Redes de Proteção em uma Sociedade em “rede”: possíveis implicações ao Suicídio

Nenhum homem é uma ilha” (John Donne).

O contexto atual da sociedade reflete corretamente a liquidez apontada por Bauman (2001). Instituições, crenças e relações se modificam constantemente, gerando certa insegurança quanto ao que pode suceder a qualquer dessas instâncias. Simultaneamente, amplia-se a possibilidade de comunicação à distância, sobretudo virtualmente, acrescentando uma peculiaridade à conjuntura contemporânea: o uso de redes sociais tomando, aceleradamente, o lugar de relações pessoais próximas e corroborando com a fluidez pois, ao mesmo tempo em que possibilitam certa “aproximação”, também facilitam a “dissolução” dos contatos.

Com base no pressuposto de que as relações pessoais recíprocas são fatores de proteção ao sujeito – ou seja, contribuem à saúde física e mental –, aborda-se a contribuição do contexto descrito no desencadeamento de fatores de risco para o suicídio. A despeito da abundância de comunicação/informação disponível na contemporaneidade, quando se trata do tema suicídio as massas se calam. Em vista dos sentimentos gerados pela dor da perda e do estigma causado aos familiares e comunidade, no que tange aos motivos que levam o sujeito a cometer tal ato, percebem-se grandes dilemas causados por essa sociedade do excesso e da volatilidade.

Fonte: goo.gl/M3XTBz

Faria e Souza (2011, p. 37) indicam que “A essência da identidade constrói-se em referência aos vínculos que conectam as pessoas umas às outras e considerando-se esses vínculos estáveis”. Na sociedade atual, em virtude dos inúmeros modelos identitários disponibilizados (ou impostos) – bem como pela sua volubilidade – e preponderância de vínculos impessoais, questiona-se: como pode-se construir uma identidade sólida? E quais as consequências ao sujeito mediante tais instabilidades?

Fonte: goo.gl/BpuqRy

Diante do cenário traçado, convém destacar os números disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Ministério da Saúde do Brasil. Estima-se que

804 mil pessoas tenham se suicidado no mundo em 2012 […], [sendo] 2.200 casos por dia, um a cada 40 segundos.

[No Brasil], entre 2002 e 2012, a taxa de crescimento dos suicídios em todo o país (33,6%) é superior à do crescimento da população no mesmo período […] (TRIGUEIRO, 2015, p. 20, 27).

Os dados são alarmantes e refletem apenas os casos notificados. Uma vez que é um tema delicado, e em muitos lugares considerado até como um crime, as estatísticas são ainda maiores. Voltando-se à proposição dos vínculos pessoais reais como fatores de proteção, é feita uma análise mais detalhada da virtualização dos relacionamentos em detrimento dos contatos estreitos, bem como o desenvolvimento de fatores predisponentes do suicídio.

Considerando a relevância dos relacionamentos interpessoais, poder-se-ia afirmar que atualmente a expansão das redes sociais contribui para que as pessoas estejam cada vez mais interligadas, independentemente da distância geográfica. Contudo, tal constatação é apenas em parte verdadeira.

Os avanços tecnológicos têm possibilitado a comunicação instantânea entre partes distintas do globo. No entanto, a despeito da velocidade e quantidade de comunicação à distância, questiona-se o caráter das relações que se constituem nesse contexto. Escritores como Zygmunt Bauman (1998 apud SMEHA; OLIVEIRA, 2013) pontuam a ausência de relacionamentos verdadeiros enquanto resultado do medo de lidar com aspectos difíceis que os tais podem oferecer. Aqui a comunicação virtual seria preferível por manter-se uma distância “segura” e facilitar a exclusão das relações insatisfatórias (BAUMAN, 2010 apud MARTINS, 2013). Contudo, ainda que desafiadores, um dos fatores de proteção mais relevantes ao sujeito são os relacionamentos próximos e recíprocos. Estes contribuem à constituição da identidade do sujeito e, consequentemente, ao melhor enfrentamento de possíveis adversidades. Acrescenta-se a premissa de Berkeley (1710 apud PINTO, 2008), que as características pessoais individuais são conferidas pelo outro, acentuando o papel das relações pessoais.

Fonte: goo.gl/95dASd

Para além de facilitadores da comunicação, as mídias sociais, especificamente – mas podendo-se destacar também os apetrechos tecnológicos utilizados para o acesso àquelas -, constituem-se como bens de consumo. Seguem a lógica de disseminar modos de ser e viver que devem ser “adquiridos” por todos. Há uma identidade e um senso de pertencimento atrelados às tais (THOMPSON, 2008, apud TASSO; NAVARRO, 2012). E como bens a serem consumidos, são constantemente substituídos por outros mais “atualizados” e “adequados”.

