Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças: o que se perde em esquecer?

“Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram o melhor de seus equívocos.”
Nietzsche

 

Segundo Albert Schweitzer (ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1952), “felicidade nada mais é do que ter boa saúde e memória ruim”. E qual de nós, especialmente nos dias de hoje, assoberbados de informações, de explicações sobre traumas, permeados por doenças que ganham forma justamente pelo excesso de relações entre fatos e lembranças, não gostaria, vez ou outra, de simplesmente ESQUECER.

A possibilidade de ESQUECER é a premissa central do filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.  Mas, talvez a questão principal lançada pelo fantástico roteiro de Charlie Kaufman (de Quero ser John Malkovich) esteja naquilo que deixamos para trás ao esquecer, aquilo que perdemos. Se nossas lembranças, sejam elas boas ou más, constrangedoras ou edificantes, humilhantes ou prazerosas, definem, de certa forma, quem somos, até que ponto poderíamos escolher o que esquecer sem nos apagar também nesse processo?

Esse é um dos questionamentos que vem à tona enquanto acompanhamos a história de Joel e Clementine. Jim Carrey (Joel), longe da leveza que costuma imprimir nos personagens dos vários filmes cômicos que protagonizou, mostra-nos um homem enfadado pela rotina, rodeado por um mundo opaco, cansado, introspectivo, subjugado, mas cuja vida parece mudar ao conhecer a colorida e cheia de vida Clementine. Tudo na personagem de Kate Winslet (Clementine) nos remete a uma ideia de excesso de vida, seja a cor laranja de sua jaqueta, seja o azul/vermelho/laranja dos seus cabelos. Mas, assim como o cabelo muda de cor rapidamente, o humor de Clementine também é alterado com frequência. Ela, como alguns de nós, se cansa facilmente da rotina e questiona-se sobre o motivo de ter que permanecer em um relacionamento no qual parece não ser mais feliz.

Esses dilemas e a sua impulsividade fizeram com que Clementine decidisse pela opção mais rápida e, talvez, mais fácil de tirar Joel de sua vida. Talvez fosse difícil demais para ela carregar a responsabilidade de ser o “brilho” que faltava ao seu cotidiano opaco ou, na verdade, estivesse cansada de ter que se importar com alguém. Já que parece que à medida que nos importamos com alguém aumenta a probabilidade de termos que lidar com o sofrimento.

É nesse contexto que o Dr. Howard Mierzwiak, um cientista que conseguiu sucesso ao criar um sistema que permite mapear a memória e, a partir disso, apagar rotas indesejadas que se definem na arquitetura da mente, entra na vida de Clementine. Ela procura a clínica que promete o esquecimento milagroso e apresenta as justificativas necessárias para realizar o procedimento. Assim, Joel passa a ser apenas um espaço apagado em sua memória, um espaço disponível para ser ocupado por novas lembranças, novos amores.

“Deixar as pessoas recomeçarem é lindo. Olhamos para um bebê e é tão puro, tão livre e tão limpo. Os adultos são essa confusão de tristezas e fobias.

 

Através de um bilhete da Clínica Lacuna, Joel entende que foi banido da vida de Clementine. Não há mais lembranças do primeiro encontro, nem das histórias que contavam um ao outro antes de adormecer, nem das infindáveis brigas. Ele não existe mais em sua memória, logo, não existe em sua vida.

E enquanto assistimos a tudo isso com aquela sensação de estarmos vendo mais um filme de ficção científica, pesquisas, como as citadas a seguir, são apresentadas cada vez com mais frequência em sites especializados ou, de forma mais superficial, na mídia de uma forma geral.

Um novo estudo do MIT [1] revelou um gene que parece ser fundamental para o processo de extinção de partes da memória. Segundo Li-HueiTsai, pesquisador do instituto de Aprendizagem e Memória do MIT, aumentar a atividade desse gene, conhecido como Tet1, poderá, por exemplo, beneficiar pessoas com transtorno de estresse pós-traumático, pois isso facilitará a substituição de memórias relacionadas ao medo a partir de associações com memórias mais positivas. O gene Tet1 parece controlar um pequeno grupo de genes necessários para a extinção da memória. “Se houver uma maneira de aumentar significativamente a expressão destes genes, então o processo de extinção pode se tornar muito mais ativo”, diz Tsai.

Já a equipe liderada por Courtney Miller, do The Scripps Research Institute (TSRI) na Flórida, conseguiu apagar com sucesso memórias associadas às drogas em camundongos e ratos, fornecendo esperança para a recuperação de viciados ou pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático [2]. Eles observaram, por exemplo, que o desejo de drogas por ex-dependentes de metanfetaminas é desencadeado por associações de memória. Assim, o retorno de um paciente de uma clínica de reabilitação à sua rotina diária pode se tornar uma experiência terrível, já que as lembranças associadas ao vício podem retornar de forma mais intensa.

Os testes realizados após a alteração da estrutura das células nervosas nos camundongos e ratos revelaram que eles perderam “imediatamente e persistentemente” todas as memórias associadas com a metanfetamina. Todas as outras lembranças, tais como recompensas alimentares ou choque nas patas, ainda estavam intactas [2]. Miller diz:

“Não muito diferente do que é apresentado no filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, estamos à procura de estratégias para eliminar seletivamente evidências de experiências anteriores relacionadas ao abuso de drogas ou a um evento traumático. Nosso estudo em camundongos nos mostrou que podemos fazer exatamente isso, ou seja, apagar memórias relacionadas às drogas sem prejudicar outras memórias”.

