Psicologia Social – Travessias e(m) Tessituras

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Desafiando Fronteiras: A Incursão da Psicologia na Mudança Social e a Perspectiva Contínua de Transformação em Diversos Âmbitos

Psicologia Social: Travessias e(m) tessituras é um livro construído por meio da contribuição de diversos profissionais das áreas das Ciências Humanas e Sociais. Faz uma análise de maneira ética, crítica, reflexiva e propositiva de uma variedade de temas que se entrelaçam com a Psicologia Social, além de abrir portas para outras áreas. Os elementos que formam os aspectos fundamentais da Psicologia Social, explorados neste estudo, evidenciam a complexidade, o aspecto histórico, as interconexões, a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade permitida para uma prática ético-política.

Logo na apresentação do livro, a organizadora, Aline Daniele Hoepers, faz um breve resumo dos capítulos que estão por vir, que podem ser descritos da seguinte maneira: no capítulo de abertura, intitulado “Psicologia Social: percursos, percalços e outros rumores”, são delineadas como jornadas determinadas no âmbito da Psicologia Social. Este capítulo destaca a importância crucial de assumir uma postura política, evidenciando a necessidade premente de luta pela transformação de uma realidade social desigual que se (im)posiciona.

No capítulo 2, intitulado “Políticas sociais: breve análise dos direitos sociais pós Constituição Federal de 1988″, destaca-se o contexto histórico e social essencial para uma análise crítica da construção dos direitos sociais e das políticas sociais no Brasil. O capítulo 3 , agência ‘Justiça social e direitos humanos: reflexões sobre o compromisso social da Psicologia’, continua nessa direção, enfatizando a necessidade de esforços contínuos para concretizar os direitos em meio às complexidades sociais. Com outras áreas e setores sociais, buscando uma realidade baseada na promoção dos direitos humanos e na justiça social.

Os capítulos posteriores levantam questionamentos e convidam a repensar abordagens teóricas que têm impacto direto na prática. No capítulo 4, intitulado “Psicologia Imaginal, pensamento decolonial e pedagogia cultural: por um resgate da ancestralidade”, uma abordagem crítica da Psicologia Imaginal é apresentada, destacando diálogos com epistemologias latino-americanas de origem indígena. Este capítulo convida à reflexão sobre a necessidade de uma ciência diversificada, culturalmente sensível e descolonizada.

Seguindo adiante, o capítulo 5, intitulado “Amor e cultura: discutindo a respeito do amor enquanto um produto cultural”, explora a intersecção entre amor e cultura. Destaca elementos presentes na construção sociocultural do amor, focando especialmente nos padrões direcionados às mulheres.

No capítulo 6, intitulado “Psicologia Social e sofrimento ético-político na atualidade: uma revisão bibliográfica”, o foco recai sobre as fontes geradoras de aflições, destacando o conceito de sofrimento ético-político. Este capítulo instiga à ação, convocando-nos a nos posicionar diante das opressões e disparidades sociais que persistem no cenário contemporâneo. Por outro lado, o capítulo 7, intitulado “A massa bolsonarista, uma massa da igreja?” aborda o contexto social e político atual do Brasil sob uma perspectiva distinta, destacando especificamente os traços que compõem o movimento da massa bolsonarista.

No capítulo 8, intitulado “A circularidade entre os polos subjetivos e objetivo: notas sobre a atuação do psicólogo organizacional e do trabalho”, são oferecidas reflexões sobre os desafios e potenciais no exercício profissional da Psicologia Organizacional e do Trabalho, enfatizando especialmente a delicada tarefa de mediar o esforço entre capital e trabalho. Enquanto isso, o capítulo 9, nomeado “Violências sexuais vividas por crianças e adolescentes: a atuação da escola na rede de atendimento e enfrentamento”, explora e problematiza os papéis desempenhados pelas instituições escolares na rede de proteção contra violências sexuais envolvendo crianças e adolescentes.

