Intocáveis: desdramatizando limitações

O filme “Intocáveis” retrata como Philippe, um homem endinheirado, após sofrer um acidente que o deixou tetraplégico, se relaciona com Driss, um jovem problemático,  sem experiência em cuidar de pessoas, mas que é contratado para ser seu assistente. Envolvendo drama e comédia, a obra é um retrato sensível da vida com deficiência, além de ressaltar a importância das relações que envolvam sinceridade e empatia, deixando de lado a pena pelo outro.

Os opostos são evidentes no filme. Um casmurro homem na meia idade e um jovem folgazão. Um milionário e seu cuidador cuja família vive em um reduto miserável da França. Contudo, dessas aparentes contradições e mundos opostos o filme absorve diversas lições, sem deixar de lado a leveza ao tratar os dramas. Se a diversidade é algo natural, o fato desses opostos torna-se um detalhe belo das diferenças humanas, as quais, não obstante, resultam na união entre esses polos distintos.

O que parece desgastado clichê, a ideia de que todos os seres humanos são sociais, e têm necessidades uns dos outros para as mais variadas situações, é retratada como amostra na história desses dois homens, e serve como premissa ao longo do filme, sem ênfase excessiva na tetraplegia do personagem central, pois ele, mais que tetraplégico, é pai de uma adolescente conturbada, tem apreço pela arte, tem tido aproximações com uma mulher, ainda preza pela aventura apesar do acidente que marcou o resto de sua vida, entre outros aspectos que seriam ignorados por uma perspectiva enviesada e reducionista.

A enorme diferença entre os dois personagens principais faz com que ambos aprendam um do outro, apoiando-se para superar os obstáculos de cada um. Em um mundo onde sujeitos com certas deficiências são rotulados a ponto de sofrerem exclusão, onde as pessoas são separadas por “aqueles sim, aqueles não”, o filme relembra que as aparências não importam – ou não deveriam importar – Driss, o cuidador, não julga Philipe por sua deficiência, nem Philipe julga seu cuidador por um histórico supostamente perigoso.

Fonte: encurtador.com.br/uvzFQ

O preconceito é derrubado quando as partes envolvidas se permitem conhecer e serem conhecidas, ainda que no fundo existam pequenas desconfianças, sobretudo por parte da família de Philipe. A grande questão é não permitir que essas suspeitas se tornem gritantes a ponto de determinarem o comportamento que leva à exclusão e intolerância.

Certamente com frequência somos, em alguma medida, movidos por estereótipos, que são crenças sobre outros grupos, as quais são generalizadas, num mecanismo usado para simplificar o mundo e dirigir nossa atenção ao que é relevante. Tais convicções podem estar corretas, equivocadas ou exageradas (VIGO, 2015). Os estereótipos podem ser mais ou menos certeiros, mas há problema quando são generalizados e tomados como verdades absolutas.

Segundo Vigo (2015), os estereótipos resultam em preconceitos, e lhes dão base de sustentação. Julgar precipitadamente é concluir antes de ter conhecimento cabal e fundamentado, e manter tal conclusão mesmo que haja provas contrárias, sendo, portanto, juízo parcial, obstinado e geralmente desfavorável a quem é julgado. Assim, os preconceitos nos coagem contra certas pessoas, simplesmente porque as identificamos com um grupo em particular. Isso é refletido como atitude através de sentimentos, predisposições, cognições e crenças. Em síntese, os estereótipos são as crenças que temos sobre um grupo, e os preconceitos são as atitudes, geralmente negativas, as quais levamos a cabo com relação a dado grupo social.

Vale ressaltar que, devido a um mundo complexo, onde recebemos grandes quantidades de informação de diversas fontes, que nos implicam na necessidade de tomar decisões, tais decisões precisamos tomá-las sem tempo suficiente para analisar tudo que é recebido. Assim, é necessário algum mecanismo para simplificar a realidade, sendo a categorização um desses mecanismos, com a qual organizamos o mundo classificando objetos e pessoas em grupos. Se classificamos as pessoas em grupos, podemos conseguir informação relevante e útil sem demasiado esforço (VIGO, 2015). O problema é que os preconceitos e estereótipos sirvam, não apenas como método rápido de obter informação, para usarmos essas informações de forma maléfica e injusta com outras pessoas.

