Anos nem tão dourados: A triste infância de Ciça

“Enquanto fenômeno socialmente construído, incorporada como legítima e, mesmo, como imperativo, a violência prende-se às próprias condições de constituição e de funcionamento de uma sociedade de homens livres.” (ADORNO, 1988, p. 5).

No dia 15 de agosto de 1956 às 18 horas de um dia de sexta feira, nascia Ciça, um belo bebê saudável que pesava 4 kg. Ciça veio de uma gravidez não desejada, num lar disfuncional e muito, muito pobre de recursos materiais, bem como emocionais. O bebê era a quarta de uma família de seis agora, a mãe trabalhava dia e noite lavando trouxas enormes de roupas, que mal dava conta de carregá-las. Maria era linda e loira, olhos azuis da cor do mar em calmaria, só a cor que lembrava a calmaria. Sua pele muito branca fazia um contraste dolorido com o sol quente. As condições de trabalho eram precárias, três bacias, água tirada na cisterna puxada por uma corda, onde tinha um balde pendurado, (chamava-se sari). 

O sol castigava, pois não havia proteção, o trabalho era realizado durante o dia todo debaixo daquele sol escaldante, ou da chuva, tinha quatro filhos para alimentar. O pai de Ciça aparecia de vez em quando com um pacote de arroz, e por meses a fio não se ouvia falar dele. Na época pouco se sabia sobre a história deste moço, por onde andava, o que fazia, pensava na família? Pois bem, em meio a estes eventos, lá ficava o bebê, vez ou outra a mãe aparecia para amamenta-la, com pressa, o serviço urgia, se fez necessário estancar o leite e passar para a mamadeira, não havia tempo, assim o irmão mais velho poderia providenciar o mingau e ela estaria com mais tempo para as lidas do dia. Maria era uma mulher sisuda, de poucas palavras, sorrisos raros, quase inexistentes, e bastante violenta, Ciça saberia disso anos mais tarde.

Ciça cresceu e apesar dos pesares, cresceu saudável, aos cinco anos já tinha consciência do mundo ao seu redor e de seu lugar nele. Era uma garotinha linda; assim como a mãe, era sisuda, de poucas palavras, sem sorrisos, mas por motivos diferentes, achava ela.

Os dias eram sempre molhados, úmidos, assim como sua alma.
Imagem de Elisa Riva por Pixabay

A partir desta idade Ciça atesta se lembrar de cada detalhe de sua angustiante e melancólica vida. Ela já tinha obrigações dentro da minúscula casa, que contava com um cômodo e um puxadinho sem paredes para o fogão feito com seis tijolos, tinha também uma prateleira onde os alumínios brilhavam. Maria já introduziu Ciça no exercício de varrer, arrumar cama (só tinha uma para todos) e aos bofetões lhe ensinava a brilhar panelas, e como dizia ela, ensinava a ser “gente”.

Ciça sofria agressões por fazer e fazer mal feito, por não fazer, por chorar, por não chorar, ela era o pano de fundo das amarguras de Maria. Suas mãozinhas pequeninas não conseguiam segurar direito as coisas, portanto não tinha o domínio que Maria exigia dela, até aprender, seu corpo sofria, sua cabeça não entendia o ódio que aquela mulher nutria por ela. Por fim, foi se naturalizando, vai ver que a vida era aquilo mesmo. Por incrível que pareça Ciça amava aquela mulher, achava-a linda e como ela queria por um minuto sequer que ela a amasse, mas deveria ter algo torto com Ciça, algo com que fizesse que a Maria sentisse aversão por ela. Sim, a culpa era da Ciça. É evidente que era, ninguém morde uma criança até sangrar, sem que a criança seja torta.