No capítulo 10, intitulado “O psicólogo no CRAS: refletindo sobre as práticas desenvolvidas junto às famílias vulnerabilizadas”, enfatiza-se a urgência de importância e buscar oportunidades para uma prática ético-política que seja socialmente comprometida com as famílias em situação de vulnerabilidade. Já no capítulo 11, chamado “Incorporar ou não? Quando o CREAS se torna um espaço de violação”, são discutidas experiências profissionais que merecem atenção, especialmente para evitar que uma população já fragilizada, atendida por essas instituições, não seja ainda mais vitimizada.

Os capítulos finais da obra trazem à tona, de maneira crítica e sensível, às experiências vividas durante a formação acadêmica em Psicologia no contexto comunitário. No capítulo 12, intitulado ‘Escuta coração da Chico: um relato de intervenções psicossociais realizadas com adolescentes em contexto comunidade durante a pandemia’, através da partilha de experiências de extensão universitária, destaca-se a importância da escuta ética e política das particularidades, que são moldadas por estruturas opressivas. Por outro lado, o capítulo 13, nomeado “Psicologia das Brechas: uma psicologia a partir de nós” baseado em relatos de experiências de estágio, convida à criação e abertura de espaços para a inovação, encontro e transformação social.

No conjunto dessas discussões e tensões, emerge não apenas a essência do compromisso social da Psicologia, mas também um convite à reflexão e à ação transformadora. As múltiplas abordagens e a diversidade de ângulos presentes nesses campos de atuação e pesquisa não apenas enfatizam, mas também reafirmam a importância do papel transformador e socialmente comprometido desempenhado pela Psicologia.

Este panorama não linear transcende os limites convencionais, convidando-nos não só a explorar e expandir as fronteiras da Psicologia, mas também a desbravar novos territórios e possibilidades. Em meio a desafios e oportunidades, essa obra ressoa como um convite para repensar constantemente os paradigmas estabelecidos, abrindo caminho para a evolução contínua e a inovação no campo da Psicologia. Essa multiplicidade de visões e abordagens não se limita a encerrar discussões, mas sim a abrir um vasto horizonte de possibilidades, convidando-nos a trilhar caminhos que nos conduzam a novas descobertas e avanços significativos na compreensão e na aplicação da Psicologia em nossas sociedades e comunidades.

REFERÊNCIA

HOEPERS, Aline Daniele et. al. PSICOLOGIA SOCIAL: Travessias e(m) tessituras. Editora BAGAI.  2023. Disponível em: <https://editorabagai.com.br/product/psicologia-social-travessias-em-tessituras/> Acesso em 27 de out. 2023.

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Estigmas e bifobia: o apagamento bissexual dentro da própria comunidade

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Para aquele que identifica-se como bissexual há sempre uma dupla jornada: a aceitação dentro da própria comunidade e a luta contra os estigmas sociais.

As orientações sexuais, conforme compreendidas na contemporaneidade, representam maneiras de viver através das quais buscamos compreender e explicar certos comportamentos, preferências e desejos (Simões; Facchini, 2009). Dominantemente, a compreensão das diversas sexualidades é influenciada por uma lógica que associa o sexo biológico, o gênero e o desejo, estabelecendo relações de oposição entre categorias binárias como feminino-masculino, homem-mulher e heterossexual-homossexual. Através dessa estrutura interpretativa, a norma heterossexual procura assegurar que as relações afetivo-sexuais dos indivíduos se baseiem em representações e papéis de gênero estritamente binários (Butler, 2018).

