Elena: devir-vida e os (in)finitos estares do ser

Dedico este texto à memória de Vivaldo Oliveira Cerqueira e Marina Kohler Harkot

O contato com a morte nos cala ou leva a falar em compulsão, silencia e faz bradar, a morte prematura por suicídio fez com que Petra Costa se inspira-se na realização do longa-metragem Elena, de 2012, também por ela roteirizado. Nesse percurso da ausência que a diretora nos leva a contemplar o seu mergulho pelo seu semi-documentário, trabalhando fragmentos do imagético, imaginário e memórias de sua irmã Elena, que abreviou a própria vida depois de partir para construir sua carreira de atriz nos Estados Unidos.

Em Elena, Petra Costa nos oferece seu in-finitizar-se pela busca por um sentido, em todos os lugares, ou quantos forem possíveis ela conseguir (re)encontrar nos estares do ser de sua irmã. Da rua um dia atravessada, o aniversário ocorrido em festa, cartas e datas perdidas, o brincar recorrente, o preocupar-se nas partidas e chegadas, fatos e relatos, imagens e movimento, inscrições, falares e (in)quietudes.

O que Petra Costa explora com maestria é o contato com o ser, esse ser, que está na cercania do fim da vida, o devir-vida que nos preenche e nos conecta ao outro que também é existência. Há, em Elena, como obra fílmica a exposição de verbalizações discursivas pelo falado e retratado pelas espacialidades de um cotidiano não mais habitado, agora abandonado e uma (re)descoberta de si da diretora a partir do que pode (des)encontrar no silêncio existencial da sua irmã, para ir ao encontro de sua própria (in)compreensão.

O devir-vida e o ser-se (in)finito

Fonte: encurtador.com.br/CQX03

O ser-para-a-morte em nossa majoritária cultura cristã está cerrado como uma das intersecções do não-ser da sociedade ocidental (BUBER, 2001; CAMUS, 2010; SCHUMACHER, 2009). A resolução ontológica deste encerramento da passagem finita da existência ocorre de pronto, na projeção transcendental do reino do porvir mantido pela fé cristã, particularmente, em um pêndulo vívido entre o temor e o amor. Em Elena há uma quebra nesse padrão, na estruturação movimento-imagética para uma representação do durar-eterno, pela memória e saudade como (re)construção biográfica de Si e do Outro.

Esta (re)construção de Si e do Outro pelo ser-para-a-morte ocorre em meio a duração do agora e extensão do habitado, ambos não mais existentes como ocasião crontópica da existência não mais presente de Elena, como cotidiano devir-vida. Vivemos cotidianamente em (des)encontros com a efemeridade do instante, e a falta de alguém que já esteve tão perto, na qual e pela qual cultivado estavam sentimentos tão profundos, nos deslocam ainda mais da duração do presente, em reminiscência ao anterior ou posterior da existência, no silêncio primal do ser em potência, o entre-Nada do qual viemos e para o qual voltamos ou, de igual modo, ao nebuloso ulterior do que já, neste momento, deixou de sê-lo como futuro.

Por entre estes lugares-momentos do devir-vida, hoje silenciosos, nos (re)encontramos com o além-intervalo da existência em sua finitude, o caprichoso novelo das experiências, situações e uni-diversidade da existência. O memorial que ali foi vivido assim foi por conter a in-completude da experiência, lembrança, devaneio ou sonho, êmulos agridoces do ser em todos seus estares. Cada gesto, pensamento, mirada, toque, ação, mudez ou diálogo, em enlace ou efemeridade pulsam o sentido do guardado e fugidio do vivido, aquele cotidiano que escapa, em kairologia irrepreendida e não registrada. No entremear das teorizações possíveis e intermináveis, Elena nos expõem uma geoestética da perda do Eu-no-mundo com o Outro-no-mundo, desencontrados pelo ser-para-a-morte mas (re)encontrados como uma utopia imagético-memorial realizada por Petra Costa.