Aos cinco anos e meio Ciça pegou um livro de sua irmã folheou e sem a menor dificuldade leu uma página, Maria não acreditou, julgou que a menina estivesse inventando e pegou o livro e leu a página, e não, Ciça não estava mentindo, e pela primeira vez em sua pobre vidinha ela ganhou um abraço da mãe que ficou maravilhada, pois a filha nunca havia ido à escola. Maria não sabia que a irmã mais velha sempre lia para Ciça, à luz de uma lamparina, ou à luz da lua, momentos em que Ciça poderia voar e sonhar. Nestes dias peculiares, sua irmã a introduziu no mundo das letras, era pouco, mas Ciça tinha avidez em aprender. E foi assim que se deu, foi um anjo que compadecido presenteou Ciça com este momento do qual ela se lembra até hoje.

A menina acordou no outro dia disposta, depois daquele abraço ela se encheu de esperança, com planos coloridos para um futuro melhor, embora ela não soubesse o que era futuro, pensou que as coisas seriam diferentes agora. Finalmente sua mãe a amaria, ora, porque não, afinal houve aquele delicioso abraço, não se pode agredir depois de um abraço, não tem como voltar atrás depois de amar. Ela descobriu que o mundo dos adultos, nem sempre tinha regras, continuidade, era como um filme com um roteirista macabro. Maria acordou e com a grosseria costumeira já colocou Ciça para brilhar as panelas e com promessas de muita surra caso não brilhassem. Ciça só a olhou desolada e uma lágrima furtiva rolou por sua face. Foi sua primeira grande decepção, mal ela sabia que viriam muitas outras.

Com o tempo as obrigações de Ciça aumentaram muito, com sete anos já haviam mudado de casa umas 10 vezes, sempre era no fundo de alguma casa, e as habitações eram sempre miseráveis. Nesta última casa em questão, havia um fogão a lenha e a menina foi presenteada com um banquinho, para que subisse e assim poder cozinhar. Sim, o almoço seria agora por sua conta. Maria explicou a Ciça como fazer arroz, foi rápido, e ela fez, da maneira que entendeu. As mãos tremiam, o pavor do insucesso era grande, pois as consequências seriam desastrosas. Pois bem, na medida em que o arroz foi cozinhando ele foi crescendo, crescendo, por fim derramou, era arroz demais para a panela. O desespero se instalou e se justificou, Maria entrou e quando viu aquilo, colocou a mão naquele arroz quente e numa fúria mortal, esfregou no rosto de Ciça, queimando todo seu rosto. Uma semana de babosa no rosto e uma tristeza de morte na alma.

Ciça aprendeu a dor de não ter sapatos.
Imagem de Azmy Talibi por Pixabay.

Ciça nesta época aprendeu a cozinhar, quando tinha algo para cozinhar, ela não sabia se ficava alegre quando não tinha, ou ficava triste por não ter, ela conhecia a fome de perto. Os sentimentos de Ciça eram confusos entre ser triste ou ter um alívio da tristeza, aliás, os únicos sentimentos aos quais ela tinha intimidade eram medo, vergonha, tristeza, angústia e um monte de porquês embolado em sua garganta. Neste período Ciça entra na escola, “Escola Estadual Professor Chaves”, era uma escola chique para a época, lá estudavam tanto ricos como pobres, isso também foi o calvário de Ciça. A menina não tinha calçados, ia com o uniforme limpo que brilhava, porém, descalça. Logo, virou chacota da turma. A segunda decepção, ela não pensava que crianças também poderiam ser cruéis.

Ciça frequentou a escola por um ano, saiu-se mal em todas as matérias, se sentia a pior das criaturas. Seu irmão Valmir que era seu único e melhor amigo, era mais inventivo e ousado, a vida dura o tinha tornado um mini adulto. Ele achou um pé de botinas, e no outro pé ele enfaixava com tiras de pano e mancava, fingindo estar machucado e assim rompeu o pré-primário. Ciça não, passou a se esconder no mato até a aula acabar, mas não era de todo perdido, estudava nos livros, neste ano, apesar dos parcos resultados, aprendeu a ler corretamente, fazia contas mais ou menos, mas adorava, como ela adorava o livro de histórias. Lia avidamente e com isso tomou gosto pela escrita, o que se tornou seu refúgio. Um dia desses de esconderijo, a menina se encontrava debaixo de uma árvore perto de uma cerca de arame, e chovia muito, caiu um raio que arrebentou a cerca, Ciça ficou intacta, se instalou nela uma esperança que ela seria um ser especial, isto passou a movê-la. 

