Trabalho ou autonomia: Desemprego e degradação social

Na obra “Trabalho ou autonomia” de Cattani, edição de 2000, a discussão versa sobre o trabalho como ato concreto, sendo individual ou coletivo, e é, por definição, uma experiência social. Para o autor, o conceito de trabalho genérico compreende uma atividade de produção de bens e serviços e conjunto das condições de exercício dessa atividade. As transformações econômicas e sociais resultaram na incorporação de um número proporcionalmente crescente de indivíduos na esfera produtiva. De modo que o trabalho se transformou numa espécie de cimento social no fator básico de socialização. Devido a isso, afirma-se que o não-trabalho assume, igualmente, um papel fundamental.

Pelas referências do autor, fica claro que o desemprego não deve ser entendido apenas como ausência de atividade e de relações assalariadas, mas como uma situação de status social, de modo que se transformou num indispensável elemento explicativo dos problemas e das tendências da transformação econômica e social no final do século XX.  Para o autor, o desemprego seria um problema externo, cuja solução dependeria do crescimento econômico. Nas formulações neoliberais, o desemprego deve-se à “falta de capitalismo”. Mesmo a teoria marxista e o pensamento católico e humanista centraram suas críticas no fato de o capitalismo explorar, alienar e desumanizar o trabalhador. Pelo fato de o desemprego permanecer irredutível, num período de estabilidade política e de crescimento econômico, demonstra que o sistema cria e recria constantemente formas variadas de desigualdade e que não consegue proporcionar trabalho para todos. Assim, se o trabalho continua a ser a “experiência social central”, o que acontece com aqueles que são privados dessa experiência?

Cattani (2000) bem coloca que a busca de respostas para as questões supracitadas é dominada pela análise econômica, mas não é suficiente. Para ele, a exclusão provocada pelo desemprego não é um fenômeno passageiro e sim o resultado de um processo permanente. Para se ter ideia, uma em cada três pessoas ativas não dispõe de recursos para assegurar a sua própria sobrevivência. É certo que essa realidade é diferenciada conforme o desenvolvimento socioeconômico de cada país. O trabalho instável, o subemprego, a subcontratação e outras formas de precarização também alteram as características sobre a relação padrão da economia capitalista. Para o autor, o direito do trabalho e as garantias conquistadas ao longo do século definiam condições rígidas de emprego: contrato, representação sindical, em alguns casos estabilidade, limites mínimos e máximos do tempo de trabalho etc. Assim, a diferença entre emprego e desemprego era absolutamente clara, situação essa, que mudou radicalmente em menos de dez anos. O autor acrescenta ainda que as formas precárias dissimulam o desemprego.

Em termos de representatividade, o que tem significado não só econômico, mas sobretudo sociológico, é que de 10 a 15% da população ativa está envolvida em situações de precariedade e de vulnerabilidade. Inclusive o autor coloca que, quando o volume de desempregados começou a crescer, inúmeras políticas foram adotadas: o alongamento da escolaridade, a redução do tempo de trabalho, o repatriamento dos imigrantes, etc. Nada surtiu efeito. Fica claro que aumentada a produtividade do trabalho para um mesmo nível de produção, o número de trabalhadores é cada vez menor. O autor nos apresenta formas de melhor compreender a temática do desemprego. Para tanto, ao abordar o desemprego de longa duração, fica certo que o desemprego repercute também, de maneira diferenciada, sobre grupos mais vulneráveis. Dentre os problemas mais sérios, destaca-se o desemprego de jovens e o desemprego de longa duração. E, dependendo da categoria profissional, o autor afirma que o nível de qualificação influi decisivamente na duração do desemprego.

