O Príncipe das Marés: um enfoque psicanalítico às relações familiares

O Príncipe das Marés (1991) é um drama americano, inspirado no romance The Prince of Tides de Pat Coroy, dirigido por Barbra Streisand. O longa-metragem conta a história da família Wingo que enfrenta sérios problemas com as recorrentes tentativas de suicídio de Savannah Wingo. Na última tentativa, sua psiquiatra Susan Lowenstein (interpretada por Barbra Streisand) solicita a presença de um dos membros da família para auxiliá-la no tratamento.

A pessoa escolhida é Tom (Nick Nolte), irmão gêmeo de Savannah que tem enfrentado problemas no seu casamento. Mesmo relutante Tom viaja para New York com o propósito de ajudar sua irmã. O filme é atravessado por flashbacks que contam a história da família e nos ajudam a entender o motivo de ela hoje estar tão fragmentada.

O encontro de Tom com Susan é, no início, conflitante. Ele tem uma personalidade sarcástica, com o hábito de ironizar todos os problemas. No passado a família era formada por cinco membros: Henry (pai), Lila (mãe), Luke (o filho mais velho), Tom e Savannah (gêmeos). Atualmente os pais estão divorciados e Lila vive com outro homem. Tom têm sérios problemas com a mãe, o que é confuso, já que na infância ele demonstrava ser o mais apegado a ela.

A psiquiatra de Savannah pede a Tom que se encontre com ela regularmente para contar-lhe detalhes da infância de ambos. Susan parte do viés psicanalítico, o determinismo psíquico, onde se acredita que a análise de eventos ocorridos na infância (passado) tem relevância no modo como o sujeito atua no presente (FREUD, 1910. p. 19).

No inicio Tom resiste a essa ideia e se nega a participar dessas sessões, mas logo entende a importância de falar abertamente do seu passado no tratamento de sua irmã e, por amor à família, ele consente em cooperar com Susan, acontece nessa fase a aliança terapêutica. A aliança terapêutica pode ser definida como “o relacionamento não neurótico, racional, sensato que o paciente tem com o seu analista e que lhe possibilita trabalhar com afinco na situação analítica” (SANDLER, 1986 p. 24 apud GREENSON E WEXLER, 1969).

As sessões são conflitantes e a psiquiatra logo percebe que a família esconde muitos segredos em seu passado. As brigas constantes do casal, a violência doméstica e o alcoolismo de Henry parecem ter marcado profundamente as crianças durante sua infância, que procuravam, uns nos outros, apoio para lidar com esse sofrimento. Eles tinham um ritual de correr para o mais longe possível da casa dos pais sempre que estes estavam brigando. As crianças mergulhavam no rio, e permaneciam lá até não poderem mais escutar os gritos. Um fato marcante é que, depois de crescidos, com a morte trágica de Luke (irmão mais velho), Savannah e Tom saíram de casa e foram morar bem longe da ilha onde haviam crescido, era uma tentativa inconsciente de abandonar aquele lugar que trazia consigo tantas lembranças ruins.

Tom até hoje não aceita esses eventos de sua infância, estando em constante negação da gravidade dessa violência doméstica e de como isso marca sua vida até hoje. A negação é descrita por Fadiman & Frager (1986, p. 20) como um mecanismo que aparece pelo fato de o ego não aceitar na realidade um fato que o perturba. Ele demonstra ter um sentimento ambivalente e inconsciente de lealdade com sua mãe, ao mesmo passo que parece não suportar mais essa hipocrisia dos segredos familiares.

Savannah tornou-se escritora infantil, sobre o pseudônimo Renata Halpern, ela havia escrito fatos de sua infância. Eram histórias felizes sobre crianças que viviam muito felizes em uma ilha no Sul da Califórnia. Um meio de sublimação dos eventos traumáticos da sua infância. A sublimação é definida como a “defesa bem sucedida” (FADIMAN & FRAGER, 1986, p. 20 apud FENICHEL, 1945). Para esses autores, na sublimação a libido dirigida a propósitos sexuais é catexizada para novas finalidades, em geral, atividades artísticas intelectuais e/ou culturais.

