Eça de Queirós: há literatura como essa?

“[…] tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”

Eça de Queirós é conhecido pelos críticos, teóricos e estudiosos da literatura portuguesa como um dos maiores nomes da literatura de língua portuguesa. Sua prosa ofuscou, durante anos, a produção literária em Portugal, não só pelo número de obras publicadas, mas especialmente pela elaboração artística.

José Maria Eça de Queirós nasceu em 1845, em Póvoa de Varzim. Estudou Direito em Coimbra, onde se ligou à geração acadêmica e entusiasmada com o pensamento de Proudhon e Comte. Inicia sua carreira literária com a publicação de folhetins reunidos sob o título de Prosas Bárbaras (1905). Não participou diretamente da Questão Coimbrã, da qual foi um simples espectador.

Quando terminou o curso de Direito, Eça mudou-se para Lisboa. Seu objetivo era tentar a advocacia. Nessa cidade, liga-se ao grupo do Cenáculo (1868), tendo, antes, dirigido o Distrito de Évora (1867), jornal da província de Évora. Em 1869, para fazer a cobertura da inauguração do Canal de Suez, viaja ao Egito. Dessa tarefa resulta o livro O Egito, publicado, postumamente, em 1926. Quando regressa da viagem ao Egito, participa das Conferências do Cassino Lisbonense (1871). Em seguida, transfere-se para Leiria, na condição de administrador do Conselho, pré-requisito para que ele pudesse ingressar na carreira diplomática, desejo que acalentava. O Crime do Padre Amaro (1875) foi-lhe inspirado pela estada de seis meses em Leiria.

Eça foi aprovado em concurso e nomeado cônsul de Havana, em 1873. Já no ano seguinte (1874), é transferido para Bristol, Inglaterra, onde permanece até 1878. Transferiu-se depois para Paris, concretizado, assim, um antigo desejo: viver na capital francesa, espécie de capital do mundo na época. Casa-se em 1886 e entrega-se, inteiramente, à criação literária. Os últimos dias de sua vida, Eça os passa em Paris e, em 1900, falece cercado de familiares e amigos. Na fase derradeira de sua vida, sua irreverência e crítica à moral burguesa são atenuadas pelas atividades de diplomacia e por uma vida burguesa. Como Almeida Garrett, foi uma espécie de divisor de águas entre a tradição e a modernidade, do ponto de vista linguístico. Sua influência se faz sentir até hoje, tanto em Portugal quanto no Brasil.

O romance, o conto, o jornalismo, a literatura de viagens e a hagiografia foram cultivados pelo autor. Eça escreveu os romances O Mistério da Estrada de Sintra (em parceria com Ramalho Ortigão, 1871), O Crime do Padre Amaro (1875), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1879),A Relíquia (1887), Os Maias (1888), A Ilustre Casa de Ramires (1900), A Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Cidade e As Serras (1901), A Capital (1925), O Conde d’Abranhos (1925) e Alves & Cia. (1925). Os contos: Contos (1902). Jornalismo, literatura de viagens e hagiografia: Uma Campanha Alegre (1890-91), Cartas de Inglaterra (1903), Prosas Bárbaras (1905), Ecos de Paris (1905), Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1907), Notas Contemporâneas (1909), O Egito (1926) e Últimas Páginas (1912).

A obra de Eça de Queirós pode ser dividida em três fases. Na primeira, encontramos um narrador ainda jovem à procura de seu caminho; na segunda, um escritor amadurecido e crítico em relação aos principais problemas da sociedade portuguesa sua contemporânea e, na terceira fase, temos um Eça voltado para os fundamentos de sua educação de português oitocentista e cristão, reafirmando os valores da tradição (religião, ética e moral).

A aproximação do demasiadamente humano, uma predominância do belo, com o equilíbrio na “convivência entre os elementos”, na ideia do “contraste”. As sensações físicas (que fazem surgir as emocionais) estão constantemente na literatura de Eça de Queirós. Ocorre no tratamento temático (o amor carnal é um assunto recorrente em sua prosa) e no uso das imagens que surgem pelo tratamento vocabular. A representação das sensações causadas por determinados objetos, ambientes, situações, está entre as preocupações do prosador e é transposto para o audiovisual. As associações táteis, olfativas, gustativas, auditivas se enriquecem com um vocabulário que tende à sensualização das palavras que, em sua expressão comum, são inocentes.

O discurso narrativo em Eça de Queirós consegue fugir dos preciosismos parnasianos e do tecnicismo de Zola. Além do mais, aboliu de seu discurso o arcaísmo e trouxe para sua literatura termos considerados, para a época do escritor, inconvenientes ou vulgares. Palavras que inspiram sensualismo e que são frequentes: carne, nudeza, seio, virgem, beijo, sensual, nu, ardente, tépido, lascivo, etc. As que eram consideradas vulgar: barriga, nádega, arrotar, saliva, vomitar, cuspir, etc.
O adjetivo é usado para comunicar, com dose qualitativa e quantitativa, cor, matiz e tonalidade à expressão. O adjetivo traduz-se em efeitos de significação, com o objetivo de comunicar e em efeitos sensoriais, cujo objetivo é causar, especialmente, ritmo.

