Temas e reflexões atemporais são percebidos na vida e obra de Machado de Assis

Lucilene da Silva Milhomem – damilhomem44@gmail.com

Joaquim Maria Machado de Assis foi um escritor renomado da literatura brasileira. Carioca, de família pobre e negro. Foi o fundador da Academia Brasileira de Letras e, consequentemente, o primeiro presidente dela. Nasceu em 21 de junho de 1839 e morreu em 1908, aos 69 anos de idade, vivendo a maior parte de sua vida no século XIX, momento em que criou memoráveis obras, poemas, peças teatrais e romances.

Suas obras fazem com que o leitor, atento às entrelinhas, reflitam sobre as temáticas atemporais retiradas do contexto vivido por ele, àquela época. Dessa forma, sua escrita, com pitadas de ironia, virou paradigma, chamado por muitos de “estilo machadiano” de escrever.

No clássico “Dom Casmurro”, surge questões relacionadas aos dilemas das relações humanas, como o ciúme, a traição, os conflitos. Em contraponto ao tempo transcorrido desde o lançamento da obra, mesmo diante dos avanços tecnológicos e científicos, os referidos temas se mostram ainda atuais.

Não obstante o contexto cultural marcado pelo preconceito, Machado de Assis, com seu talento, inteligência e elegância na escrita e nas produções, eternizou-se diante da literatura brasileira, apesar das dificuldades que as pessoas negras têm em ascender socialmente, mormente porque a construção social, ainda que subjetiva, tende a distorcer a realidade.

O escritor estudou em escola de ensino público e a sua infância foi vivida no Morro do Livramento, na cidade do Rio de Janeiro. Seu pai, o senhor Francisco José de Assis foi pintor e sua mãe, a senhora Maria Leopoldina Machado de Assis, lavadeira.

Machado, autodidata e amigo dos livros, começou a escrever com 14 anos de idade. Com a abolição da escravatura, no Brasil, ocorreu somente em 13 de maio de 1988, Machado viveu em um espaço de tempo marcado fortemente pelo preconceito racial, o que não o impediu de mudar a realidade de sua própria existência, através de seu acurado intelecto.

Atualmente, a sociedade ainda convive com tal forma de sofrimento. Contudo, o Brasil avançou com a implementação de políticas públicas destinadas a aplicar a igualdade substancial às pessoas negras, como, por exemplo, a “Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial”, instituída por meio do Decreto nº 4.886/2003, com o desiderato de extirpar o preconceito racial no Brasil, mediante a realização de ações exequíveis a longo, médio e curto prazos, com o reconhecimento das demandas mais imediatas e das áreas de atuação prioritária. Apesar disso, o combate ao preconceito é uma luta constante.

O preconceito racial é todo e qualquer julgamento que discrimina uma raça ou etnia, considerando-a menos capaz, considerando que os padrões são derivados da construção social.

A história e a realidade mostram que os negros ao longo de décadas sofreram, e ainda sofrem privações, tratamentos desumanos, torturas físicas e psicológicas. Como exemplo, é comum a mídia veicular campeonatos de futebol e nele registrar atitudes e comportamentos preconceituosos em relação ao jogador negro.

Ao retomar as obras machadianas, em especial, “Dom Casmurro”, publicado em 1899, é possível perceber uma escrita recheada de recursos linguísticos como metáforas, comparações, metonímias, ironias, objetividade, sem olvidar da crítica social subjacente.

Além de Machado brincar com as palavras, deixa lacunas a serem preenchidas pela imaginação e fantasia do leitor, o que enriquece tanto suas obras. Ele ressalta de forma realista as questões psicológicas, de personalidade, além dos defeitos e das qualidades inerentes ao ser humano, ao narrar as interpretações de seus personagens adolescentes: Bento Santiago e Capitu.

Obra é lida e relida por décadas. É escrita em primeira pessoa. O narrador desejou fechar um círculo da vida, quando aduziu: “o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”.

Narrou o romance de Bento, com 15 anos e Capitu, aos 14. Bentinho dá sinais de ser apaixonado pela Capitu e reconhece não saber lidar com os seus sentimentos e emoções. O narrador diz que “conhecia as regras do escrever sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres”.

Dizia, ainda, que “todo eu era olhos e coração”. Uma fala de alguém extremamente apaixonado, que desconhecia viver sem o ser amado. Alguém que agia com o coração. A “natureza em mim enlouqueceu. Sou todo coração”.

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As autoras Papalia e Feldman (2013) explicam que os adolescentes estão em processo de maturação cerebral e que estão em desenvolvimento físico, psicológico e social. Essas características citadas no parágrafo acima, cuja emoção se sobrepõe à razão, são comuns nessa fase da vida, ainda que se repitam, também, na vida adulta.

É importante ressaltar que a identidade do adolescente ainda está em processo de construção. A identidade, segundo Erikson (1972), forma-se quando os jovens resolvem três questões importantes: a escolha de uma ocupação, a adoção de valores sob os quais vivem e o desenvolvimento de uma identidade sexual satisfatória.

Durante a leitura percebe-se que o narrador discorre sobre o comportamento de Capitu “Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes”. Bentinho ardia de ciúmes de Capitu, sendo que apenas o fato de ela contemplar o mar, levantava suspeitas de que ela pensaria em outro homem.

Sobre o tema, não é demais comentar que o ciúme patológico pode trazer danos de ordem física, moral, psicológica e patrimonial, comuns nas relações que envolvem violência doméstica, tratada no Brasil por meio da 11.340/2006, intitulada “Lei Maria da Penha”. Em casos mais avançados, até mesmo o feminicídio, incrementado no Código Penal, mediante a Lei 13.104/2015, quando a razão da morte for a condição de sexo feminino.

A obra “Dom Casmurro” mostra o quanto o ciúme é capaz de ofuscar e distorcer a realidade, destruindo relacionamentos. Para Bentinho: “Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro; qualquer homem me enchia de terror ou desconfiança”.

Dessa forma, como Capitu se sentia em um relacionamento envenenado de ciúme? O que fazer diante de alguém assim? É possível ser feliz com alguém adoecido? Como identificar alguém ciumento?

Há um poema de um autor desconhecido que diz que: “O tempo tem o seu próprio rumo e ritmo. É como um rio, que sempre flui. Carrega lembranças, sonhos e experiências. Não tem caminho de volta. O tempo segue. Sempre em frente. O tempo do tempo é o agora”.

Será que o narrador conseguiu atar as duas pontas da vida – restaurar na velhice a adolescência? Isso é possível? É possível Bentinho ajustar as regras do escrever às do amor, considerando que ele desconhecia as regras do amor?

Referências Bibliográficas: 

ABL, Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D240/Discurso%20de%20Encerramento%20do%201%C2%BA%20Ano%20Acad%C3%AAmico%20%2807/12/1897%29. Acessado em 16 de ago.de 2023.

ASSIS, Machado de, 1839-1908. Dom Casmurro [recurso eletrônico] / Machado de Assis ; prefácio de Ana Maria Haddad Baptista. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. – (Série prazer de ler; n. 7 e-book)

ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-etnico-racial/acoes-e-programas/politica-nacional-de-promocao-da-igualdade-racial. Acessado em 17 de ago. 2023.

 PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.