Maternidade: uma questão de biologia, escolha ou poder?

Por Carmem Teresa do Nascimento Elias – Pós-graduada em Letras (Português/Inglês, Línguas e respectivas Literaturas) pela University of Cambridge, Universidade Federal Fluminense e pela UERJ.

 

Desde os primeiros movimentos sociais de emancipação da mulher, a partir, principalmente, da luta pelo direito ao voto, ou pela participação no mercado de trabalho, desde século XXVIII, por exemplo, a questão do feminino e do feminismo avança, a passos lentos, porém precisos, em busca de um posicionamento igualitário, digno e justo da mulher na sociedade. Após o surgimento da pílula anticoncepcional nos anos 1960, a liberdade sexual da mulher entrou em evidência, concedendo-lhe o direito ao prazer nos relacionamentos, sem o histórico estigma de preconceitos, exclusão, e riscos de uma gravidez indesejada. A discussão toma força, agora no início do século XXI, em torno do exercício do pleno direito e poder da mulher sobre seu próprio corpo, especialmente no tocante à maternidade compulsória, ou seja, sobre a esperada premissa de que a mulher só se realiza plenamente como mãe. Verdade é que muitas mulheres passaram a optar por não ter filhos. Compete a cada uma delas decidir se tem ou não o desejo, vocação, habilidade ou necessidade maternal. Porém, tal opção ainda é revestida de reações adversas, que submetem essa mulher não mãe de novos questionamentos e preconceitos, desta vez por opor-se ao ‘biologicamente programado’.

O mais importante a se destacar, antes de qualquer posicionamento sobre o tema, é o entendimento das relações de poder e dominação que perpassam pela circunscrição das mulheres no contexto histórico social.   Desde os tempos mais primitivos, a maternidade é vislumbrada como grande mistério e sacralização do feminino. Os registros ancestrais posicionam o feminino como divindades. As primeiras culturas atribuíam a criação do mundo a uma entidade divina feminina: a Grande Deusa Mãe, Gaia, Pachamama, por exemplo. Os conceitos de deidade e religiosidade emergem na cultura humana a partir do atributo biológico da fertilidade. As estatuetas mais antigas já encontradas esculturavam mulheres grávidas, de seios volumosos, como a famosa Vênus de Wilendorf, esculpida há cerca de 30 mil anos e encontrada em 1908 na Áustria. Num universo ainda em construção da sociedade, em que pouco ou quase nada se sabia sobre a fecundação e gestação, o mistério revestia a gravidez de poder implícito. Houve épocas, de sociedades matriarcais, cujo centro do poder era regido pela mulher. Sucederam-se épocas em que o masculino e o feminino conviviam lado a lado com maior afinidade. Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, por exemplo, dividiam muitas deidades em ambos os gêneros: Isis, Afrodite, Atenas, Hera, entre tantas outras, eram reverenciadas no panteão dos deuses. Enheduanna (2285-2250 A.C.) foi uma princesa e alta sacerdotisa em Ur, uma das primeiras cidades das quais se têm conhecimento na História, na Suméria. Seu poder era tanto ritualístico sacerdotal quanto político, e literário.

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Entidade Divina

Ela teria sido a primeira mulher poeta conhecida e coube, justamente a ela, unificar as várias cidades da Suméria. No tocante ao poder político, no Egito Antigo, mulheres ocuparam o cargo máximo de faraó, como Hatshepsut (1479-1458 A.C.), uma das mulheres governantes mais poderosas da História, responsável pela maior expansão do território de domínio egípcio. Não é necessário, portanto, questionar que capacidade, inteligência e poder sempre foram competências também femininas. Entretanto, com a implantação das religiões monoteístas, principalmente após a fuga dos hebreus do Egito, a sociedade patriarcal, cujo cunho sempre estivera presente também desde priscas eras, passa a exercer um domínio absoluto, execrando a função das mulheres, implantando tabus e dogmas à sexualidade, restringindo a elas o papel apenas de esposa e mãe, sujeitas à vida doméstica e criação dos filhos. Surge o culto ao pecado, condenando, principalmente, a mulher, como pecadora ou bruxa, caso não obedecesse aos desígnios político-religiosos vigentes. Antes, a mulher, inclusive, poderia aspirar ao cargo de papisa nos primórdios do Cristianismo; assim como os sacerdotes podiam se casar. Só no século XI estabeleceu-se a proibição oficialmente.  Muitas mulheres, acusadas de bruxaria, muitas vezes, por causa de sua inteligência, eram queimadas.

