“Êxodo: deuses e reis” – a saga do povo judeu e a antiga disputa entre os adeptos da imanência e da transcendência

Dirigido por Ridley Scott (de Gladiador), “Êxodo: deuses e reis” está em cartaz nos cinemas, estreou em primeiro lugar nas bilheterias dos Estados Unidos, e destaca a saga do povo hebreu que se libertou depois de 400 anos de escravidão, no Egito Antigo.

O filme é uma adaptação do livro bíblico homônimo, parte das Escrituras Hebraicas que os cristãos chamam de Antigo Testamento (os judeus denominam-na de Torah), onde se narra “a vida do profeta Moisés (Christian Bale), nascido entre os hebreus na época em que o faraó ordenava que todos os homens desta linhagem fossem afogados”. A história (ou estória, para os que não acreditam nos relatos bíblicos), amplamente conhecida no Ocidente, mostra como o profeta foi resgatado e viveu como príncipe, até se dar conta de sua grande missão: libertar o povo judeu da exploração egípcia e conduzi-lo à Canaã, a Terra Prometida (a atual Israel). Como não poderia deixar de ser, o longa tenta reproduzir ao máximo a visão escatológica que permeia a antiga escritura sagrada.

Em “Êxodo” fica clara a enorme devoção pelo que o povo hebreu/judeu sempre foi (re)conhecido. Demonstra, em linhas gerais, que mesmo sob o jugo da opressão (assim como ocorreu com os escravos africanos no Brasil, quando não lhes era permitido praticar a sua fé durante o processo de colonização do país), eles conseguiram manter-se coesos e esperançosos e, assim, conservaram e perpetuaram suas tradições e religiosidade até nas condições mais adversas. Isso, de fato, parece ocorrer até os dias atuais, em que pese o relativo alívio advindo do reconhecimento da nação judaica, há mais de 60 anos, ainda sob tensão com os vizinhos mulçumanos.

RELIGIOSIDADE E DESTEMOR

“Êxodo: deuses e reis” dá uma pequena demonstração da força deste povo guerreiro, descendente de Jacó e Abraão. Com o longa, tem-se uma breve ideia de o porquê o “gene hebreu” fez surgir algumas das mentes mais brilhantes do mundo, tais como Steven Spielberg, Sigmund Freud, Albert Einstein, Baruch de Spinoza, Karl Marx, Woody Allen, Michael Bloomberg, Franz Kafka, Levi Strauss, Marcel Proust e Stanley Kubrick, só para citar alguns. Além disso, a produção hollywoodiana apresenta, dentre outras coisas, uma discussão tão antiga quanto a própria existência do judaísmo: a permanente tensão entre os adeptos da imanência e da transcendência, no âmbito da metafísica.

Para quem acha que estes assuntos não dizem respeito à saúde mental, ledo engano. Lembremos que na produção da subjetividade, e no processo mesmo de constituição do que se chama de “virada civilizatória”, como bem descreve algumas das teorias do psicanalista Freud (sob o viés da origem das neuroses e/ou traços de personalidade), as atuais visões de mundo (até as aparentemente “neutras” perspectivas seculares) também são fruto do imaginário de fundo religioso, e se dele não dependem completamente, ao menos derivam em alguma medida.

Feito este adendo, voltemos para o “embate” imanência X transcendência. Em “Êxodo”, fica clara a posição das tradições teístas, com a típica marcação dual (entre quem cria e quem é criado) que só pode ser superada a partir da transcendência. Na filosofia, este assunto é aprofundado a partir do desenvolvimento da teleologia e da ontologia e seus desdobramentos altamente racionais para o sentido das “causas finais, causas eficientes e estudo do ser”. O primeiro e um dos maiores expoentes desta investigação é Aristóteles, cujo trabalho também ficou conhecido como teleologismo, o típico uso de uma noção de “orientação para um fim” (no caso dos judeus, o fim de seu povo naturalmente seria a união com D’us [Deus]). A transcendência (transcendence), neste contexto

É a exterioridade e a superioridade absolutas: o outro lugar de todos osaquis (e até de todos os outros lugares), e sua superação. […] Pois ‘o sentido do mundo deve ser encontrado fora do mundo’, escreve Wittgenstein. A transcendência é esse fora ou o supõe. É o Reino ausente, que nos condena ao exílio (COMTE-SPONVILLE, 2011 – pág. 602)