Contudo, Tom ficou furioso ao descobrir que a irmã, incentivada por sua psiquiatra Susan, havia revelado fatos que pactualmente todos haviam concordado em manter segredo. Os membros da família carregavam consigo marcas desse passado que estava gravado no pré-consciente de cada um, tentando emergir a consciência a todo o momento. Sandler (1986, p.14) fala do Pré-consciente como um tipo de inconsciente que “encerra em si os conhecimentos e as ideias que se encontravam fora da consciência”, porém esse conteúdo, não está reprimido no inconsciente, tornando-se uma memória acessível, ou não.

Nas sessões com Tom, o setting terapêutico é tenso, ele não aceita as investidas da psiquiatra que insiste para que ele fale abertamente sobre a família. Tom em vários momentos transfere para a terapeuta a raiva que sente de sua mãe e seu sofrimento inconsciente por não ser o preferido dela. Lila, em sua infância, havia chamado Tom em particular e dito que ele era seu preferido, anos depois ele descobriu que ela havia feito isso com todos, e não conseguiu perdoá-la por mentir para ele.

A transferência é um fenômeno clínico no qual o terapeuta se torna, para o cliente, um recipiente para as investidas, impressões ou reedições de modelos de comportamento inspirados em experiências anteriores (Sandler, 1986, p. 34).Em contratransferência, Susan é impactada pelos relatos de Tom, mas não se diminui diante da raiva dele, a psiquiatra continua investindo contra a resistência de Tom em se abrir. O termo contratransferência é geralmente utilizado para “caracterizar a totalidade de sentimentos e de atitudes do terapeuta para com seu paciente e mesmo para descrever aspectos de relacionamento comuns não-terapêuticos” (Sandler, 1986,  p. 56,  apud KEMPER, 1966).

O tratamento é gradual. Em cada sessão são trabalhadas as situações traumáticas, do mais leve até chegar à fonte principal do problema. Nesse ponto da trama, o casamento de Tom já estava falido, e mesmo assim ele não conseguia com a carga afetiva dessa separação.

Umas das principais queixas da esposa era o jeito de Tom de negar-se em conversar abertamente sobre a relação, sempre fazendo piadas e ironizando tudo. Tom transfere para sua esposa, assim como para Susan nas sessões de terapia, toda a frustração e descontentamento por ter sido enganado por sua mãe.

Com o passar do tempo Susan consegue chegar ao trauma principal que havia marcado a vida da família para sempre: Em uma noite de chuva, enquanto Henri estava pescando, a casa foi invadida por três fugitivos de um presídio de segurança máxima das redondezas. Eles estupraram Lila, Savannah e Tom, que foram salvos pelo irmão mais velho. Luke apareceu com a espingarda do pai e atirou, matando os fugitivos. Com vergonha do que a sociedade poderia pensar do ocorrido, a mãe dos meninos fez com que todos enterrassem os corpos, limpassem a casa e concordassem em nunca mais falar sobre o ocorrido, nem para seu pai.

A forte resistência de Tom em falar abertamente sobre esse assunto e, principalmente, em não conseguir assumir que também havia sido estuprado demonstram ser esse o trauma original que deu origem as conflitivas da família. O próprio Tom assume para Susan que nunca poder falar sobre o ocorrido era pior que o estupro em si. O seu principal dilema era que ele tinha em Luke uma identificação paternal. Por ser o irmão mais velho, e o mais próximo, inconscientemente Luke era uma figura paterna para Tom. Ser estuprado na presença do irmão foi uma situação traumática, como se ele tivesse perdido sua masculinidade e o respeito do irmão mais velho.