Curiosamente, é a metáfora da água que o semi-documentário mais utiliza, em uma rima sígnica com o mergulho, o profundo, ao mesmo tempo em que há sinalização do caminhar, de um sentir e viver-mundo no agora pelos sentidos e emoções da diretora em diálogos pela topologia dos estares do ser de Elena, em um exercício fílmico sensível e quase impalatável entre sombras, cores, dizeres e presentificações reais ou imaginadas do outrora foram lugares-momentos do existir.

Fonte: encurtador.com.br/CQX03

Como (re)contar tamanha história? Invólucro de um sem-número de experiências, referentes ao Outro-no-mundo Elena com o Eu-no-mundo Petra, perante rastros e registros desencontrados, falas dispersas e lugares passados, talvez já não mais materialmente alcançáveis? A diretora sabe que está numa encruzilhada narrativa, entre os 12 anos de filmagens de Richard Linklater, as milhares de páginas do tempo perdido de Marcel Proust e o Idiota da família de Sartre, ou ainda a deidade das pequenas coisas, como trabalhado por Arundhati Roy.

A pergunta epicêntrica, retorna como o que se pode saber sobre alguém em seu ser-se (in)finito? Petra Costa, em dado momento, percebe este entre-meio que se encontra como artista, realizadora cinematográfica e (re)escreve a si mesma pela trilha da irmã: “Acabei com mais de 200 horas de material. Como resultado disso, a primeira versão editada tinha três horas, porque inicialmente eu estava tentando capturar a história da minha irmã em sua totalidade.” (COSTA, s/d, p. 3). A diretora, ao final do processo de edição, já se misturava com sua própria obra, e o corpo e espírito de sua irmã: “ No final, acabei usando poucas dessas filmagens.” (COSTA, s/d, p. 10).

A partir desta sua condição, no limiar Eu-Outro, Petra Costa embarca em uma viagem empírico-real e imaginário-memorial entre os lugares e paisagens vazias, vividas por Elena, e transpassadas em seu próprio existir. O mudo devanear conecta-se aos objetos, relatos, coisas a formar uma epifania ôntica, sim, mas que transcende-se, em um polifônico enunciar-se de sentido do que outrora fora o pulsar do viver-Outro Elena. O tempo do instante vivido não mais atende a angústia de Petra Costa, entre Kairós e Cronos, é no segundo que a diretora desafia sua obra, na topologia do ser-no-mundo de Elena em uma nova significação do seu ser-para-a-morte, mesmo agora, novamente (des)velado no silêncio-potência como res-istência diante do jogo metafísico que vence o corpo.

Mesmo que tenha havido um afastamento da ontologia ocidental às membranas da metafísica o soslaio do (in)finito permanece, nos inquieta, questiona, habita espasmos e sonhos, despercebimntos e efemeridades cotidianas. A topologia do ser, como devir-vida, retorna a cada nova inscrição de nossos estares, o sabemos e sentimos, mesmo que muitas vezes o esqueçamos. Nos escrevemos, inscrevemos, grafamo-nos em e por nós mesmos, no Outro e no mundo (DUQUE-ESTRADA, 2006; HADDOCK-LOBO, 2008). O material, imaterial, espesso, singelo, bruto, efusivo, colossal, delicado ou instantâneo, vívido ou pálido. A experiência passa, as marcas ficam, acumulam-se, avolumam as tessituras do sobrepor-se em cascas sem fim.

Os estares do ser, em todos os lugares

Fonte: encurtador.com.br/CQX03

Esses estares da existência estão manifestados em bricolagem única efetuada por Petra Costa, em rimas sensoriais de sonho e imaginação, vivido em lugares, estares memoriais. As grafias da existência de Elena são-nos apresentadas com uma delicadeza ímpar, nos fazendo sentir com a diretora o devir-vida de sua irmã. Este grafar-se se dá material e imaterialmente, nas imagens, sons e emoções e a busca, não mais do tempo perdido mas, agora, encontrado pela efemeridade do habitar este mundo efetuado por Elena. Mãe e irmã nos guiam por entre os lugares-memória vividos por Elena, no Brasil e Estados Unidos. Evidencia-se uma atividade epopeica de (re)constituição do corpo e alma do ente querido não mais existente, como existência.