O “Reino ausente” dos judeus, num âmbito absoluto, é a própria condição de comunhão com Deus. Na terra, esta “ausência” é preenchida por Canaã, a “Terra Sagrada” dos profetas ancestrais responsáveis pelo recebimento, compilação e transmissão de um conjunto de preceitos éticos capazes de, se levados a cabo, reaproximar as criaturas do Criador. Além disso, por transcendência se entende uma “superação de todo dado ou de todo limite […]” (idem, pág. 603). A liberdade seria possível, desta forma, pela possibilidade de transpor qualquer situação e, no mais da verdade, até aceitar a contingência e a privação tendo em vista uma dada finalidade (a união com o Sagrado, com “O Eterno”). Com estas breves definições, é possível ter um vislumbre do por que o povo judeu resistiu a todo tipo de perseguição nos últimos três mil anos, e particularmente no século passado, com o abominável holocausto patrocinado pelos nazistas. De fato, parece ser um povo extremamente forte e persistente.

A outra ponta, a imanência, poderia ser representada no filme pelo personagem do faraó Ramsés II, figura aparentemente “autossuficiente”, uma espécie de “rei-deus” (ele até chega a se denominar desta forma, no longa), que “detém um sentido de autoconstituição histórica” (idem, 300) e que, portanto, só acredita no próprio poder ou na dinâmica das condições empíricas que resultarão em experiências estritamente internas. Nesta perspectiva de imanência (há outras), existe uma aproximação com o materialismo e sua “tendência a negar a realidade espiritual autônoma […], uma espécie de naturalismo radical” (idem, pág. 371). Em que pese o fato de Ramsés II cultuar as divindades de seu povo, no filme ele não demonstrava acreditar verdadeiramente em tais divindades.

Ramsés, contudo, também não poderia ser enquadrado no chamado “imanetismo absoluto” que é encontrado em Spinoza, já que Deus, para este filósofo holandês, não é algo a ser alcançado, sequer é algo que está separado (Criador de criatura), uma vez que tudo “está contigo inseparavelmente na natureza de um ser ou de um objeto”, sendo um contrassenso buscar uma complementaridade para o que já detém tudo. O rei egípcio, portanto, absorve a imanência apenas pela forma como acredita possuir poder ilimitado, mas ao mesmo tempo se coloca como aquele que cria, no âmbito do seu reino, e que, portanto, está acima/separado dos demais (um aspecto da transcendência, com outra perspectiva).

DIFERENÇAS MARCANTES

Em alguns de seus escritos (notadamente em sua coluna periódica na revista “Filosofia – Ciência & Vida”), o filósofo Renato Nunes Bittencourt (da UERJ) aponta para o problema da transcendência. Para ele, esta abordagem tira do homem a possibilidade de lidar com o inesperado, já que se baseia em “narrativas universalistas que pressupõem a existência de uma verdade plena”. Bittencourt defende os “valores trágicos da imanência” que foram pregados por Nietzsche, onde “tudo o que há é o que existe no âmbito da experiência possível”. Em oposição a esta visão, há o filósofo Luiz Felipe Pondé, que ao se referir à antropologia ortodoxa, diz que

“o pecado mais temido […] é a auto-pistis (literalmente, ‘fé em si mesmo’), ou ‘suficiência’. Trata-se da ideia do ser humano como um ser suficiente, concebido no contexto exclusivo da ‘natureza natural'” (PONDÉ, 2013 – pág. 21)

Pondé lembra que, para a ortodoxia, o “homem é um ser sobrenatural ao qual a natureza é agregada”. Desta forma, a religião e o sobrenatural são encarados como o espaço do bem, “enquanto o mal encontra-se ligado ao regime de imanência, ao que é deste mundo (‘o inferno é aqui’)”. O demônio, portanto, além de um estado de perturbação mental, seria a crença exclusiva na materialidade.

Estes são, certamente, alguns dos pontos abordados no filme. Eles têm os seus prós e contras. Para os eminentemente imanentes (como algumas correntes budistas), há o benefício de se cultivar uma forte “investigação do self”, através de diligentes processos meditativos. Como não acreditam em nada que seja estritamente “sobrenatural”, tendem a desenvolver processos subjetivos assentados na experiência e na contingência. Um ponto negativo é que, se levado a um extremo, esta visão pode descambar num materialismo frio, egoísta, que não toma em conta a necessidade das outras pessoas e seres. Daí a forte ênfase budista na compaixão e na interdependência, espécie de antídoto para evitar anomalias.