Quando se aborda práticas sexuais não alinhadas com a heteronormatividade, as bissexualidades e outras expressões sexuais fluidas ainda enfrentam desafios de compreensão. De fato, ao longo do tempo, as práticas bissexuais foram e continuam sendo frequentemente marginalizadas, associadas a estigmas como ilegitimidade sexual, não monogamia, infidelidade e transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). A bissexualidade, muitas vezes percebida como ambivalente, é por vezes invisibilizada na cultura que segue padrões heteronormativos e binários, sendo considerada uma orientação sexual questionável e controversa. Diante da dicotomia entre as categorias heterossexual e homossexual, a possibilidade de diversificar o objeto de desejo tem gerado tensões e conflitos dentro dos movimentos LGBTQIAP+ (Lewis, 2012).

Embora o termo “bissexual” tenha sido cunhado apenas no século XX para descrever a sexualidade de pessoas que sentem atração por mais de um gênero, as práticas que hoje identificamos como bissexuais já foram documentadas em épocas passadas e em diversas culturas. Exemplos incluem a antiguidade grega, japonesa e romana, bem como rituais de povos indígenas. Nas mitologias grega e romana, por exemplo, a “bissexualidade” era frequentemente atribuída à sexualidade de deusas e deuses (Lewis, 2012).

O termo “bifobia” está associado ao processo de invisibilidade e deslegitimação das experiências bissexuais, sendo utilizado para descrever reações negativas de pessoas heterossexuais, lésbicas e gays em relação à bissexualidade. Embora essa compreensão seja amplamente adotada por aqueles que se identificam como bissexuais, é comum que lésbicas e gays questionem sua legitimidade, argumentando que bissexuais só enfrentam discriminação quando estão em relacionamentos com pessoas do mesmo gênero. Nesse sentido, algumas pessoas lésbicas e gays sugerem que a discriminação enfrentada pelos bissexuais seja enquadrada nos termos da homofobia ou lesbofobia (Goob, 2008).

                                                                                        Fonte: Gerd Altmann por Pixabay

A deslegitimação da bissexualidade é um dos desafios enfrentados no autoconhecimento acerca da própria sexualidade

 

Além do conceito de bifobia, um termo cada vez mais proeminente na militância bissexual no Brasil e nas discussões acadêmicas internacionais é o “monossexismo”. Este termo é utilizado para descrever a crença social de que as orientações monossexuais (como heterossexualidade, homossexualidade e lesbianidade) são superiores e mais legítimas do que as orientações não monossexuais (como bissexualidade, pansexualidade, polissexualidade e sexualidades fluidas) (Ross, Dobinson, Eady, 2010). O monossexismo, conforme proposto por Shiri Eisner (2013), é concebido como uma estrutura social que pressupõe que todas as pessoas são monossexuais e considera desviantes as outras expressões e modulações da sexualidade.

Devido a uma percepção equivocada que as considera erroneamente como uma combinação de heterossexualidade e homossexualidade, as bissexualidades são frequentemente vistas como uma ameaça à coesão da identidade e do movimento homossexual. Como resultado, pessoas bissexuais frequentemente enfrentam marginalização dentro da comunidade LGBTQIAP+ (Lewis, 2012). É comum que pessoas bissexuais encontrem dificuldades em assumir sua sexualidade em ambientes predominantemente gays e lésbicos. Algumas afirmam que seria mais simples se conformar com a heterossexualidade ou até mesmo assumir uma identidade homossexual, em vez de sustentar abertamente uma identidade bissexual  (Gómez; Arenas, 2019).

No contexto de apagamento enfrentado pelas pessoas bissexuais, que envolve a negação de sua existência e a dificuldade em serem reconhecidas como bissexuais em contextos sociais, o processo de construção de suas identidades é frequentemente permeado por sentimentos como solidão e confusão. Esse cenário contribui para a vivência de vulnerabilidade, insegurança, arrependimento, frustração e impacta negativamente a qualidade de vida, a autoimagem e as relações interpessoais dos indivíduos. A bifobia é percebida como uma forma de violência silenciosa, manifestando-se em diversos contextos e tendo repercussões significativas na vida daqueles que a enfrentam diariamente  (Gómez, Arenas, 2019).