E é com essa ideia de apagar uma experiência traumática, que no caso é sua relação com Clementine e, especialmente, uma forma de esquecer o fato de que foi sumariamente e literalmente apagado de sua vida, que Joel também procura os serviços do Dr. Mierzwiak. Desta forma, inicia-se uma nova fase no filme, que se passa dentro da mente de Joel.

O interessante de percorrermos essa jornada com o Joel é que podemos entender não apenas como ele vê a Clementine de forma consciente, mas, especialmente, como ele a percebe em seu subconsciente.

E é a Clementine construída por ele, em seu subconsciente, que traz à tona as formas e nuances mais profundas do seu relacionamento. Quando a vemos falar e interagir com ele, na verdade estamos vendo a marca mais profunda que ela deixou em seu subconsciente, ou seja, tudo ali é ele, é a forma que ele percebe o mundo com ela.

Em um dado momento nessa jornada, o entendimento de que o procedimento de exclusão da memória de suas vivências com ela está sendo realizado, faz com que ele tente criar meios para confundir o sistema, pois se arrepende de ter desejado apagá-la. Assim, ele leva-a a partes de sua memória em que o programa não poderia alcançar, já que o mapeamento realizado considerou um encadeamento de lembranças vividas com ela através de objetos, cheiros, locais. E é esse desejo inconsciente de estar com ela que o faz buscá-la mesmo depois que o procedimento é concluído com sucesso, ainda que, em tese, já a tivesse esquecido.

Com isso, retornamos ao início do filme, que na verdade é o seu final, já que o roteiro não é linear. E aquelas duas pessoas, esquecidas de sua vida em conjunto, voltam a se encontrar.

Ele, achando que estava agindo por impulso pela primeira vez na vida, desiste de ir ao trabalho e pega um trem em direção à praia. Mas, na verdade, seu impulso é um ato movido pelo subconsciente, onde as sensações vividas não foram totalmente apagadas e a lembrança da praia, que foi o lugar em que a conheceu, ainda estava presente, mesmo sem um significado consciente.

Em meio à jornada de Clementine e Joel, outras histórias se cruzam, como o fato de que em qualquer ambiente existem aqueles que vão se aproveitar de determinadas situações. Por exemplo, se o uso do cartão de crédito de alguém provoca estragos financeiros terríveis, o que dirá do uso de suas memórias? É isso que um dos funcionários da clínica faz ao ter acesso às memórias do romance do casal. Por achar que estava apaixonado por Clementine, tenta reconstruir as ações do Joel para que ela pudesse se apaixonar por ele, já que seguindo um raciocínio lógico, isso poderia ser provável.

Mas, a lógica não explica a maior parte das questões que permeia os sentimentos humanos. Ainda que o Joel tivesse sido apagado da memória de Clementine, as emoções que ela viveu e as sensações que tais emoções provocaram ainda estavam vívidas em seu subconsciente e refletiam nas formas mais variadas em seu dia-a-dia. Sem cair em um dramalhão vazio, a mensagem que o filme remete nesse aspecto é que mesmo seguindo um manual com regras e palavras adequadas, o funcionário da clínica não conseguiu atingir as emoções de Clementine. Assim, por mais que ela não se lembrasse da pessoa que encontrou no trem indo em direção a praia, o “conjunto de fatores” que formava aquele indivíduo despertou nela um interesse imediato.

As pesquisas que tem como temática o mapeamento da memória apresentam uma série de justificativas embasadas em problemas complexos. Esses problemas vão desde a dependência química até traumas terríveis vivenciados na infância (como abuso sexual). A questão, claro, é o limite que será imposto ao uso desses métodos. Será que algum dia poderemos modelar nossas memórias como modificamos nossa aparência em cirurgias plásticas? Quem decidirá que tipo de intervenção é “saudável”?

Somos apenas a soma das nossas memórias ou o somatório dessas experiências está intrinsicamente relacionado há algo que já se encontra inscrito em nosso DNA? Apagar um evento traumático poderá modificar o que esse evento já causou ou os danos dessa remoção poderão causar mais perturbações do que o próprio incidente?

A frase que deu título ao filme foi extraída de um poema de Alexander Pope, um dos maiores poetas britânicos do Século XVIII:

“Feliz é o destino da inocente vestal ! Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças! Toda prece é ouvida, toda graça se alcança.”

Será que o esquecimento é, de fato, uma benção? A impressão que temos, ao final do filme, é que ter uma mente sem lembranças nem sempre significa ser tocado pelo brilho eterno. Antes de criarmos meios para apagar, talvez seja necessário entendermos o complexo conjunto de variáveis envolvido no processo de esquecer.

REFERÊNCIAS:

[1] How old memories fade away – Discovery of a gene essential for memory extinction could lead to new PTSD treatments. Disponível em http://web.mit.edu/newsoffice/2013/how-old-memories-fade-away-0918.html

[2] Scientists successfully erase unwanted memories. Disponível emhttp://www.medicalnewstoday.com/articles/265957.php

FICHA TÉCNICA:

BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS


Direção: Michel Gondry
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco:  Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Victor Rasuk, Mark Ruffalo, Tom Wilkinson, Elijah Wood
Ano: 2004
Premiação: Oscar de roteiro original (Charlie Kaufman)

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.