Vamos falar da maldade?

Dante e Virgílio no inferno, óleo de Delacroix

 

Com a vinda do papa Francisco ao Brasil, durante a Jornada Mundial da Juventude, uma avalanche de “sentimentos nobres” tomou conta de boa parte da população brasileira. O evento, nutrido pela fé católica no poder e na santidade do padre, exorta a perceber um típico exemplo de “contágio positivo”1, em que as expectativas e representações individuais se diluem diante de uma perspectiva comum mais abrangente e menos egoísta.

No entanto, esse “momento mágico” de “devoção”, afeto e entrega parece não ser a tônica dominante na maior parte da existência humana, particularmente na história do povo brasileiro, que apesar de ser retratado como calmo e ordeiro, notadamente vem escrevendo uma história marcada por conflitos (“Revolução” de Pernambuco, Conjuração Baiana e “Revolução” de 30, por exemplo), desunião (Guerra dos Farrapos e Guerra do Contestado, no Sul, e o recente Movimento São Paulo Independente) e maldades (quase 3 séculos de escravidão), como defende alguns dos grandes pensadores nacionais, a exemplo do historiador gaúcho Leandro Karnal (professor da Unicamp).

Afinal de contas, o ser humano em geral e o brasileiro em particular é essencialmente bom, faltando-lhes apenas reconhecer sua verdadeira natureza “iluminada”, ou ele é basicamente mal, tendo que ser constantemente “podado” pelas convenções sociais e pelas autoridades constituídas, para que seu lado grotesco não se aflore? Esse é um embate que há séculos divide as opiniões dos mais célebres filósofos. E além destes dois pontos de vista, há ainda o de que o homem é uma “folha em branco”, uma “tabula rasa”, sendo, portanto, fruto de suas experiências (ambientais, inclusive). Aristóteles (e mais tarde os empiristas) foi um dos maiores defensores desta tese.

No livro Leviatã, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), descreveu o homem como alguém completamente inclinado para o mau. Sendo assim, o desenvolvimento de ódio geraria mais prazer que desenvolver virtudes. Afinal, “os homens apressam-se mais em retribuir um dano que um benefício, porque a gratidão é um peso e a vingança um prazer”, como bem falou Tácito, na Roma Clássica, ao se referir à gratidão como o mecanismo que revela uma natureza frágil do homem. Se há gratidão por alguém, é porque este alguém fez um favor para “outro” em situação desfavorável. Na mesma linha, Leandro Karnal, ao comentar sobre o Leviatã, também discorre que “não optamos por um time por amar ele, mas por odiar outro [time]”.

Ou seja, em linhas gerais, o que esses pensadores falam é que o homem não se regozija com as práticas virtuosas mas, antes, deleitam-se com a derrota dos outros. Este ponto de vista não é compactuado pelos renascentistas, como Rousseau (1712-1778) que percebem o homem como um ser natural, cuja convivência deve ser balizada pela razão. E o homem natural de Rousseau não é um “lobo” para seus companheiros, ao contrário da concepção hobbesiana.

Diante destes pontos de vista antagônicos, e sem levar em conta a posição dos empiristas, é interessante ver o assunto “maldade” do ser humano sob o prisma da história. Com uma abordagem alinhada aos conceitos de Hobbes, Karnal diz que “se tivéssemos com nós o mesmo rigor que queremos do outro, o mundo seria outro”. Esta é uma crítica a um caráter supostamente autocentrado do homem, o que na visão do historiador, é um dos componentes que desencadeiam o ódio e a indiferença nas relações corriqueiras. “De forma geral, eu não sou um racista odioso, mas também não me oponho a uma piada contra nordestinos, gays e negros. Esse silêncio é pior que se posicionar”, denuncia Karnal.

O historiador fala que há uma espécie de pavor dos brasileiros em reconhecer a maldade e a inveja, e não encarar esses sentimentos de desprezo e ódio só faz com que velemos uma circunstância que acaba por “explodir” sob diversas facetas de violência, como as atuais e epidêmicas mortes no trânsito, só para dar um exemplo. “O trânsito no Brasil mata o equivalente a uma Guerra do Vietnã por ano”, alerta Karnal, para em seguida dizer que dificilmente alguém reconhece que é impaciente e violento no trânsito. “Afinal, tratamos a violência como um problema do outro, do desconhecido”, denuncia o historiador, que vê nesta espécie de “hipocrisia” o combustível para a cada vez mais crescente onda de brutalidade no país.

Essa “maldade” humana, para Karnal, está intimamente relacionada a um estilo de sociedade que ele denomina de “falocêntrica”. Ou seja, o povo brasileiro (e aí se inclui não apenas os homens e mulheres heterossexuais, mas também homossexuais, transexuais e transgêneros) cultuam (provavelmente de forma inconsciente) os aspectos do gênero masculino (força, brutalidade, movimento) em detrimento dos aspectos femininos (receptividade, complacência, perdão). Uma pessoa para ser considerada vitoriosa, no imaginário dominante, tem que “brigar”, “tomar à frente (satisfação)” e “fazer acontecer”. “O diálogo e a negociação são totalmente desencorajados”, diz Karnal, ao complementar que é a “força e o dinamismo” que seduzem a todos, em detrimento da “mansidão” e da “observação”.

No entanto, apesar de a maioria agir sob a égide citada acima, poucos são os que realmente se veem desta forma. O ódio, a inveja e a agressão são assuntos que não se discutem nos círculos de conversas, porque causam mal-estar. Karnal diz que isso vem das raízes cristãs do brasileiro, afinal “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!” (Sermão da Montanha). Também vale lembrar que a Ira é um dos sete pecados capitais.

Por tudo, a melhor alternativa para quem não quer se dar ao trabalho de se autoavaliar é jogar a culpa sempre no outro, ou em fenômenos externos. É criar mentalmente os “bodes expiatórios”. Assim, o mal e o inferno existem apenas “fora de mim”. Agir desta forma mantém as pessoas numa zona de conforto, impelindo-as de amadurecerem psicologicamente. O resultado disso é viver “eternamente” à procura de algo ou alguém a quem lançar o furor pelos sonhos não conquistados e pelas mais diversas frustrações da vida. E como bem pontuou Leandro Karnal, “acabamos por praticar tipos de violência que, nas relações cotidianas, passam despercebidas”. O desafio: olhar o/a outro/a apenas como diferente, nem como melhor, nem como pior.

Assim, a paciência e a gratidão, elementos que são amplamente exortados em momentos peculiares, como a vinda do papa Francisco ao Brasil (tirando os arroubos de emoção, que podem denotar mais histeria do que devoção), devem voltar a obter um lugar de destaque no “panteão” simbólico do imaginário coletivo. Um árduo objetivo, mas que se alcançado pode mudar completamente a vida das pessoas de corações “disfarçadamente” (e não reconhecidamente) amargurados – e violentos.

Nota
1 – A Felicidade é contagiosa – Revista Saúde é Vital – Editora Abril, disponível em http://saude.abril.com.br/edicoes/0311/bem_estar/conteudo_472117.shtml
Acesso em 17/07/2013

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

SEVERINO, Roque Enrique. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube do Livro, 2010.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Claret, 2008.

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2012.

KARNAL, Leando. O ódio no Brasil – palestra veiculada no programa Café Filosófico (TV Cultura) http://www.cpflcultura.com.br/2011/09/24/o-odio-no-brasil-leandro-karnal-2/ – Acesso em 16/07/2013

Jean Jacques Rousseau – Wikipédia –  https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Jacques_Rousseau Acesso em 18/08/2013

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.