A opção escolhida pela diretoria de um documentário performático oferece ao espectador um estudo e reflexão, tanto da própria Petra Costa como de sua irmã. O trabalho de montagem das cenas é sensível, concatenado à trilha sonora e os momentos certos de utilização da voz narrativa e diferentes elementos que compõem a memória de Elena como fitas, cartas, filmagens caseiras, fotografias, relatos de amigos e justaposição de visitações aos lugares por onde a atriz passou e vivenciou suas últimas experiências em vida. O desenvolvimento do filme permeia esta escrita da vida de Elena, do escrever-a-si-mesma como (in)compreensão de Petra Costa, sua identidade e diferença para consigo e o (re)encontro com sua falecida irmã:

Eu não conhecia e sequer tinha noção dos seus tumultos internos. Mas, quando encontrei seu diário, tinha a mesma idade dela quando o escreveu. Ler suas palavras me trouxe um sentimento diferente de intimidade: era como se eu estivesse conversando comigo mesma através dela, ou tendo uma conversa com ela, canalizada por algum profundo recanto de mim. Cada palavra dela me fazia sentir como se estivesse vivendo uma vida já vivida por outra pessoa. Estávamos fadadas ao mesmo destino? O pensamento tanto me incomodou quanto me intrigou. Eu me vi presa a uma espécie de vertigem: uma mistura de sentimentos, um borrão, uma confusão entre mim e esse duplo. E, embora estivesse de certa forma assustada com essa duplicidade, eu queria explorá-la artisticamente, mergulhar nela e extrair dela uma história. (COSTA, s/d, p. 3).

O devir-vida é um infinito de inscrições que nos marca e marcamos nos estares do ser pelos lugares que habitamos. Nos bio-grafamos, incessantemente, em cada gesto, pensamento, memória, fazer, sonho, ida, volta, estadia, decisão e insegurança, laços construídos e distanciamentos decorridos, a cada instante, em todos os lugares, mais estamos que somos (HADDOCK-LOBO, 2008; LEVINAS, 2009). Os estares do devir-vida de Elena tornam-se visualizáveis, próximos experienciáveis, pelas imagens, memórias e narração de Petra Costa, seu curta-metragem transforma-se em um duplo convite ao espectador, a caminhar pela contemplação da artisticidade do ser de si própria e sua irmã.

Pela arte Elena viveu seu sonho, e seu pesadelo, experimentou o êxtase e o desespero, colocou-se em (des)limitações, deslocou-se no grafar-se de si por sua topologia do ser em sentidos outros. Na mirada do abismo, em seu (des)encontro com a experiência do Nada, não resiste, e seu estar finito encerra em um novo momento, agora composto pela silhueta dos estares do seu ser-no-mundo, um conjunto de dimensões da perda dos que a amavam, conviveram com ela ou presenciaram sua existência. Petra Costa perfaz este caminho das circunstâncias da (in)finitude de sua irmã, a reencontra nas (des)situações que um dia ela viveu, sentiu, descreveu ou calou-se, vai ao ser-Outro para compreender parte das lacunas de sua própria bio-grafia dos estares do seu ser em diferentes lugares, agora partilhados com sua irmã ausente há anos.

O ser-Outro é uma totalidade, é o rosto do (in)finito, podemos ter uma vida partilhada com outrem, mas esse ser-outro que também é mundo, outro-mundo, sempre terá picos, vales, sua própria topologia dos estares do seu ser pelo devir-vida. O aprender e viver-com, ter a vivência conjunta, em presença ou ausência, é mais importante do que uma busca desenfreada por respostas, geometrismos do sentir, fadados ao desterro em meio aos mais leves tremores ou ranhuras no tegumento onto-ontológico dos estares de nosso ser.