E diante dessas questões a bifobia é deslegitimada e colocada em cheque como algo superficial ou até mesmo inexistente. A minimização da bifobia como forma de preconceito é, em grande parte, decorrente da concepção equivocada de que pessoas bissexuais desfrutam da vantagem de evitar a discriminação ao se relacionarem com alguém de gênero diferente do seu. Essa percepção sugere que bissexuais seriam privilegiados em comparação com indivíduos homossexuais. A suposta proximidade dos bissexuais com a heterossexualidade levanta questionamentos sobre o potencial subversivo das bissexualidades em relação ao sistema heteronormativo (Caproni Neto, 2017).

Essa situação não apenas ameaça a expressão da sexualidade do indivíduo, mas também afeta a concepção pessoal de si mesmo, de quem é e do que sente. Paveltchuk, Borsa e Damásio (2019) destacam que a confrontação e a internalização de estigmas por pessoas bissexuais podem resultar em auto julgamentos negativos e questionamentos sobre sua sexualidade, levando a elevados níveis de confusão identitária e impactando adversamente a saúde mental desse grupo. Há uma pressão, tanto interna quanto externa, para que a experiência bissexual seja interpretada à luz da homossexualidade ou da heterossexualidade, uma vez que a bissexualidade, por si só, não é considerada uma opção válida.

Por fim, é claro que posicionar as bissexualidades como um dispositivo de subversão do sistema monossexista e binário, e como uma “categoria que desafia a categorização” (Caproni Neto, 2017), é crucial na construção do debate sobre os diversos mecanismos de opressão social. No entanto, é fundamental realizar um movimento de humanização das pessoas que vivem nessas áreas de tensão política e social, narrando diariamente as histórias que buscamos legitimar. No final do dia, são simplesmente indivíduos tentando viver – e sobreviver – em um mundo ainda fundamentado em um sistema heteronormativo, binário e monossexista.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

CAPRONI NETO, Henrique Luiz. A bissexualidade (des) organizada: desenhos, estigmas e subversões. SEMINÁRIOS EM ADMINISTRAÇÃO DA FEA-USP, v. 20, 2017. Disponível em: <

DE OLIVEIRA PAVELTCHUK, Fernanda; BORSA, Juliane Callegar; DAMÁSIO, Bruno Figueiredo. Indicadores de bem-estar subjetivo e saúde mental em mulheres de diferentes orientações sexuais. Psico, v. 50, n. 3, p. e31616-e31616, 2019. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/revistapsico/article/view/31616> Acesso em 15 de novem. 2023.

EISNER, Shiri. Bi: Notes for a bisexual revolution. Seal Press, 2013.

 

GOOß, Ulrich. Concepts of bisexuality. Journal of Bisexuality, v. 8, n. 1-2, p. 9-23, 2008. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/15299710802142127> Acesso em 15 de novem. 2023.

 

GÓMEZ, Juan Pablo Perera; ARENAS, Ysamary. Development of Bisexual identity. Ciencia & saude coletiva, v. 24, p. 1669-1678, 2019. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/VPxGFPV9CLHDtnDNMwBKr4w/?format=html&lang=en> Acesso em 15 de novem. 2023.

 

LEWIS, Elizabeth Sara. Construções Identitárias em narrativas de ativistas LGBT que se identificam como bissexuais. 2012. Tese de Doutorado. PUC-Rio.

 

ROSS, Lori E.; DOBINSON, Cheryl; EADY, Allison. Perceived determinants of mental health for bisexual people: A qualitative examination. American journal of public health, v. 100, n. 3, p. 496-502, 2010. Disponível em: <https://ajph.aphapublications.org/doi/full/10.2105/AJPH.2008.156307> Acesso em 15 de novem. 2023.

