonardo vê na sua colega um acolhimento mais que suficiente. Isso vai muito além do que oferecer suporte no caminho de volta para casa, ou ser colega de grupo para fazer trabalhos escolares, está no modo como ela o trata como alguém autônomo na medida do possível.

Na verdade, Giovana demonstra querer que seu relacionamento com Leonardo vá além da amizade. Quando ela pensa em levar a relação de ambos a outro patamar, demonstra que vê Leonardo como alguém capaz de dar amor, independentemente de sua cegueira, capaz de amar como todo ser humano, então, quer buscar nele tal amor, viver com ele uma experiência romântica, embora para muitos seja absurdo alguém com deficiência amar e ser amado.

Obviamente, o forte vínculo que ela tem com ele, as experiências escolares e sociais, é a base desse desejo. Não as experiências em si, mas os sentimentos envolvidos que tornam maiores as vivências interpessoais, para não serem meros encontros frios e superficiais. Isso mostra que os relacionamentos e afetos envolvidos nascem das experiências entre pessoas, e não necessariamente se devem a aspectos como cor da pele ou condições médicas de uma das partes.

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Mas, Giovana tem dificuldade em revelar o que sente pelo amigo, o que torna mais difícil para ela é o fato de que ele não poderá ver seus sinais de interesse. A jovem vê seu desejo mais distante da realidade quando o novo aluno chega, e Leonardo passa a gastar mais tempo com Gabriel, tanto para atividades escolares quanto para momentos de lazer. Ressentida, sentindo-se trocada e preterida, Giovana se afasta do velho amigo, sem imaginar que o que está germinando entre os dois vai mais além da amizade.

Gabriel é importante para Leonardo desde o momento em que ele ouviu a voz dele pela primeira vez, na sala de aula. As vivências entre ambos se tornam mais complexas no decorrer do tempo, das obrigações escolares, dos momentos de lazer. A cegueira do colega parecer não ter relevância para Gabriel. Na verdade, este às vezes esquece que Leonardo é cego, quando lhe pergunta se ele viu um vídeo da internet e outros lapsos do tipo.

No entanto, ambos vão ao cinema, onde Gabriel descreve as cenas de um filme para Leonardo na melhor forma possível. A essa altura da história é visível que a deficiência, embora seja reconhecida como tal, não é importante o suficiente para causar embaraços e desconforto para nenhuma das partes. Leonardo, obviamente, já conhece sua falta de visão. Gabriel, por sua vez, mal a percebe, enquanto volta-se para o amigo em sua totalidade.

Ambos nutrem sentimentos recíprocos, contudo, não sabem disso. Gabriel, ao mesmo tempo em que investe em tempo com Leonardo, parece muito ligado às garotas da escola, o que confunde o protagonista. Assim, descobrir a verdade só é possível com o tempo e o rumo que a relação toma.

Além da tensão sexual, Leonardo lida com o bullying na escola e uma mãe superprotetora. Ele está bem integrado na escola, tem ferramentas assistivas que lhe dão suporte, mas isso irrita alguns colegas, os quais o ridicularizam abertamente. Isso prova como a integração isoladamente não basta, e que grande parte do problema reside numa opinião tortuosa, generalizada, sobre o que é ter deficiência. Tal preconceito existe mesmo dentro de sua própria família. Na verdade, é o no seio familiar que isso parece mais forte, graças à mãe que teme pelo filho, dando à cegueira um drama exacerbado e até mesmo fatalista.

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A inclusão envolve um pleno acolhimento da pessoa com deficiência, em sua plenitude, indo além de prédios adequados, envolvendo uma mudança de cunho social, onde o preconceito e o bullying não têm vez. Chega a parecer utopia um mundo melhor, e ao mesmo tempo algo desesperador, se for levado em conta que até numa escola de alto padrão, onde a educação implicaria em respeito às diferenças, haja formas tão desumanas de tratar o outro. O que pensar, então, das escolas precárias onde a desordem e violência parecem regra do dia?

O tratamento social dispensado às pessoas com deficiência, geralmente, tem sido movido por desconfiança e chacota, e muitas vezes indignação contra os direitos dessas pessoas, os quais são vistos como privilégios.

Se para uns as pessoas com deficiência são privilegiadas, para outros eles são absurdamente incapazes, e quanto mais grande for o desejo dessas pessoas, maior ainda é o senso de que elas não conseguem o que querem. Quando Leonardo conta aos pais sobre sua vontade de fazer intercâmbio, é frustrado pela reação negativa da mãe com relação a tal ideia.

Segundo Vigo (2015) os estereótipos resultam em preconceitos, e lhes dão base de sustentação. Julgar precipitadamente é concluir antes de ter conhecimento cabal e fundamentado, e manter tal conclusão mesmo que haja provas contrárias, sendo, portanto, juízo parcial, obstinado e geralmente desfavorável a quem é julgado. A genitora não vê possibilidade de o filho cego estudar fora do país, e mesmo após ele provar que havia intercâmbio disponível para pessoas cegas, ela se mostra determinadamente contrária a isso.

Enquanto isso, o personagem principal lida com as incertezas quanto a Gabriel, ao mesmo tempo em que o tesão mostra quão claro e indubitável é o desejo. Não tem sua amiga por perto para revelar-lhe o segredo. Aparentemente Leonardo não tem receio com relação ao que os outros acharão de sua homossexualidade, mas muito mais sofre por não saber se o que sente é recíproco, e desconhecer qual seria a reação de Gabriel.

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Leonardo parece ter uma cegueira simbólica quando ele, consciente ou inconscientemente, seja por não contemplar cenas de intolerância ou por ser alguém de mente aberta, ignora os tabus e a aversão social às relações homoafetivas. Assim, com paz e inquietação, seguro do que sente, mas confuso quanto ao outro, nutre o desejo através das memórias, fantasias e masturbação.