A ironia está em sua obra para, aparentemente, produzir um sentido cômico da percepção que ele tem da realidade. Os aspectos grotescos, risíveis, contraditórios do ser humano e de sua condição, das coisas e dos fatos são apresentados ora com discretíssima ironia verbal, ora com exageros próximos à caricatura. A finalidade da ironia também segue a mesma ordem: ora para causar um furor polêmico, ora uma fina ironia à sociedade, à vida, ao ser humano.

A fina ironia, mais comum na literatura inglesa, está pouco presente na literatura ibérica, mas marca o estilo queirosiano. Todos esses elementos combinam-se e formam as matizes da forma de narrar desse autor. Há, ainda, uma inclinação do narrador para adotar uma posição egocêntrica na narração, cujo objetivo é comunicar o seu “eu”, para que o leitor sinta a sua presença quase física, ao lê-lo, invadindo tudo.

Para autores como Eça, o conteúdo é apenas um dos elementos, já que a forma de comunicar a mensagem sobrepõe-se a esta. Situando-se entre a mensagem e o leitor, o narrador de Eça de Queirós oferece uma visão “interferida pela sua personalidade”, indissociando-se do relato, integrando-se à história, tornando-se “autor e objeto de ficção”.

Os temas e a forma de dizer sobre esses temas revelam elementos românticos (o lirismo convulsivo e a exaltação sonhadora de algumas personagens), realistas (o imaginoso materialismo no discurso em personagens como João da Ega, em Os Maias), parnasianos (o relevo marmóreo e a plasticidade), naturalistas, simbolistas (a musicalidade macia e nebulosa), pré-rafaélicos (a estilização miniaturista), impressionistas (a percepção hiperestética e dissociadora), além do humor humanitário do romance vitoriano. É como se o estilo de Eça compartilhasse todas essas correntes, impedindo-o de pertencer a uma só. Sua capacidade de assimilação revela-se em componente essencial da personalidade estilística deste autor.

De olho nesta literatura que transborda de emoções físicas e sentimentais, a televisão e o cinema já beberam na fonte de Eça. A Globo levou ao ar duas minisséries baseadas na literatura do escritor português: O Primo Basílio, em 1988, com direção de Daniel Filho e roteiro de Gilberto Braga, com Giulia Gam e Marcos Paulo; e Os Maias, com direção de Luiz Fernando Carvalho e roteiro de Maria Adelaide Amaral, em 2001. Esta última teve, em seu enredo, a adição dos romances A Relíquia e A Capital, além do próprio romance Os Maias. A televisão portuguesa tem levado ao ar outros textos de Eça, uma vez que há uma inclinação da televisão brasileira em valorizar sua literatura.

O cinema, por sua vez, também bebeu nesta fonte. A mais antiga versão cinematográfica da obra queirosiana é de 1923: O Primo Basílio. Produzido em Portugal, teve a direção assinada por Georges Pallu. No Brasil, O Primo Basílio foi dirigido por Daniel Filho, em 2007, e teve Débora Falabella interpreta Luíza; Fábio Assunção, como Basílio; e Gloria Pires, como Juliana. O cinema brasileiro também levou à telona Alves & Cia que, pelas mãos de Helvécio Ratton, em 1999, tornou-se Amor & Cia. A história de um adultério em tom de comédia teve a participação de Marco Nanini, Patrícia Pillar e Alexandre Borges.

O Crime do Padre Amaro, com Gael García Bernal como o Padre Amaro, teve a direção de Carlos Carrera, cuja adaptação despertou atenção dos católicos mexicanos que pediram o cancelamento da produção. No entanto, o projeto méxico-hispano-franco-argentino seguiu adiante e recebeu indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Depois disso, o mesmo romance foi adaptado, em 2005, pelo diretor português Carlos Coelho da Silva.

O cinema português dedicou-se, também, a rodar O Mistério da Estrada de Sintra, em 2007, dirigido por Jorge Paixão costa. O mais recente trabalho baseado na literatura queirosiana é Singularidades de uma Rapariga Loura, um conto de 1874, que resultou em filme do famoso diretor português Manuel de Oliveira (2009).

E, para terminar esta nossa conversa, quero retomar a citação em epígrafe, que vocês já ouviram. O trecho é de O Primo Basílio, que Arnaldo Antunes e Marisa Monte inseriram em Amor I Love You, música muito conhecida por nós.

Conheça mais em: http://queirosiana.wordpress.com/ e https://cenasdatese.wordpress.com/

Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA (PosCom-UFBA). Mestre em Letras e Linguística (UFG). Licenciada em Letras (UFG). É professora da SEDUC e da Unitins. Atua em pesquisa e desenvolve projetos nas áreas de literatura, televisão, teleficção seriada e adaptação literária. Desenvolve, com outros pesquisadores do Grupo de Pesquisa Literatura, Arte e Mídia, os projetos de Extensão “Cinema e Literatura em Debate” e “Interlúdio Literário”. E-mail: kyldesv@gmail.com