A Criança diante da morte

Muitas coisas nos cortam o coração. Uma mãe chorando nos corta o coração, pais separados, amores frustrados, saudades dos avós, violência contra idosos; crianças; mulheres. Despedidas nos cortam o coração, aquele projeto que não se desenvolveu, aquele filho que não nasceu, aquele emprego que não saiu. Maus-tratos contra animais nos cortam o coração, e tantas outras coisas que não cabem no papel. Mas, a tristeza de uma criança é, de longe, a dor mais profunda que nosso coração pode carregar. Isso porque o que a maioria de nós, adultos, esperamos é que uma criança seja plenamente feliz e que não sofra ainda, espera mais um pouco, deixa o que o tempo dela seja só de brincadeiras, sorvetes e televisão. No entanto, infelizmente, também sabemos que para aprender algo todos nós devemos passar por frustrações, decepções e tristezas.

Estagiei durante um ano na Policlínica do Aureny I, onde obtive as melhores experiências de um profissional em formação. Dentre essas experiências atendi uma menina de pouco mais de 9 anos, cuja queixa principal era uma tristeza sem fim e que a mãe não sabia explicar ao certo, ou preferiu não explicar.

Carolina1 não deu “bom dia”, mas despejou sem pausar toda sua tristeza: “meu pai morreu”.  Assim, de repente, sem ser questionada, sentiu-se a vontade para dizer o que carregava com ela e que ninguém compreendia. Não tinha a voz embargada, não travava contando o que acontecera, nem mesmo respirava ofegante ou soltava suspiros, mas as lágrimas estavam lá, escorrendo sem parar, como se estivesse lavando a dor que Carolina falava.

Pensei, primeiramente, em não dizer nada, deixar só ela falando, mas ela queria que eu falasse, pediu para que eu perguntasse o que aconteceu e como foi as férias dela. Então perguntei, as lágrimas pararam e Carolina falou tranquilamente sobre como foi rever seu pai depois de 8 anos, como não gostava da madrasta, adorava Crepúsculo, iria ser advogada, modelo e médica. O discurso da menina não tinha pausa, uma história se unia a outra e parecia não ter fim. Sobre o sentimento de luto ela apenas dizia: “no começo doeu muito, eu chorava toda noite, daí eu comecei a pensar que ele não gostaria de me ver chorando, e que eu só tenho que estudar e brincar”.

Falar sobre “morte” não é uma tarefa fácil, nem tão pouco agradável. A conversa se torna mais complicada quando envolve crianças, porque é difícil aceitar que uma criança tenha que passar por isso, por esse vazio que de repente surgiu com a partida de alguém próximo. Porém, apesar dessa dificuldade, essa conversa é fundamental para a vida das crianças e cabe a nós, adultos, encontrar a melhor maneira de falar sobre esse assunto com elas.

Deve-se levar em conta que toda criança, ao longo do seu desenvolvimento, vivencia diversas situações de perda, podendo envolver entes queridos, animais de estimação, quando muda de escola, de casa, ou com a chegada de um novo irmão (para a criança é um tipo de perda de espaço).

Esses momentos representam vivências difíceis, envoltas por sensações de insegurança, abandono, medo, raiva ou culpa, mas podem também ajudar os pequenos a crescer, caso consigam expressar seus sentimentos, em conversas e brincadeiras, ou por meio de histórias ficcionais (COMPANHIA DAS LETRAS, 2011)

Há uma dificuldade maior ao que se refere a questão da compreensão da criança diante da morte, motivo este que leva alguns pais a inventar histórias para explicar o que aconteceu, acreditando ser a melhor maneira de falar com a criança. No entanto, isso pode levantar mais dúvidas nos pequenos e despertar o sentimento de abandono, devido ao fato de que alguns adultos usam frases como: “o papai foi viajar” “o vovô foi morar lá em cima” e a interpretação da criança é completamente oposta ao que o adulto esperava, pois se o “papai foi viajar”, logo ele retorna, e se ele está demorando retornar pode ser porque ela fez algo de errado. Portanto, não se deve privar as crianças da verdade, visto que elas são capazes de compreender o que está se passando. No que se refere à questão da morte, a criança atribui certa concepção e capacidade de levantar questionamentos sobre a causa.

Segundo Torres (1999) para a criança a morte não é somente um desafio para seu desenvolvimento cognitivo e formação de pensamentos, mas também um desafio afetivo. E diante disto, surge a importância de analisar reações emocionais da criança perante a morte. As crianças não diferem dos adultos ao vivenciarem uma perda, já que sentem a morte como um fenômeno mais forte que os demais. Esse processo de perda, porém, estimula certos padrões de comportamentos bem como a progressão de etapas e sentimentos na criança.

Klüber-Ross (2010) também defende a ideia de que a criança deve ser incluída em todos os assuntos que se referem ao que aconteceu e que, ao permitir que a criança presencie todo o acontecimento, permanecendo no mesmo local, participando das conversas, discussões e temores, há um tipo de preparação gradual, pois não está passando por esta situação sozinha, isso ajudaria na compreensão e incentivo para que ela encare a morte como algo natural da vida. Para Quinteiro (2010) “o ideal é preparar a criança para a perda, visto que isto atinge invariavelmente a todos” (p. 322).

Existem diversas formas que facilitam esse diálogo, brincadeiras, livros, filmes, ajudando a criança na compreensão de como expressar seus sentimentos. É comum que algumas crianças sintam dificuldades de se expressarem quando estão enlutadas ou quando já passaram por experiências de perda. Nesses casos, o terapeuta, utilizando recursos lúdicos, pode iniciar uma modelação do comportamento dentro do contexto terapêutico e compreender os medos pelos quais a criança está passando, pois “o autoconhecimento é fundamental na terapia infantil” (QUINTEIRO, 2010, p.325).

O mais importante é que a criança não se sinta sozinha e que tenha a oportunidade de falar sobre o que está sentindo, e que os adultos deem todo o apoio que ela precisa.

Carolina expressou seus sentimentos sem medo e não trazia dúvidas a respeito de tudo o que aconteceu, isso devido ao diálogo que teve com sua mãe assim que soube da notícia, e mostrou que a cada dia que passava a dor no “coraçãozinho” dela não era nem de revolta nem de sentimento de abandono, mas de saudades. Saudades de um pai que conviveu menos de dois anos com ela, mas que preencheu toda a falta que fez no começo. A preocupação da mãe sobre a tristeza de Carolina estava relacionada ao tempo de duração da melancolia da criança, e por quanto tempo ela ainda sentiria a falta dele. Essa questão eu não soube responder, até porque não acredito que tenha uma resposta concreta, vai durar o tempo que tem que durar, e sobre ela deixar de sentir a falta, é quase que impossível.

Como diz Mário Quintana “A morte deveria ser assim, um céu: que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim”. Uma pena que não é, e a gente tem que aprender com as surpresas da vida.

 

Nota:

1nome fictício.

Referências:

COMPANHIA DAS LETRAS. Sala do Professor. [s.d]. Disponível em: <http://www.companhiadasletras.com.br/sala_professor/guia_professor_meu_filho_pato.php>. Aceso em 21 de set. de 2012.

KLÜBER-ROSS, E. Sobre a Morte e o Morrer. 8a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998/2010.

QUINTEIRO, R.S in Farias, A. K. C. R. Análise Comportamental Clínica: Aspectos teóricos e estudos de caso. Porto Alegre: Artmed, 2010.

TORRES, A. N. A Criança Diante da Morte: Desafios. São Paulo. Casa do Psicólogo, 1999.