Séculos se passaram, até que à mulher fosse permitido recuperar seu direito ao exercício de sua cidadania, consciência, poder de decisão particular e social, vontade e poder sobre seu próprio corpo e vida. A luta feminina e feminista por espaço e voz é permanente. Até hoje em dia não são raros os contextos em que a mulher ainda é tratada como propriedade e patrimônio de seus maridos, além de parideira destinada a dar filhos aos homens. O ranço patriarcal é tão grande, que até para grandes pesquisadores da mente humana, como Freud e Lacan, dois grandes alicerces das teorias psicanalíticas, os elementos subjacentes ao universo feminino não foram elaborados no conjunto de suas obras. Freud não tirou a mulher de um papel passivo, inserido no ambiente doméstico do casamento e nem mesmo no contexto mitológico por meio do qual exemplifica seus estudos. O autor coloca seu foco de pesquisa nas histerias sexuais femininas, contudo, em sua obra Totem e Tabu, por exemplo, exclui a participação feminina nas supostas mitologias de origens de formação do inconsciente humano, e do arcabouço das leis e liberdades individuais e coletivas! Freud chegou inclusive, a concluir ser indecifrável um modelo psicanalítico do feminino, sugerindo que se consultassem os poetas sobre elas.

Patriarcados e brincadeiras à parte, são as escritoras mulheres quem melhor definem o poder do universo feminino. Como escreveu a autora Hilda Hilst (1930-2004) na obra O Desejo, “há um incêndio de angústia e de sons sobre os intentos… a mulher emergiu descompassada no de dentro da outra”.  Enquanto Freud nos deixou com a pergunta sem resposta ‘o que querem as mulheres?’, a escritora Simone de Beauvoir (1908-1986) é incisiva: ‘Ninguém nasce mulher; torna-se mulher’, e ainda nos explica que ‘é pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava dos homens… e garantir uma independência concreta’. Simone de Beauvoir, em sua obra O segundo Sexo recuperou a construção do feminino como elemento ativo de poder da mulher na esfera pessoal e social, politizando sua geração em busca de reivindicação de autonomia sobre seu corpo e contra ideias conservadoras de moral. Surge, assim, o primeiro momento em que o corpo feminino passa a ser uma questão requisitada exclusivamente por quem o possui, ou seja, unicamente de direito da própria mulher.

Beauvoir libertou o pensamento feminino do ideal social vigente de ‘mulher boa esposa e mãe’. Beauvoir, inclusive, contesta até a Psicanálise do estigma freudiano centrada na inveja do falo, enquanto Betty Friedan denunciou que a construção psicanalítica centrada no falo concretizava uma ideia de inferioridade da mulher em relação ao homem. A partir então deste contexto traçado ao longo dos anos 1970, a maternidade passou a ser questionada como um dilema entre o biologicamente natural e o socialmente construído diante da mulher.  Em pleno século XXI, sobre a mulher moderna, cidadã, livre, consciente, independente, trabalhadora, financeiramente autossuficiente, ainda recai a cobrança diante da decisão sobre ser ou não mãe. Ainda falta destruir a barreira que incomoda a sociedade diante de uma escolha que compete à mulher. Por legitimidade, os estigmas sociais vêm sendo abolidos. Temas tabus como aborto, violência doméstica, discriminação estão em pauta numa sociedade que avança em defesa de direitos igualitários. Muitas mulheres, inclusive, são atuais chefes de família, cabendo a elas o papel de provedoras, antes destinado aos homens. A emancipação feminina traz cada vez mais para debates questões pertinentes ao papel da mulher no mundo. Há mulheres envolvidas e felizes com seus estudos e carreiras, sentindo-se plenas em sua vida pessoal. Há mulheres para as quais a maternidade pode até mesmo vir a ser um prejuízo diante de suas agendas e interesses de vida. A biologia de uma mulher não lhes obriga, necessariamente, a ter de ser mãe. O útero lhes confere uma possibilidade biológica; jamais, uma obrigação.  A escolha pela maternidade ou não, acima de tudo, é uma decisão pessoal e, como tal, inquestionável.

No mundo atual, o sistema populacional revela ainda a existência de dois extremos. Por um lado, classes sociais mais abastadas, com famílias de poucos herdeiros, e até sem herdeiros, como vem acontecendo em países europeus, sobretudo na Itália. Por outro lado, classes de menor acesso a informações adequadas sobre métodos contraceptivos, ou que por questões outras sejam avessos a impedir gravidezes, ainda resultam em muitas mulheres que acumulam uma quantidade significativa de filhos, predominantemente sem condições econômicas de prover o básico necessário ao bom desenvolvimento infantil. Vale a pena trazer mais um filho a um mundo assim de forma tão desestruturada?   A própria legislação de um país dispõe, ou não, de instrumento de alicerce aos interesses da mulher, ou exclusivamente ao do homem. No Brasil, até o início de 2023, uma mulher era proibida de fazer laqueadura sem autorização do marido! Ela não podia decidir sobre seu próprio corpo a menos que tivesse mais de 25anos, dois filhos vivos e permissão do homem. Em caso de laqueadura juntamente com o parto, só era possível caso a mulher já tivesse passado antes por duas cesárias. Finalmente, a lei está em processo já definitivo de mudança e a autorização masculina não mais será requisito.

