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Aprendendo a conviver com desigualdades

Para começar gostaria de confessar que até outro dia eu pensava que todo louco deveria ser internado e excluído do convívio com a sociedade. Grande engano o meu!

A minha parca experiência na área viaja por algumas fases da minha vida. Morador de uma pequena cidade do interior do Paraná, cresci “convivendo” com  Amarildo. Ainda criança, já o via vagando pelas ruas da cidade “dirigindo” seus mais incríveis e invisíveis, pelo menos aos olhos da grande maioria, automóveis. Ultrapassava, estacionava, dava marcha-a-ré, parava nas esquinas, buzinava, acelerava, dava “cavalo de pau”, parava para abastecer no Posto Amigão (e somente naquele posto, pois alegava que ali a gasolina era melhor), enfim, cresci vendo o Amarildo “conduzindo” seus veículos pelas ruas da cidade.

Para melhor ilustrar, um certo dia, estávamos reunidos, alguns amigos, quando chegou Amarildo, parou seu carro, “estacionou”, desceu e veio em nossa direção. Naquele instante um amigo chamou-o e perguntou: Amarildo, você não vai fechar a porta do seu carro? Eis que, para nossa surpresa e deleite ele respondeu: Não … Você não está vendo que eu estou de trator!

Este episódio ficou gravado na minha mente, não me recordo quantas vezes contei esta história!!! Amarildo frequentava a casa de muita gente. Alguns tinham medo, outros – como nós lá em casa – tínhamos afeição por aquele “louco”. Volta e meia, ele estacionava seu carro na frente de casa, na hora do almoço e filava uma bóia; outras vezes, nós é que o parávamos para forçá-lo, ou melhor, induzi-lo a tomar um banho: Amarildo! Você sujo deste jeito andando neste carro tão bonito, venha tomar um banho!

Ele andava o dia todo, incansável, só parava para dormir. De vez em quando, Amarildo desaparecia, passava algum tempo internado! Era internado porque alguns inconsequentes lhe ofertavam pinga, o que o fazia surtar, ficar agressivo! Mas, logo voltava e a sua ausência era sentida e comentada por todos.  Amarildo convivia em perfeita harmonia, era parte integrante da sociedade. Neste sentido, Amarildo fez parte da minha infância e adolescência e da de muitos amigos meus. A turma era grande…

Naquela época, Amarildo representava a figura do “louco bom”, inofensivo, e que, embora tivesse um comportamento totalmente atípico, não fazia mal a ninguém. Amarildo era sinônimo de liberdade! Uma sensação que muitos de nós procurávamos na época!

Hoje, depois de apresentado à história da psiquiatria, os modos e formas de tratamento  – que vão desde idade média, época em que pessoas como Amarildo, seguramente, seriam vistas como algo divino; passando pelo modo asilar, modo em que Amarildo seria, com toda certeza, recolhido e tirado do convívio da sociedade; chegando aos dias de hoje, com as formas alternativas de tratamento – sei que Amarildo poderia ser acompanhado com enfoque personalizado, tratado como um todo, como personagem da sua própria história.

Acredito que muitos tenham experiências semelhantes. Muitas cidades têm casos parecidos, em especial as de menor porte, onde a maioria se conhece e casos como este passam a fazer parte da sua crônica.

Partindo dos princípios da terapia alternativa, não manicomial, de inserção destes “loucos” no convívio com a sociedade, estas pequenas cidades costumam andar na frente, absorvem e convivem em harmonia com seus “loucos” e, olhando sobre este prisma, aquela pequena cidade, ou melhor, os seus moradores, mesmo que inconscientemente, desenvolviam um papel social importante de integração, absorção e aceitação das diferenças e dos diferentes.

O enfoque atual do tratamento psiquiátrico passa por uma verdadeira guerra, pois a Luta Antimanicomial é uma bandeira que incomoda muita gente e contraria muitos interesses. Grandes avanços já foram conquistados mais ainda falta muito. Histórias como a de Amarildo devem servir de exemplo e estímulo para se continuar mudando, aceitando, convivendo … com as desigualdades.