Ao amigo desconhecido

Descobri que tenho um grande amigo. Se ainda fosse moleque de bodoque na mão, corria e o levava pra conhecer pai e mãe. Amigo assim vale à pena apresentar pra todo mundo em casa. Como chegou em hora que meu coração ainda buscava remendo, a alegria foi imediata. Este é daqueles amigos de verdade, tem como eu alma de menino, chora sem cerimônia, vê graça em poesia e já sofreu como o cão pela dor de perder quem amava, mas ainda assim diz que tudo passa e não deixou de sonhar. Como não ser amigo de alguém assim? Sempre tive ressalvas de quem só dá ‘bom dia’ com a cara mais boa, nunca bebeu, fumou e insiste que as coisas vão sempre bem e estão no devido lugar. Desconfie deles e dos que jamais sofreram dor de amor.

Outro dia, através das letras, nos encontramos num boteco pé-de-serra pra molhar a dor com pinga da boa. Era um entardecer macio e a luz morna entrava pelas frestas da velha janela iluminando pedacinhos do chão de cimento queimado – tudo limpo que dava gosto. Ali sentamos à mesa, comemos porção generosa de torresmo, depois carne de lata acompanhada por cachaça servida na cuia. Cerveja não tinha, pois nem luz havia o boteco. Lá, quando anoitece, tudo fica na penumbra cheirando a querosene de lampião. Hora mágica onde contamos nossos casos e ouvimos outros tantos de quem por ali se achega com desejo de encontrar sentido e companheiros.

Esse amigo é daqueles que não se marca hora pra sair, a gente quer mais é ‘entrar’. Entrar na prosa, no afeto, na boa companhia. ‘Sair’ é invenção pela falta de encontro entre pessoas que preferem ficar moribundas, assistindo programas desgracentos pela TV, cada vez menos recebendo amigos em casa.

Ultimamente, coitado, procura feito doido agulha e linha pra costurar meu peito e às vezes segura meu coração com tanto cuidado que não o deixa parar de tristeza. Ando dando trabalho, mas que fique claro: farei o mesmo quando precisar que minhas mãos também sejam de algodão para ampararem seu coração de anjo.  Por ora, ele diz que preciso tirar a palha seca que insiste em preencher minhas entranhas, por carne, osso, sangue e alma nova, cheia de vida… Feito isso, ele acha que estarei de novo na boleia da vida… Sua esperança é contagiosa.

Este amigo tem nome de poeta da antiguidade, lutou com deuses, criaturas medonhas e conhece tão bem o inferno que tenta agora me tirar dele, mas, teimoso como sou, não saio enquanto não resgatar minha Beatriz vitimada pela cegueira das Amazonas e voltar a crer no sentido de amar…Ele sorri e diz que o inferno passa, é só não desistir. Sinto-me privilegiado por tê-lo encontrado, ainda que não o conheça. Oxalá todos possam ter um amigo assim. Um que, mesmo não dizendo pra irmos por ali ou por aqui – já que isso é tarefa de padres e pastores -, nos acompanha sempre com a voz firme: ‘Estou com você, pois vamos juntos sabe Deus pra onde’…Um dia ainda vou conhecer este amigo desconhecido, embora saiba que tempo e distância pouco importam às grandes amizades. Elas são tecidas com fios de luz que nos emaranham de tal forma num rizoma, que aproxima nossos espíritos daquilo que mais perto se pode chamar de felicidade.

Pois, tenho um grande amigo desconhecido! Deus, obrigado.

Médico Psiquiatra com pós graduação pela Universidade Complutense de Madrid-Espanha e Servizio di Saluti Mental de Trieste-Itália; especialista em psiquiatria pela AMB e ABP. Mestre em Ciências da Saúde pela UNB.