O impasse dessas novas configurações reside no impacto das tais sobre a identidade. Se a pós-modernidade favoreceu o distanciamento das relações, somado ao que se oferece no mundo virtual, não há bases para a constituição de uma identidade, diga-se “segura”, no que tange a um suporte para melhor enfrentamento de crises. Primeiro, pela ausência de vínculos pessoais reais; e, segundo, pela instabilidade dos modelos oferecidos pelas mídias. Na conceituação de Bauman (2004a apud LEITE, et. al., 2016, p. 6), trata-se de um contexto de liquidez, “[…] onde tudo é temporário, e […] como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. […] Quadros de referência, estilos de vida […] e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes”.

Pesquisas comprovam que o gasto excessivo de tempo nas redes sociais favorece o sentimento de solidão e baixa autoestima (PAMOUKAGHLIAN, 2011 apud PIROCCA, 2012). A insatisfação a priori em áreas da vida também pode intensificar o uso das mídias, por implicar na ausência de habilidades para enfrentar contrariedades (BREZING, et. al., 2010; YOUNG, et. al., 2010 apud PIROCCA, 2012). Percebe-se, então, uma influência mútua entre ausência de suporte social e utilização exacerbada de redes sociais. Sem relacionamentos pessoais sólidos, aliado à fluidez dos modelos com os quais se mantém maior contato – através das mídias sociais –, tem-se um ambiente propício ao surgimento de distúrbios no funcionamento social e psíquico.

Um dos fatos extremos que podem ser desencadeados a partir do isolamento social e sentimento de inferioridade é o suicídio. No entanto, ressalta-se que tal ato não pode ser reduzido apenas aos aspectos supracitados – visto que é um fenômeno complexo –, tampouco ser entendido como consequência inevitável do uso excessivo das redes sociais. No entanto, restringe-se essa discussão à relação entre o suicídio e os efeitos da virtualização das relações pessoais.

Fonte: goo.gl/jnFQua

O suicídio é um problema de saúde pública que registra altos índices de ocorrência em diversos países. Entretanto, os tabus que o cercam – como o “contágio” – e as consequências do ato (ou da tentativa) à família e sociedade como um todo, dificultam a abordagem ao tema e consequente proposição de medidas efetivas de prevenção.

Indivíduos que gastam horas a fio em redes sociais virtuais e aplicativos possuem baixa ou nenhuma satisfação com o mundo físico, isolando-se no mundo virtual. Em se desenvolver, dentre outros, a solidão, estão mais propensos a colocarem um fim na própria existência. Trigueiro (2015, p. 87), questiona “em que medida esse contexto agrava angústias existenciais e, em alguns casos extremos, leva […] a um ato tão desesperado como o autoextermínio?”.

O autor supracitado enfatiza a difusão de aparelhos tecnológicos facilitadores do acesso às redes sociais. Atualmente, é praticamente impossível encontrar alguém que não possua (ou deseje) um desses aparatos. Aqui também reside um outro fator de risco, o status conferido pelo consumo dos referidos objetos. Não consumi-los, bem como às referidas mídias, é quase um sinônimo de não existir, implicando no sentimento de inferioridade decorrente da exclusão. O outro extremo, do consumo excessivo, como já foi evidenciado, também produz implicações ao sujeito.

Ao contrário do que acontece nas redes sociais virtuais, as relações sociais presenciais inevitavelmente requerem um sólido compromisso entre as pessoas envolvidas. Tal compromisso, sendo aprazível, torna-se um fator que diminui a possibilidade do suicídio. Ornish (1998) afirma a relevância dos vínculos sociais, considerando que influenciam sobremodo a saúde física e psicológica do sujeito. O autor elenca uma série de estudos científicos fidedignos, ambos comprovando os efeitos positivos de relacionamentos estreitos e satisfatórios. Sem vínculos importantes, até mesmo para dividir as adversidades, a morte pode ser vista como mais significativa, em detrimento de enfrentar as contrariedades.

Fonte: goo.gl/ocMKeS

Leandro Karnal expressa em vídeo (PROVOCAÇÕES FILOSÓFICAS, 2016) o caráter desatento das relações, onde “ninguém ouve ninguém”. Em meio à “correnteza” da sociedade líquida, as relações, quando aparentemente “próximas”, são apenas episódicas e superficiais, não deixando, portanto, nenhuma consequência no que tange à reciprocidade (BAUMAN, 2007). Essa fragilidade dos vínculos e até a sua ausência tem sido associada a inúmeras patologias orgânicas e, como já mencionado anteriormente, pode predispor condições que levem ao ato extremo de autoextermínio.

Tendo sido evidenciados os aspectos negativos, destaca-se dados relevantes que associam o “outro” à proteção contra o suicídio. A partir de um site de pesquisas, Trigueiro (2015, p. 62) lista dados obtidos por Durkheim (1897):

  • Taxas de suicídio são maiores entre homens do que mulheres (embora mulheres casadas que permanecem sem filhos por alguns anos registrem taxas altas de suicídio).

  • Taxas de suicídio são maiores entre solteiros do que casados.

  • Taxas de suicídio são maiores entre os que não têm filhos do que os que têm.

