Estigmas e bifobia: o apagamento bissexual dentro da própria comunidade

Para aquele que identifica-se como bissexual há sempre uma dupla jornada: a aceitação dentro da própria comunidade e a luta contra os estigmas sociais.

 

Vitória Cardoso Figueira (Acadêmica de Psicologia) – vitoriacardoso@rede.ulbra.br

As orientações sexuais, conforme compreendidas na contemporaneidade, representam maneiras de viver através das quais buscamos compreender e explicar certos comportamentos, preferências e desejos (Simões; Facchini, 2009). Dominantemente, a compreensão das diversas sexualidades é influenciada por uma lógica que associa o sexo biológico, o gênero e o desejo, estabelecendo relações de oposição entre categorias binárias como feminino-masculino, homem-mulher e heterossexual-homossexual. Através dessa estrutura interpretativa, a norma heterossexual procura assegurar que as relações afetivo-sexuais dos indivíduos se baseiem em representações e papéis de gênero estritamente binários (Butler, 2018).

Quando se aborda práticas sexuais não alinhadas com a heteronormatividade, as bissexualidades e outras expressões sexuais fluidas ainda enfrentam desafios de compreensão. De fato, ao longo do tempo, as práticas bissexuais foram e continuam sendo frequentemente marginalizadas, associadas a estigmas como ilegitimidade sexual, não monogamia, infidelidade e transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). A bissexualidade, muitas vezes percebida como ambivalente, é por vezes invisibilizada na cultura que segue padrões heteronormativos e binários, sendo considerada uma orientação sexual questionável e controversa. Diante da dicotomia entre as categorias heterossexual e homossexual, a possibilidade de diversificar o objeto de desejo tem gerado tensões e conflitos dentro dos movimentos LGBTQIAP+ (Lewis, 2012).

Embora o termo “bissexual” tenha sido cunhado apenas no século XX para descrever a sexualidade de pessoas que sentem atração por mais de um gênero, as práticas que hoje identificamos como bissexuais já foram documentadas em épocas passadas e em diversas culturas. Exemplos incluem a antiguidade grega, japonesa e romana, bem como rituais de povos indígenas. Nas mitologias grega e romana, por exemplo, a “bissexualidade” era frequentemente atribuída à sexualidade de deusas e deuses (Lewis, 2012).

O termo “bifobia” está associado ao processo de invisibilidade e deslegitimação das experiências bissexuais, sendo utilizado para descrever reações negativas de pessoas heterossexuais, lésbicas e gays em relação à bissexualidade. Embora essa compreensão seja amplamente adotada por aqueles que se identificam como bissexuais, é comum que lésbicas e gays questionem sua legitimidade, argumentando que bissexuais só enfrentam discriminação quando estão em relacionamentos com pessoas do mesmo gênero. Nesse sentido, algumas pessoas lésbicas e gays sugerem que a discriminação enfrentada pelos bissexuais seja enquadrada nos termos da homofobia ou lesbofobia (Goob, 2008).

                                                                                        Fonte: Gerd Altmann por Pixabay

A deslegitimação da bissexualidade é um dos desafios enfrentados no autoconhecimento acerca da própria sexualidade

 

Além do conceito de bifobia, um termo cada vez mais proeminente na militância bissexual no Brasil e nas discussões acadêmicas internacionais é o “monossexismo”. Este termo é utilizado para descrever a crença social de que as orientações monossexuais (como heterossexualidade, homossexualidade e lesbianidade) são superiores e mais legítimas do que as orientações não monossexuais (como bissexualidade, pansexualidade, polissexualidade e sexualidades fluidas) (Ross, Dobinson, Eady, 2010). O monossexismo, conforme proposto por Shiri Eisner (2013), é concebido como uma estrutura social que pressupõe que todas as pessoas são monossexuais e considera desviantes as outras expressões e modulações da sexualidade.

Devido a uma percepção equivocada que as considera erroneamente como uma combinação de heterossexualidade e homossexualidade, as bissexualidades são frequentemente vistas como uma ameaça à coesão da identidade e do movimento homossexual. Como resultado, pessoas bissexuais frequentemente enfrentam marginalização dentro da comunidade LGBTQIAP+ (Lewis, 2012). É comum que pessoas bissexuais encontrem dificuldades em assumir sua sexualidade em ambientes predominantemente gays e lésbicos. Algumas afirmam que seria mais simples se conformar com a heterossexualidade ou até mesmo assumir uma identidade homossexual, em vez de sustentar abertamente uma identidade bissexual  (Gómez; Arenas, 2019).