Por não poder lidar com a dor do estupro, o ego de Tom dissociou a carga afetiva (dor) do trauma da realidade, para que ele pudesse continuar a viver. Desse modo, ele fixou algumas características da idade de 13 anos, que se repetiram ao longo da sua vida adulta, em especial, o humor ácido (sarcasmo) como mecanismo para não lidar diretamente com situações de estresse ou desgaste afetivo. É importante frisar que essa regressão de Tom se dava exclusivamente na relação com a figura feminina, na qual havia uma identificação e transferência da imagem materna (Esposa e Psiquiatra). No trabalho, por exemplo, ao treinar o filho de Susan, Tom não demostra características dessa regressão.

A memória do episódio do estupro, por sua vez, não foi suprimida pelo ego de Tom, pelo contrário, ela continua no subconsciente atormentando todos os membros da família, que se sentiam culpados pela necessidade mútua de guardar tal segredo. Com as sessões de análise Tom demonstra uma atuação positiva para dentro, trazendo à consciência fatos traumáticos de sua infância a cada sessão.

No caso de Savannah, a necessidade constante de negação do ocorrido foi mais do que seu ego podia aguentar, por não conseguir lidar com aquela realidade, ela tentou fugir, indo morar em outro estado. Mas isso não era o suficiente. Ela então buscou no suicídio o fim para todo aquele sofrimento. Desse modo, Savannah criou um perfil neurótico compulsivo suicida. Com o passar do tempo, no decorrer de sua análise, ela entende que esse perfil se dava pelo modo como o estupro marcou sua vida. Após a elaboração, ela integra as análises da psiquiatra com sua própria história, partindo para a cura e superação do trauma.

Lila (a mãe) parece ser a menos afetada pelo episódio. Por ser uma adulta, e ter um aparelho psíquico melhor preparado para lidar com situações conflitivas, seu ego utilizou-se do mecanismo de negação para suprimir o trauma no subconsciente, sem maior sofrimento. Contudo, ao contrário de Tom, ela nunca aceitou falar abertamente sobre o assunto, era uma estratégia pessoal para evitar que a carga afetiva retornasse a consciência.

Susan ajudou Tom a finalmente entrar em contato com essa dor e, gradativamente, ele começa assumir a responsabilidade pela direção de sua vida. Ao verbalizar para um completo desconhecido o “grande segredo” ele torna consciente o problema. Entrando em contato com a dor, ele obriga seu ego a aceitar essa realidade.

A partir da aceitação, Tom começa a trabalhar na reconstrução da sua vida e família. Ele assume a responsabilidade pelo seu casamento e se implica na função de resgatá-lo. Ao resolver seu medo de confiar intimamente em outras pessoas, Tom deixou vir à tona seu verdadeiro ego e se empenhou em resolver os problemas do seu passado reprimido. Ele deixa de transferir toda a insegurança que sentia com sua mãe para as outras pessoas, e se torna capaz de perdoá-la. Mas, principalmente, por meio da análise, ele entra em contato com a intensidade afetiva produzida do estupro e se torna capaz de perdoar a si mesmo, integrando que não havia nada que ele pudesse fazer naquela situação, que ele não era o responsável pelo mal que aconteceu naquela noite com sua família.

Referências:

FADIMAN & FRAGER. Sigmund Freud e a psicanálise. In: Teorias de Personalidade. São Paulo – SP: Harbra LTDA. p.03-40. Ed. Brasileira. 1986.

FREUD, 1910. Cinco lições de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.11).

PRINCIPE das Marés.The Prince of Tides.Direção: Barba Streisand. Columbia Pictures Corporation. EUA: 1991. 2h12min. Inglês, Color, Formato: 35 mm.

SANDLER, Joseph. O paciente e o analista: fundamentos do processo analítico. Rio de Janeiro – RJ: Imago Editora LTDA. 2 ed. 1986.


FICHA TÉCNICA DO FILME

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991