  • Taxas de suicídio são maiores entre soldados que civis.

  • Taxas de suicídio são maiores em tempos de paz do que em períodos de guerra.

Estudos mais recentes, por sua vez, têm mostrado que o número de filhos também tem papel importante ao diminuir a possibilidade de autoextermínio por parte dos pais; ter um filho pequeno parece ser um significante fator protetor para mulheres; e mulheres grávidas têm um menor risco de suicidarem do que mulheres em idade fértil que não estão grávidas (REDUCING SUICIDE, 2002). Percebe-se como o “outro” possui um papel protetor ao sujeito, não apenas nas interações familiares mas também nas demais relações sociais. Ornish (1998) salienta que o contato próximo e frequente com amigos, familiares, comunidades religiosas, dentre outros, apresenta efeitos positivos extremamente relevantes a quadros em que já há patologias orgânicas e também na proteção contra as tais. Pode-se então alargar essas proposições, atestando o poder dos vínculos contra uma atitude drástica como o suicídio.

É evidente o papel protetor e acolhedor de relações interpessoais para lidar com os mais diversos problemas. Diversos estudos evidenciam que pessoas cujos relacionamentos são fortes e diversos podem lidar melhor com várias tensões como luto, estupro e doenças físicas, além de desfrutarem de saúde psicológica melhor. Assim sendo, o apoio social amortece potencialmente os efeitos de eventos negativos que poderiam resultar em suicídio (REDUCING SUICED, 2002).

Fonte: goo.gl/CsEbSR

Considera-se que o excesso em meios virtuais contribui ao enfraquecimento de relacionamentos sociais e também pode resultar deste. A crítica feita no decorrer do presente trabalho não implica em que se deva abolir o uso de redes sociais, visto que não se pode relegar suas contribuições à própria comunicação entre pessoas. E, como já foi mencionado, não se deve reduzir o suicídio a uma única explicação, como simplesmente pela ausência de relacionamentos satisfatórios. Semelhantemente, entende-se que a prevenção ao ato implica em uma gama de fatores, não apenas relacionais. Contudo, para os fins propostos a este trabalho, propõe-se que sejam priorizadas interações reais e recíprocas, considerando seus efeitos à saúde como um todo. Nas palavras de Ornish (1998, p. 30) “Quando nos sentimos amados, bem cuidados, apoiados, e íntimos, temos maior probabilidade de ser feliz e de ter saúde [– mental, física e espiritual]”.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. A vida fragmentada: ensaios sobre a moral pós-moderna. Lisboa: Relógio d’Água, 2007.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. [digital]. Disponível em: <https://vk.com/doc259715455_314878368?hash=7ed08d30138922e147&dl=ce61f64b4afd45294f>. Acesso em: 21 mai. 2017.

FARIA, E. de; SOUZA, V. L. T. de. Sobre o conceito de identidade: apropriações em estudos sobre formação de professores. Psicologia Escolar e Educacional. (Impr.), Maringá, v. 15, n. 1, p. 35-42, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572011000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 mai. 2017.

INSTITUTE OF MEDICINE et al. Reducing Suicide: A National Imperative. Disponível em: <http//www.nap.edu./>. Acesso em: 16 mai. 2017.

LEITE, E. L., et. al. A superficialidade das relações na contemporaneidade. V Congresso em Desenvolvimento Social. 2016. Disponível em: <http://www.congressods.com.br/index.php/anais-gt-05>. Acesso em: 15 mai. 2017.

MARTINS, L. J. O papel das mídias sociais na construção da identidade social do sujeito pós-moderno. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização). ROCA. Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

ORNISH, D. Amor e Sobrevivência: a base científica para o poder curativo da intimidade. Trad. Aulyde S. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

PINTO, J. Fraturas do linear e a cultura das redes. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 221-226, 2008. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682008000200015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20 mai. 2017.

PIROCCA, C. Dependência da internet, definição e tratamentos: revisão sistemática da literatura. Lume – UFRGS. 2012. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/40120>. Acesso em: 16 mai. 2017.

NINGUÉM ouve ninguém. Leandro Karnal em Palestra para XVI Encontro Paulista de Farmacêuticos. Canal Provocações Filosóficas. YouTube. Disponível em: <https://youtu.be/O_KuOYHIaX8>. Acesso em: 21 mai. 2017.

SMEHA, L. N.; OLIVEIRA, M. V. de. Os relacionamentos amorosos na contemporaneidade sob a óptica dos adultos jovens. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 33-45, 2013. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872013000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20 mai. 2017.

TASSO, I.; NAVARRO, P., (orgs). Produção de identidades e processos de subjetivação em práticas discursivas [online]. Maringá: Eduem, 2012. Disponível em: <http://static.scielo.org/scielobooks/hzj5q/pdf/tasso-9788576285830.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2017.

TRIGUEIRO, A. Viver é a melhor opção. 1 ed. São Bernardo do Campo: Correio Fraterno, 2015.