No contexto de apagamento enfrentado pelas pessoas bissexuais, que envolve a negação de sua existência e a dificuldade em serem reconhecidas como bissexuais em contextos sociais, o processo de construção de suas identidades é frequentemente permeado por sentimentos como solidão e confusão. Esse cenário contribui para a vivência de vulnerabilidade, insegurança, arrependimento, frustração e impacta negativamente a qualidade de vida, a autoimagem e as relações interpessoais dos indivíduos. A bifobia é percebida como uma forma de violência silenciosa, manifestando-se em diversos contextos e tendo repercussões significativas na vida daqueles que a enfrentam diariamente  (Gómez, Arenas, 2019).

E diante dessas questões a bifobia é deslegitimada e colocada em cheque como algo superficial ou até mesmo inexistente. A minimização da bifobia como forma de preconceito é, em grande parte, decorrente da concepção equivocada de que pessoas bissexuais desfrutam da vantagem de evitar a discriminação ao se relacionarem com alguém de gênero diferente do seu. Essa percepção sugere que bissexuais seriam privilegiados em comparação com indivíduos homossexuais. A suposta proximidade dos bissexuais com a heterossexualidade levanta questionamentos sobre o potencial subversivo das bissexualidades em relação ao sistema heteronormativo (Caproni Neto, 2017).

Essa situação não apenas ameaça a expressão da sexualidade do indivíduo, mas também afeta a concepção pessoal de si mesmo, de quem é e do que sente. Paveltchuk, Borsa e Damásio (2019) destacam que a confrontação e a internalização de estigmas por pessoas bissexuais podem resultar em auto julgamentos negativos e questionamentos sobre sua sexualidade, levando a elevados níveis de confusão identitária e impactando adversamente a saúde mental desse grupo. Há uma pressão, tanto interna quanto externa, para que a experiência bissexual seja interpretada à luz da homossexualidade ou da heterossexualidade, uma vez que a bissexualidade, por si só, não é considerada uma opção válida.

Por fim, é claro que posicionar as bissexualidades como um dispositivo de subversão do sistema monossexista e binário, e como uma “categoria que desafia a categorização” (Caproni Neto, 2017), é crucial na construção do debate sobre os diversos mecanismos de opressão social. No entanto, é fundamental realizar um movimento de humanização das pessoas que vivem nessas áreas de tensão política e social, narrando diariamente as histórias que buscamos legitimar. No final do dia, são simplesmente indivíduos tentando viver – e sobreviver – em um mundo ainda fundamentado em um sistema heteronormativo, binário e monossexista.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

CAPRONI NETO, Henrique Luiz. A bissexualidade (des) organizada: desenhos, estigmas e subversões. SEMINÁRIOS EM ADMINISTRAÇÃO DA FEA-USP, v. 20, 2017. Disponível em: <

DE OLIVEIRA PAVELTCHUK, Fernanda; BORSA, Juliane Callegar; DAMÁSIO, Bruno Figueiredo. Indicadores de bem-estar subjetivo e saúde mental em mulheres de diferentes orientações sexuais. Psico, v. 50, n. 3, p. e31616-e31616, 2019. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/revistapsico/article/view/31616> Acesso em 15 de novem. 2023.

EISNER, Shiri. Bi: Notes for a bisexual revolution. Seal Press, 2013.

 

GOOß, Ulrich. Concepts of bisexuality. Journal of Bisexuality, v. 8, n. 1-2, p. 9-23, 2008. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/15299710802142127> Acesso em 15 de novem. 2023.

 

GÓMEZ, Juan Pablo Perera; ARENAS, Ysamary. Development of Bisexual identity. Ciencia & saude coletiva, v. 24, p. 1669-1678, 2019. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/VPxGFPV9CLHDtnDNMwBKr4w/?format=html&lang=en> Acesso em 15 de novem. 2023.

 

LEWIS, Elizabeth Sara. Construções Identitárias em narrativas de ativistas LGBT que se identificam como bissexuais. 2012. Tese de Doutorado. PUC-Rio.

 

ROSS, Lori E.; DOBINSON, Cheryl; EADY, Allison. Perceived determinants of mental health for bisexual people: A qualitative examination. American journal of public health, v. 100, n. 3, p. 496-502, 2010. Disponível em: <https://ajph.aphapublications.org/doi/full/10.2105/AJPH.2008.156307> Acesso em 15 de novem. 2023.

 

SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. Editora Fundação Perseu Abramo, 200