No que diz respeito ao desemprego de jovens. O autor entende que a situação ocorre na maioria das vezes com a idade menos de 25 anos e com aqueles que possuem escolarização secundária completa, frequentemente complementada por cursos profissionalizantes. Identifica o autor que quanto mais titulado, mais depreciado fica o jovem no mercado de trabalho, pelo fato de demorar pra conseguir em emprego. Frente a essa realidade, a tendência é de agravamento das situações. Quando o autor promove a discussão sobre a precariedade e exclusão, ele nos apresenta que nos Estados Unidos a duração do desemprego é relativamente curta. O fluxo de entradas e saídas é mais rápido. Essa mobilidade representa uma instabilidade crescente e uma deterioração dos status profissionais e sociais. O trabalhador recém-contratado pode ser remunerado pela metade do que recebe o colega fazendo o mesmo serviço. Segundo o autor, nos anos 60, desenvolveram-se a tese de segmentação ou dualismo do mercado de trabalho. Nos Estados Unidos um mercado primário que ofereceria empregos estáveis, bem pagos, com planos de carreira, etc. De outro lado, um mercado secundário, caracterizado por empregos precários, baixos salários e por más condições de trabalho.  O novo paradigma reforça o principio da seletividade e, desta forma, as desigualdades.

Um assalariado norte-americano tem dez vezes mais probabilidades de ficar desempregado do que um trabalhador europeu, sobretudo alemão e francês. Mas um desempregado norte-americano tem, também, dez vezes mais chances de reencontrar trabalho do que seus colegas europeus. As alternativas de sobrevivência dos desempregados na Europa são diferentes daqueles dos norte-americanos. Na Europa, o subemprego, o setor informal e os “bicos” legais ou ilegais são extremamente desprestigiados. Os desempregados transformam-se na categoria dos “assistidos” e podem sobreviver durante vários anos graças a complexos sistemas de indenizações, subsídios e ajudas diretas ou indiretas. O emprego ordena as principais clivagens e dinâmicas sociais e modula os status e as capacidades de ações individuais e coletivas. A economia de mercado não promove a homogeneidade. Pelo contrario, as desigualdades são necessárias, tanto quanto a concorrência que facilita a exclusão dos “inadequados”.

Seguindo as idéias do autor, sobre a desagregação social ou degradação humana, o desemprego e a precarização do trabalho não são problemas remanescentes de alguma fase anterior ou ocasionados por problemas externos, facilmente resolvidos pela retomada do crescimento econômico. Também não são problemas secundários que pouco afetam a sociedade. O desemprego e a precarização são abordados, pelo ângulo dos mecanismos econômicos, o que resulta numa árida e interminável discussão sobre as causas do problema: impactos de globalização e da automação, influências da adoção do pós-fordismo, do modelo japonês etc.

O desafio é compreender a lógica de seletividade e de exclusão do mercado de trabalho e o processo de construção social de identidades no contexto da precarização e da exclusão. Com o fim do mito da improdução total da população ativa à esfera produtiva, muitas perspectivas analíticas foram alteradas. Seria ingênuo pensar no desemprego como uma situação provisória ou como uma inadequação pessoal aos postos oferecidos pelas empresas. O trabalho desestabilizado e o desemprego são referências que se constituem socialmente, e que definem novas hierarquias e dinâmicas da população ativa. O autor, frente a tais questões, propõe algumas posições sobre a precarização e o desemprego. Para ele, o trabalho é considerado um serviço que se troca no mercado, regulado por mecanismos absolutamente racionais, eficientes e livres. As empresas “demandam trabalho” e os indivíduos “oferecem trabalho”. As empresas empregam enquanto o trabalho não custar mais do que aquilo que ele contribui para a realização do lucro. Avaliações diferentes entre empresas e trabalhadores encontram sempre um ponto de equilíbrio, cujo saldo pode ocasionar o “desemprego involuntário”. O volume e a extensão do desemprego involuntário não são suficientes para abalar as convicções na eficiência do sistema.  Esse encadeamento traduz práticas empresariais e políticas de Estado e é respaldado nas principais instituições de coordenação do capitalismo internacional.