A transcendência, como aspecto positivo, é lastro para o idealismo e para as utopias. É uma espécie de geradora de perspectivas ideais. Provavelmente pessoas e nações, no Ocidente, chegaram a altos padrões de desenvolvimento motivadas por sonhos, ideais e possibilidades que “transcendem a simples experiência empírica, previsível e puramente material”. Um ponto negativo, como demarca Bittencourt, é a tendência a negar completamente a vida – no aqui e agora – como realidade última (o que pode levar a um niilismo); há também, lembra Bittencourt, certa incapacidade de grupos de adeptos da transcendência em lidar com os contratempos (já que se orienta à base de preceitos universais, com pouca margem para correção).

RELIGIOSIDADE E SAÚDE PSÍQUICA

De comum entre os espiritualistas absortos tanto pela imanência quanto pela transcendência há os benefícios psicofísicos provocados pela prática religiosa. São vários os estudos recentes que demonstram maior expectativa de vida e menor propensão à depressão, por exemplo, em quem pratica alguma religiosidade. Num deles, desenvolvido pelo Serviço de Medicina Integrativa de um dos maiores hospitais do Brasil, o Albert Einstein (de São Paulo), chegou-se a conclusão de que quem desenvolve a espiritualidade tem “mais chances de se recuperar rapidamente de alguma doença”.

De acordo com matéria da revista Superinteressante publicada há um ano, isso não se trata de “intervenção divina nem feitiçaria. É comportamento. Os entrevistados que são religiosos apresentaram um comprometimento maior com a própria saúde”, e quando submetidos a processos clínicos mais severos, como uma cirurgia ou transplante, estão mais bem preparados tanto organicamente quanto psicologicamente.

Por fim, “Êxodo: deuses e reis” mostra outra faceta importante da religiosidade. Trata-se do desenvolvimento do espírito comunitário. Adeptos da imanência ou da transcendência têm em comum o forte hábito para práticas em grupo. Os rituais e ações coletivas, portanto, são mecanismos que criam unidade (mesmo na multidiversidade de pessoas), que ajudam a desenvolver hábitos colaborativos e, consequentemente, amplia em seus membros um claro sentimento de “pertencimento”.

Em época regida por um individualismo desmedido, trata-se de uma prescrição relativamente acessível para quem está sujeito a uma série de patologias psíquicas. E excluindo-se parte da abordagem milenarista comum a algumas tradições messiânicas, cujo viés está mais para a geração do medo e da subserviência, as religiões estão cada vez mais próximas da ciência (e vice e versa), ao passo que muitos pensadores apontam este como o grande desafio do século 21.

Que este diálogo possa render bons frutos, para o bem da Filosofia e da Psicologia. E para o bem, obviamente, de todos os que procuram dar significados “mais concretos” à vida, diante de um mundo cada vez mais marcado pela profusão de possibilidades e, ao mesmo tempo, por uma instabilidade aterradora.

FICHA TÉCNICA DO FILME

ÊXODO: DEUSES E REIS

Título Original: Exodus: Gods And Kings
Direção: Ridley Scott
Países/Ano: EUA, Reino Unido, Espanha – 2014
Gênero: Épico, Ação
Atores (atrizes) principais: Christian Bale, Joel Edgerton, John Turturro, Sigourney Weaver, María Valverde, dentre outros(as)
Roteiro: Adam Cooper, Bill Collage e Steven Zaillian

Trailer:

 

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Petrópolis: Vozes, 2008;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

SWINBURNE, Richard. Será que Deus existe?. Lisboa: Gradiva, 1998;

BITTENCOURT, Renato Nunes. Filosofia da Linguagem: Para além da tradição. Revista Filosofia – Ciência & Vida (número 99). São Paulo: Editora Escala, out. 2014;

“Êxodo: deuses e reis”– sinopse. Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-208430/> . Acesso em 21/12/2014;

HORNSTEIN, Luis. Narcisismo – autoestima, identidade, alteridade. São Paulo: Via Lettera, 2009.

A ciência da fé. Revista Superinteressante. Disponível em <http://super.abril.com.br/ciencia/ciencia-fe-774643.shtml> . Acesso em 21/12/2014;

Judaísmo e religiões abraâmicas. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Juda%C3%ADsmo> . Acesso em 21/12/2014;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e Profecia – A Filosofia da Religião em Dostoievski. São Paulo: Leya Brasil, 2013 (e-book);

Meditação ajuda a proteger o cérebro de doenças psiquiátricas, diz estudo. Disponível em <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/meditacao-ajuda-proteger-o-cerebro-de-doencas-psiquiatricas-diz-estudo.html> . Acesso em 26/06/2014;

NADLER, Steven. Um livro forjado no inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o nascimento da era secular; tradução de Alexandre Morales. – São Paulo: Três Estrelas, 2013.

 

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.