 

SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. Editora Fundação Perseu Abramo, 200

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“Anjos do Sol” – o retrato da exploração sexual infantojuvenil no Brasil

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Um crime contra a vida, contra pessoas e contra corpos fragilizados

O filme “Anjos do Sol” retrata a história da pobreza e miséria enfrentada por famílias que residem no sertão nordestino. Essas famílias, em condições precárias, acabam entregando suas filhas a aliciadores em troca de pagamento, sem o intuito explícito de abordar a questão do trabalho infantil. No entanto, o filme destaca a exploração sexual de crianças como uma das formas mais cruéis de trabalho infantil na sociedade contemporânea.

A obra de Lagemann em “Anjos do Sol” não se limita à realidade específica do Nordeste, mas evidencia que essa triste realidade está presente em diversos contextos sociais, desde a pobreza do sertão e garimpos até fazendas, rodovias e no coração das grandes cidades. A exploração sexual, muitas vezes erroneamente percebida pela sociedade como prostituição infantil, é destacada no filme como um problema grave, desmistificando a noção equivocada de que as crianças e adolescentes envolvidos envelhecem de forma voluntária e deliberada.

O filme “Anjos do Sol” aborda de maneira impactante a realidade de muitas famílias no interior do Brasil, que enfrentam condições de extrema pobreza e são relegadas à invisibilidade social. Essas comunidades são frequentemente esquecidas e desconhecidas pela sociedade em geral, vivendo à margem dos direitos mínimos essenciais. Diante das condições precárias de existência digna, os valores morais muitas vezes se tornam inexistentes, deixando às pessoas vulneráveis ​​qualquer tipo de exploração que possa proporcionar algum benefício em meio à adversidade.

Nesse contexto, o filme retrata de maneira dolorosa a mercantilização de meninas, que se torna, muitas vezes, o único recurso oferecido por uma sociedade que negligencia essas comunidades. A história de “Maria”, uma menina de 12 anos, é um exemplo trágico dessa realidade. Ela é vendida por seu próprio pai a um aliciador, sendo tratada como uma mercadoria que é transportada ilegalmente em um caminhão de transporte de frutas junto com outras meninas, todas escondidas como se fossem produtos ilegais.

O início abrupto do filme destaca a triste realidade em que famílias desesperadas vendem suas filhas menores, muitas vezes para conhecidas na capital, na esperança de proporcionar a elas uma educação básica e a chance de “ser alguém na vida”, como expressa a mãe ao explicar à filha: “vai arrumar uma casa boa pra você trabalhar, minha filha”. Esse ato é motivado pela busca desesperada por uma solução em meio a um ambiente miserável e hostil, no qual qualquer possibilidade de desenvolvimento socioeconômico parece inatingível. O filme retrata vividamente a dura realidade de inúmeras famílias brasileiras, seja nas áreas ribeirinhas, nos subúrbios das grandes cidades, nas margens das estradas ou nas remotas zonas rurais do Brasil. É uma realidade marcada pela miséria, com crianças e pais analfabetos, tornando essas famílias ainda mais vulneráveis ​​à manipulação de aliciadores e proxenetas (Da Silva, Leli, 2014).

A esperança de um emprego doméstico na capital é apresentada como uma solução para as meninas, em meio a um contexto onde a falta de oportunidades é esmagadora. A ironia é destacada quando a própria proxeneta, chamada Saraiva, comenta: “Prostituta alfabetizada é ruim para os negócios. A única que sabe ler e escrever é a que dá mais trabalho, fica inventando contas”. Isso evidencia como a perpetuação da ignorância serve aos interesses dos exploradores, revelando a triste realidade na qual as vítimas são mantidas em um ciclo de exploração, sem as ferramentas básicas para se libertarem. O filme lança luz sobre essas questões sociais complexas, destacando a urgência de abordar as raízes profundas da pobreza e a falta de acesso à educação (Da Silva, Leli, 2014).