No pensamento social-democrata, nas suas várias versões, políticas e econômicas, o desemprego é uma das questões mais espinhosas. Apesar de crueza, próximas ao darwinismo social, os neoliberais preocupam-se, com a legitimidade de suas proposições. Busca fundamentação no agenciamento mais eficiente da economia e na melhor integração dos indivíduos à vida social. Na França, para referir-se aos problemas relacionados ao desemprego, cientistas sociais e políticos utilizam a expressão “rompimento do tecido social”. O desemprego estaria, aos poucos, debilitando a coesão anteriormente obtida pelo trabalho. Os valores, as normas e a solidariedade estariam perdendo sua força integradora, e a sociedade entraria, aos poucos, em processo de anomia generalizada. Já nos Estado Unidos o trabalho não seria mãos suficiente para agregar a população, nem para gerar valores que impeçam a degenerescência da cultura e a “decadência do império americano”.

A metamorfose do trabalho está redefinindo profundamente as antigas bases de socialização, mas não a ponto de desestabilizar a sociedade capitalista. As formulações, em termos de “desagregação social”, parecem-nos equivocadas e exageradas. Cattani (2000), no que se refere a processos e situações, busca a clarificação dos conceitos principais e entende que o conceito de desagregação é inadequada. Porque pressupõe a prova da existência de uma agregação previa, isto é, de uma coesão social completa. Não existe comprovação de que o desemprego e a precarização estejam afetando a sociedade como um todo. A “nova pobreza” é um fenômeno parcial, com repercussões que afetam, de maneira grave, os atingidos e, de maneira derivada, o resto da sociedade. Degradação transmite, de forma mais contundente, a ideia de enfraquecimento gradual e contínuo, de passagem progressiva de um nível superior para um inferior.

A nova pobreza caracteriza-se pelo caráter aleatório da participação na vida econômica e social, pela irregularidade, precariedade e incerteza na obtenção de recursos para a sobrevivência, pela insegurança quanto ao futuro imediato. Os indivíduos afetados recentemente pelo desemprego e pela precarização não estão submetidos às mesmas condições econômicas objetivas, não possuem a mesma identidade social e não têm práticas simbólicas e políticas homogêneas. É possível reservar o uso do termo “nova pobreza” para designar aqueles indivíduos que não dispõem de recursos para assegurar a sua própria sobrevivência, e cuja situação de precariedade e fragilidade penaliza, cada vez mais, suas chances de reinserção. Sinteticamente, aqueles que estão “à deriva” (econômica, social e moral). O termo “à deriva”, integrados à corrente que os impulsiona com violência, não têm direção nem controle sobre as próprias ações, e nem estão ancorados num ponto estável. No que concerne à “nova pobreza”, mais importante do que a “construção identitária e social” estabilizada, é a dinâmica de situações e posições.

 Se faz necessário, nesse momento, apontar algumas ideias da obra que discorre sobre a sociedade sem trabalho. Para ele, esse é um dos pesadelos na atualidade. Certo de que o trabalho foi, durante muito tempo, o fator de integração, de produção de identidades coletivas estáveis e modelo de referência suscetível de estruturar o campo social. Entende pois, o desemprego, como fenômeno permanente, é apenas mais claramente vislumbrado nas circunstâncias atuais, caracterizado pela estabilidade política, pela redução das “interferências” estatais e sindicais, enfim, pelo domínio sem concorrência de mercado. Para o autor, o que é mais significativo na precarização do trabalho e no desemprego é que estes constituem um processo, reintroduzindo princípios heterogêneos de seletividade. Os custos humanos e sociais da precarização permanecem diluídos na dinâmica da sociedade norte-americana, e os custos do desemprego e da exclusão a ser contidos politicamente na Europa Ocidental.

Como bem disse o autor: a expansão do capitalismo produziu o Terceiro Mundo.

 

FICHA TÉCNICA

 

TRABALHO OU AUTONOMIA

Editora: Vozes
Autor: Antonio David Cattani
Ano: 2000

 

Psicóloga. Doutora em Educação (UFBA). Mestre em Comunicação e Mercado (FACASPER). Especialista em Psicologia Clínica. Especialização em Gestão e Docência no Ensino Superior. Formação em Arte Terapia. Graduada em Publicidade e Propaganda (CEULP/ULBRA), em Ciências Sociais (ULBRA) e em Processamento de Dados (UNITINS). Coordenadora geral do Portal (En)Cena. Atualmente é professora e coordenadora do curso de Psicologia no Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA).  E-mail: irenides@gmail.com