As relações de poder e dominação não podem, contudo, continuar a exercer pressão sobre a mulher que opta por não querer ser mãe em hipótese alguma. Maternidade não é algo exclusivo e inerente à identidade feminina. Além da geração uterina, um bebê requer atenção parental, atenção e cuidados que não são exclusividade de que se possa imbuir apenas a uma mulher parideira. Casais de orientação sexual homoafetiva têm competência tão boa como qualquer mulher a prestar todos os cuidados a um bebê. E uma mulher sem filhos não deve ser julgada como ‘infeliz, frustrada, incompleta’, como, por estereótipo do preconceito histórico, possa vir a ser taxada. As questões de gênero atualmente evoluem de forma mais igualitária sobre a função e o exercício das funções parentais, que não mais atribuem apenas à mulher a função materna. Um aspecto importante de ser abordado, contudo, sobre a escolha pela não maternidade em uma mulher é que a opção seja genuinamente pensada, refletida e conscientemente madura. A opção da mulher deve ser respaldada por sua autossatisfação, autoconhecimento e autodeterminação. Do mesmo que a maternidade não pode ser uma imposição social masculina, também a opção pela não maternidade não pode ser cercada de pressões feministas ou modismos de uma geração.

O complexo psíquico de uma mulher pode ser povoado por medos e traumas que não justificam a negação da maternidade. Optar por não ter filhos não é a resposta para medo do parto, medo de engordar e perder a beleza, medo de sentir dor, medo de perder a liberdade, medo de perder a individualidade. Tais argumentos, que já ouvi algumas vezes, apontam para a necessidade de um melhor esclarecimento. Similarmente, mulheres que não podem biologicamente ter filhos por algum comprometimento no aparelho sexual, infertilidade ou doenças também devem estar cientes de que defender não ter filhos diante de outras mulheres não deve servir como válvula de escape de suas próprias dificuldades. Tal argumento também já pude observar em algumas justificativas contra a maternidade, mas não passam de respostas paliativas a conflitos pessoais internos que não servem como pressuposto em defesa da decisão segura e plena de uma mulher ao optar em não passar pela experiência da maternidade.

Falamos de experiências de vida, de escolhas de voz e poder absoluto sobre si mesma, escolhas das quais um dia não haverá mais volta. Falamos de liberdade acima de tudo. De liberdade pessoal. Do mesmo modo, uma sociedade amadurecida não pode continuar a confrontar a mulher com cobranças acerca de sua opção. Já passamos do ponto em que dizer ‘Não é não’ para qualquer tipo de estigma que se impõe à mulher e à sua autonomia. Nada justifica que ao declarar sua escolha uma mulher venha a ser questionada por familiares, por colegas, por amigas. Vivemos um século que se inicia sob a égide da diversidade, do direito, da vida ativa e pública. A opção não válida é por uma maternidade problema que torne a relação mãe-filho um processo frustrante para ambas as partes, que sacrifique a mulher diante de seus desejos e aspirações de vida pessoal, que traga ao mundo uma criança sem perspectiva de atenção e carinho. Não pode haver mentiras na relação com a maternidade.  Dados estatísticos apontam para uma redução de 14 por cento na taxa de mulheres que têm filhos no Brasil. Os números são significativos de uma sociedade em mudança, na qual a mulher se instala cada vez mais no cenário público ativo e profissional, restaurando o papel social de ser humano plenamente capaz de exercer a função de sua escolha.

Referências

Beauvoir, S. (1977). Le deuxième sexe. Gallimard, Paris.

Freud, S. (1971).  La feminitè, In Nouvelles Conferences du psychanalyse. (trabalho original publicado em 1936.

Friedan, B. (2020) A mística feminina. Roa dos tempos. Portugal.

Hilst, H. (2004). Do Desejo. Editora Globo. São Paulo.

Knibierlher, S. (1978). Mães: um estudo antropológico da maternidade. Martins Fontes, SP.

Nunes, S.A. (2011). Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e Mal-estar. Psic, Clin., Rio de Janeiro.