O aliciador, conhecido como “Tadeu”, destaca a desumanização ao referir-se às vítimas como “mercadoria de primeira” ao vender-las, incluindo Maria, a uma cafetina chamada Nazaré. Esta última se posicionou como envolvida, lucrando com o cruel mercado de venda de seres humanos. Sob a fachada de ajuda, Nazaré anuncia que as meninas que recebem roupas novas e, em breve, “uns senhores” virão adotá-las, tornando-se seus “padrinhos e protetores” (Da Silva, Leli, 2014).

No entanto, a suposta ajuda de Nazaré revela-se uma farsa, pois ela está envolvida num leilão de menores virgens destinado a “poderosas” figuras políticas e fazendeiros abastados. A cafetina explora a inocência e a vulnerabilidade dessas crianças, transformando a tragédia da exploração infantil em uma transação lucrativa. No contexto perverso apresentado pelo filme, a juventude e a inexperiência das meninas tornam-se mais vantagens nesse mercado desumano.Esta narrativa expõe de maneira contundente a exploração sistemática e desumana que ocorre nesse submundo, destacando como a ganância e a falta de escrúpulos de alguns indivíduos perpetuam o sofrimento dessas vítimas (Da Silva, Leli, 2014).

O filme destaca de maneira impactante a exploração sexual como uma das formas mais cruéis do trabalho infantil. Em uma cena perturbadora, um fazendeiro chamado Lorenço adquire Maria e Inês em um leilão, planejando apresentar seu filho no aniversário de 15 anos dele, utilizando meninas como parte de uma iniciação sexual para o jovem. A brutalidade dessa situação é evidente na forma como o ato sexual é transformado em uma transação monetária, despojando completamente a intimidação humana: “Experimente seu presente. Faça o que quiser, você tem todo o direito do mundo.” Enquanto Maria enfrentava o desespero diante da violência iminente, o fazendeiro instruiu seu filho: “Bate que ela te obedece”, revelando a terrível dinâmica de poder que coloca o “senhor” acima da dignidade da “mulher”, tratando-a como um objeto de prazer (Da Silva, Leli 2014).

                                                                                        Fonte: https://www.omelete.com.br

 A casa 24 horas, 320 crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil

A crueldade infligida a Maria, uma criança vendida pelos próprios pais em busca do sustento da família, destaca a vulnerabilidade extrema das crianças nesse contexto. Isso ressalta a negação flagrante de sua dignidade diante dos interesses econômicos dos exploradores e das famílias que, de maneira desesperada, se submetem à exploração para garantir sua sobrevivência. Essa cena angustiante ilustra a complexidade desse ciclo de exploração, sublinhando as conexões entre pobreza, falta de oportunidades e a desumanização decorrente dessas práticas (Da Silva, Leli, 2014).

Após a “mercadoria ter sido usada”, isto é, depois de terem cometido diversos abusos físicos e sexuais, a dignidade veio a ser destruída e difamada. Seu “dono” decide por exportar as duas meninas para a aldeia dos Garimpeiros na Amazônia, acreditando que elas “não servem para nada”. Quando diz: “Mande elas pro Garimpo, pra ver se a Saraiva dá um jeito e serventia pra elas”. Retratando como são vistas apenas objetos e mercadorias (Da Silva, Leli, 2014).

Uma vez mais, as jovens são transportadas como se fossem mercadorias, desta vez em um avião de carga que as leva ao coração da floresta amazônica. Este cenário exuberante, repleto de beleza e riqueza natural, torna-se palco para a desumanização, evidenciando que, mesmo em meio a tanta grandiosidade, o ser humano é reduzido a uma commodity, um mero objeto de troca para o benefício ou prazer do outro. Ao chegarem ao seu novo destino, ou talvez seja mais apropriado dizer ‘inferno’, as garotas são anunciadas na rua principal como ‘carne fresca’, com um preço estabelecido em 3 gramas de ouro por programa. (Da Silva, Leli, 2014).