Fonte: encurtador.com.br/hxX24

Driss nunca sentiu pena de Philipe, contudo, com seu carisma exacerbado, demonstrou empatia. – Na verdade, por justamente perceber que não era visto como coitado pelo rapaz, que o homem o contrata. Numa cena simbólica, após ouvir acerca do fato de Driss ser uma pessoa suspeita, negro, de uma “gente que não tem pena de ninguém”, Philippe responde que quer alguém sem piedade de sua condição.

É dito que sentir empatia pelos outros resulta na percepção de ver capacidades, e não as deficiências. Pelo contrário, sentir pena é portar-se como superior com relação à pessoa que supostamente provoca pena. Nesse caso, uma suposta compaixão tem na base um senso de ter tido sorte, ao contrário do outro que padeceu um infortúnio e é incapaz de muita coisa. Philippe percebia que seus parentes o tratavam como uma criança fragílima, digna de proteção e misericórdia, ao contrário de Driss, quem chegava a parecer indiferente à condição daquele sob seu cuidado.

No trato com pessoas com deficiência, é importante ter o cuidado de que as palavras e atitudes não denotem um paternalismo frio ou dramático, nem um senso de superioridade com relação ao outro. Afinal, indo além da mobilidade reduzida, todos têm algum tipo de deficiência ainda que mínima, razão pela qual recorremos a técnicas e ferramentas assistivas – como, além de cadeiras de rodas, os óculos etc. – que nos permitam uma melhor vida.

É preciso considerar que as habilidades funcionais das pessoas variam muito. A visão e audição variam de perfeita a nenhuma, os níveis de alfabetização e memória variam conforme as condições como dislexia, autismo, demência e estresse. Também as habilidades físicas das pessoas variam conforme as diferenças de mobilidade, destreza, força e níveis de dor (DUGGIN, 2016).

Fonte: encurtador.com.br/cvxF3

Contudo, reconhecer isso é um desafio numa sociedade capacitista, que não enxerga uma pessoa com deficiência como um ser humano “normal”, mas como indivíduo inferior, de menor valor, que não deve ser tratado da mesma forma. É preciso reconhecer que, no contexto brasileiro, em 2018 havia 14 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência (DIAZ, 2021).

Por fim, cabe citar que o filme também mostra como levar a vida com humor a torna maravilhosa. Todos têm defeito, às vezes rir deles pode fazer bem. Driss e Philipe têm uma vida repleta de ironias e dificuldades, mas eles não ficam estagnados nisso. Assim sendo, a principal lição do filme nos mostra que a deficiência não deve causar piedade na sociedade, mas ser tida como parte do que é ser humano, logo, não provocando surpresa ou desconfiança nos que não apresentam aparente condição médica. Quando se tem essa perspectiva, o sujeito é considerado mais além de sua deficiência, tido como alguém com potencialidades e que tem algo a oferecer, como qualquer pessoa.

Ficou evidente como as relações são importantes no processo de inclusão, indo além das meras mudanças de infraestruturas em prol da acessibilidade. Quando as relações são genuínas e marcadas pela conscientização, longe dos preconceitos, a deficiência torna-se apenas um detalhe, porque o sujeito, apesar de suas limitações, tem consigo mais do que possa sugerir seus aspectos externos.

Fonte: encurtador.com.br/djkOV

FICHA TÉCNICA DO FILME

Título Original: Intouchables

Duração: 112 minutos

Ano produção: 2011

Estreia: 31 de agosto de 2012

Distribuidora: California Filmes

Dirigido por: Eric Toledano, Olivier Nakache

Orçamento: € 9 500 000 milhões

Classificação: 14 anos

Gênero: Drama

Países de Origem: França

Referências

DIAZ, Luccas. O que é capacitismo e por que todos deveriam saber. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/o-que-e-capacitismo-e-por-que-todos-deveriam-saber/>. Acesso em 17 de maio de 2021.

DUGGIN, Alistair. What we mean when we talk about accessibility. Disponível em: <https://accessibility.blog.gov.uk/2016/05/16/what-we-mean-when-we-talk-about-accessibility-2>. Acesso em 17 de maio de 2021.

VIGO, Iria Reguera. ¿Son los estereotipos siempre malos? Prejuicios y estereótipos. Disponível em: <http://rasgolatente.es/estereotipos-malos-prejuicios-y-estereotipos/>. Acesso em 17 de maio de 2021.