Entre o sido e vivido, há ainda o constante movimento, do é que segue sendo. Nesse ser que preenche-se por si e os outros viventes e todas as coisas possíveis nos questionamos, em propósito, transcendência, sentido, ser. O devir-vida, em escolha de des-limite comporta nossas angústias, momentos de felicidade, emoções e pulsões, vivências, laços, instantes, dizeres e quietudes. Compomos uma constelação de sentidos profundas a nós mesmos, e aos outros que nos cerca, estamos no Ser, mas recuamos ou sentimos o tremor pelo além-ser, o sem sentido ou essência, a pergunta para a qual a resposta não virá. Em Elena acompanhamos uma dessas perguntas, uma das nossas tantas faces do Nada, pela máscara da morte, que não devem ser reduzidas a uma contraposição simples dos estares do Ser, da existência mas sim sua (in)completude e uma trilha pela qual é possível e visível momentos de deslumbre de si, fugidios e elementares.

[…] ela aparecia em sonhos. No primeiro foi a imagem de sua morte. No segundo, Elena se cortava e eu começava a entender sua dor. No terceiro, eu cozinhava sua dor numa panela até ela evaporar. No quarto, eu sobrevoava uma floresta e, num cantinho de mata, via a alegria de Elena, que era laranja, da cor das árvores no outono. No quinto e último sonho, eu, menina, dançava em volta de sua cintura.

Elena é uma obra pensada na e para a irrupção do silêncio, uma auscúltica in-tensamente imersiva no que outrora fora o existente convivido entre Petra e sua irmã. A verbalização efetuada por Petra Costa é textual, imagética, emocional e memorial. As grafias de Elena são retratadas ou reconstruídas na esteira do invólucro ôntico deixado após sua morte, no concurso do ente-Outro em que estivera em manifestação em sua breve vida, por muito permanecida apenas na lembrança, nostalgia e dor dos familiares e amigos mais próximos e queridos por ela. Elena, filme e Outro-no-mundo, formam um calidoscópio de lugares-momentos, devires-vida, tão despercebidos como únicos, detentores da nostalgia que (im)permite a captação do claro-escuro da memória, no ser-se (in)finito.

“Já faz um ano que não sonho com Elena. Sinto, hoje, que, por meio do tempo e da alquimia entre imagem e som, as dores viraram água, viraram memória… viraram cinema. Na tela, Elena descansa. E dança.”

(Elena, Petra Costa).

Referências

BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles. São Paulo: Centauro, 2001.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

COSTA, Petra. Roteiro do Filme Elena. Disponível em: <http://www.elenafilme.com/roteiro/> Acesso em 19 de jun de 2021.

COSTA, Petra. Carta da Diretora. Disponível em: <http://www.elenafilme.com/ELENA%20-%20carta%20da%20diretora.pdf> Acesso em 19 de jun de 2021.

DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. A questão da alteridade na recepção levinasiana de Heidegger. Veritas (Porto Alegre), v. 51, n. 2, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-6746.2006.2.1842 Acesso em 19 de jun de 2021.

ELENA. Direção de Petra Costa. 82 min. Busca Vida Filmes. 2012.

HADDOCK-LOBO, Rafael. Derrida e o labirinto de inscrições. 1. ed. Porto Alegre: Zouk, 2008.

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Pivatto et al. (Coord.). 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

SCHUMACHER, Bernard N. Confrontos com a morte: a filosofia contemporânea e a questão da morte. Tradução: Lúcia Pereira de Souza. São Paulo. Edições Loyola, 2009.

STEIN, Edith. Ser Finito e Ser Eterno. Trad. Zaíra Célia Crepaldi. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2019.