O tempo passou, sua mãe nunca descobriu que ela não terminou os estudos, mesmo porque, não havia tempo para estes pormenores, a escola nunca a procurou, e com isso Ciça fez 10 anos. Tornou-se uma linda garota, de cabelos muito negros e longos, dignos de elogios de quem os visse. Ela não se dava conta disso. Mudou-se com a família para o estado de Goiás, onde a pobreza deu uma arrefecida, mas a fúria de Maria não. Nesta época, Maria teve mais dois filhos, mas Maria tinha que trabalhar, agora ganhando um pouco mais. Os cuidados com os irmãos eram por conta de Ciça, a menina lavava, passava, cozinhava e cuidava dos irmãozinhos, não havia tempo para estudos, a noite quando o pai aparecia, ele lhe dava algumas lições. Quando Maria chegava checava todo o serviço realizado, caso houvesse alguma coisa fora do lugar, ou mal feito ao seu olhar, o lindo cabelo de Ciça era usado como cordas enlaçando a mão de Maria que neste movimento arremessava a cabeça de Ciça nas paredes. Uma nova modalidade de violência se instalou.

A vida seguia, nesta época além de escrever Ciça adora cantar, e o fazia muito bem, cantava o dia todo naquela lida infernal que a deixava exausta. Um dia sua irmã ao chegar do trabalho, deparou-se com Ciça com os cabelos desgrenhados, perguntou o que houve, ele já sabia, mas queria saber dela. Ciça relatou e ela incontinente pegou Ciça pela mão e levou-a em um salão, sua irmã também tinha os cabelos longos e lindos. Sentaram as duas e ela disse: corte nossos cabelos curtinhos, e assim foi feito. Foi a maior prova de amor que alguém já havia dado a ela. Nunca mais a menina esqueceu, como também, nunca mais ela deixou o cabelo crescer, nunca mais conseguiu, foi como se quisesse cristalizar aquele momento de entrega genuína da irmã, bem como preservar dentro de si aquele sentimento de que alguém de verdade a amava.

Em tempos difíceis, ter com quem contar é um tesouro.
Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay

Ciça sempre pôde contar com sua irmã doravante, isso a fazia mais feliz, lhe dava um mínimo de segurança. A menina voltou a estudar, mas sempre fazia supletivos, cursos rápidos e sem embasamentos, mas aprendi muito, era uma devoradora de livros, ganhou prêmios de melhor redação, foi pro jornal e tudo; sempre passava nos testes de emprego, era dedicada em tudo que fazia, tornou-se uma adolescente sem problemas, educada e obediente. Porém com ela se arrastou pelo resto da vida, um sentimento enorme de baixa autoestima. Começou a trabalhar fora aos 12 anos de idade, todos em casa tinham que trabalhar, a vida já não era tão difícil, tinha comida na mesa. Maria era fria, porém, suas agressões haviam diminuído bastante, era quase uma mãe nesta época. Ciça se tornou especial? Não, não se tornou, o raio não fez efeito, mas se tornou um ser humano que não replicou a violência e está quase se formando aos 66 anos, acho que isso a torna quase normal, o que já é lucro para ela.

Referência

LONGO, S. Cristiano. (2005). ÉTICA DISCIPLINAR E PUNIÇÕES CORPORAIS NA INFÂNCIA. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/QxyYj3c7DdyV7WxxZMdsfYN/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 20/02/2023