Em alguns aspectos o filme parece um ponto fora da curva, se considerado o contexto social onde os preconceitos e estereótipos, a superproteção familiar, a educação sexual incompleta e as barreiras arquitetônicas são as principais condições que impedem o desenvolvimento e exercícios da sexualidade das pessoas com deficiência (CARVALHO; SILVA, 2018).

Além disso, há uma perspectiva cultural e histórica de pensar a deficiência não somente como uma marca corporal ou um diagnóstico, mas também como uma identidade política e social, uma identificação burocrática, administrativa e também um termo em disputa (GAVÉRIO, 2019).

Assim sendo, muitas famílias mantêm trancafiadas pessoas com deficiência ou em constante vigília. Isso oferece à família maior segurança, embora não necessariamente implique em segurança para os indivíduos com deficiência. É comum o tabu quando a família lida com um membro com deficiência, no que tange à possibilidade dessa pessoa manter relações sexuais saudáveis, inclusive há tabu quanto a educa-la a usar métodos contraceptivos e contra doenças sexualmente transmissíveis (GAVÉRIO, 2019).

Dutra (2019) cita a importância de saber que “deficiência” e “sexualidade” são construções sociopolíticas. Embora o senso comum considere que a deficiência e a sexualidade sejam coisas orgânicas e naturais aos humanos, tais categorias não vêm dos próprios sujeitos, mas são construídas na sua sociedade.

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Há um conceito, “looping”, que explica como uma prática social, que é nomeada cientificamente depois de muito tempo, torna-se categoria científica que passa a ser absorvida pelos indivíduos aos quais as práticas foram nomeadas. Os sujeitos se apropriam do termo e o transformam. Depois a Ciência se volta a esse termo transformando, o que resulta em tensão entre as práticas sociais e os saberes sociais dessas práticas (GAVÉRIO, 2019).

Há necessidade de uma educação sexual por parte de pais e professores, para que compreendam a sexualidade de crianças com deficiência, quem, na puberdade, terão desejos e curiosidades semelhantes aos das outras crianças da mesma idade, as quais não possuam deficiência. A diferença é que as com deficiência costumam ser mais vigiadas, e têm sua sexualidade abordada por muitos mitos. Em síntese, essas pessoas são tidas como naturalmente hipossexuais ou hipersexuais, ou mesmo assexuais.

Dutra (2019) sugere que, ao tratar da sexualidade e deficiência, propositalmente usar termos como “foder”, “trepar” ou qualquer outra equivalência em Português, para tirar a carga de inocência e infantilidade que frequentemente é lançada sobre pessoas com deficiência. Pois, ao tirar esse véu, todos se tornam somente humanos que fodem, que se masturbam e se relacionam amorosamente com outras pessoas. Afinal, como diz Centeno (2019), estar vivo é estar atravessado pela disposição ao prazer.

No que tange a Hoje quero voltar sozinho, é um mérito do filme o fato de ele, além de não romantizar a deficiência nem a dotar de drama excessivo, explorar com maior complexidade a vida do jovem protagonista. O foco não é o fato de ter ou não ter visão, pois isso é apenas detalhe de uma vida, mas a obra se debruça em um ser humano e tudo que lhe diga respeito, isto é, suas ansiedades, alegrias, sua vida erótica e as formas que usa para lidar com a tensão sexual, seu papel como amigo e colega de aula, de pessoa autônoma não apesar da deficiência, mas com a deficiência.

Independentemente de qualquer deficiência, é possível amar e ser amado, querer e ser querido, é possível estar excitado e provocar tesão, é possível explorar o novo, ter experiências raras, ter noção de um filme mesmo sem vê-lo, é possível mesmo ir para o exterior. É possível voltar sozinho para casa, ou mesmo acompanhado de um amor.

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FICHA TÉCNICA DO FILME

Direção e Roteiro: Daniel Ribeiro

Produção: Daniel Ribeiro e Diana Almeida

Produção Executiva: Diana Almeida

Direção de Fotografia: Pierre de Kerchove

Direção de Arte: Olivia Helena Sanches

Montagem: Cristian Chinen

Produção: Lacuna Filmes

Elenco: Ghilherme Lobo, Fabio Audi e Tess Amorim

REFERÊNCIAS

CARVALHO; Alana Nagai Lins de; SILVA, Joilson Pereira da. Sexualidade das pessoas com deficiência: uma revisão sistemática. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v70n3/20.pdf>. Acesso em 18 de maio de 2021.

CENTENO, Antonio. Estar vivo es estar atravessado pela disposição ao prazer. [Entrevista concedida a] Víctor M. Amela. Disponível em <https://www.lavanguardia.com/lacontra/20170501/422188080583/estar-vivo-es-estar-atravesado-por-la-disposicion-al-placer.html>. Acesso em 18 de maio de 2021.

DUTRA, Mari. Por que a sexualidade das pessoas com deficiência ainda é tabu. Disponível em: < https://www.hypeness.com.br/2019/06/por-que-a-sexualidade-das-pessoas-com-deficiencia-ainda-e-tabu/>. Acesso em 18 de maio de 2021.

GAVÉRIO, Marco Antonio. Por que a sexualidade das pessoas com deficiência é tabu. [Entrevista concedida a] Mari Dutra. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2019/06/por-que-a-sexualidade-das-pessoas-com-deficiencia-ainda-e-tabu/>. Acesso em 18 de maio de 2021.

VIGO, Iria Reguera. ¿Son los estereotipos siempre malos? Prejuicios y estereótipos. Disponível em: <http://rasgolatente.es/estereotipos-malos-prejuicios-y-estereotipos/>. Acesso em 17 de maio de 2021.