Em sua nova “casa”, chamada de “Casa Vermelha” no filme, as meninas são recebidas por Saraiva, “novo dono e padrinho”. O diretor com clareza expõe como os proxenetas se autodenominam como protetores das jovens, mostrando como exploradores fazem questão de ocupar um lugar de alguém especial ou salvador para as vítimas, no intuito que se compadeça com o tal e sejam compreensíveis com tudo que está acontecendo (Da Silva, Leli, 2014).

A condição de vida das crianças e mulheres, conforme retratada no filme “Anjos do Sol”, é caracterizada por uma superexploração que abrange tanto a força de trabalho em condições desumanas quanto a supressão total de direitos, visando exclusivamente à busca pela mais-valia. O filme habilmente traduz a infância roubada de meninas em todo o país, resultado de interesses econômicos e da satisfação dos desejos mais sórdidos do homem. Baseado em uma história real, a obra expõe com maestria a dura realidade que a sociedade e o Estado precisam enfrentar (Da Silva, Leli, 2014).

REFERÊNCIAS

DA SILVA, Waldimeiry Corrêa; LELI, Acácia Gardênia Santos. Casa Vermelha: A Antitese entre a pureza da infância e a exploração sexual no Filme Anjos do Sol. Derecho y Cambio Social, v. 11, n. 35, p. 42, 2014. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5472813> Acesso em: 16 de novem. 2023.

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A Máquina de Moer Mulheres: Política, Produção e Estética na Pandemia

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“A máquina de moer Mulheres – política, produção e estética na pandemia (2023)”é um livro organizado por Gleys Ially Ramos dos Santos, geógrafa, mestra em Desenvolvimento Regional. Doutora em Geografia. Organizadora do Livro Mulheres Emparedadas – Confissões da Pandemia. Professora do Curso de Relações Internacionais (UFT). Coordenadora do OUTRAS Observatório Transdisciplinar em Feminismo, Política e Métodos (CNPq-UFT) e Juliete Oliveira, mãe, poeta, educadora ambiental, ativista dos direitos humanos, parte da memória de um lugar chamado Araguaia. Escreve como um ato de subversão e para alcançar uma respiração possível em conjunto com outras mulheres. É um livro colaborativo escrito apenas por mulheres.

“A máquina de moer Mulheres – política, produção e estética na pandemia” é uma coletânea de escritos que reúne mulheres envolvidas no movimento feminista, bem como na produção literária e na teoria feminista. A teoria feminista, como seu foco central, aborda a presença das mulheres tanto como objeto de análise quanto como construtoras dessa análise, sempre considerando as complexas interações entre as mulheres e a produção intelectual. A ação de reunir mulheres para escrever e contribuir para essa coletânea é, em si mesma, uma prática que visa transformar a realidade atual.

O livro reúne as visões de autoras que, além de serem escritoras, também são pesquisadoras. Elas consideram a pesquisa como uma investigação prática que se baseia nas situações cotidianas que cercam as pessoas. A metáfora da “máquina de moer mulheres” é utilizada para discutir questões de política, trabalho e estética em meio à pandemia, uma realidade que se tornou ainda mais desafiadora devido à propagação do vírus. O foco do livro está na violência, abordando todas as suas manifestações perversas, como uma representação concreta do poder. Em outras palavras, o livro analisa como as mulheres estão sujeitas a diversas formas de poder opressivo e como a pandemia agravou essas situações, utilizando a metáfora da “máquina de moer mulheres” para ilustrar essa realidade.

No prefácio, Kassandra Muniz faz um resumo sobre a realidade das mulheres durante a pandemia, e em como ela deturpou os planos e consumiu o tempo de todas. E como tal fato foi intrigante, dada a questão que passamos muito tempo dentro de casa. Portanto, surge a questão: a pandemia é a causa disso, ou a máquina que desgasta as mulheres já estava em funcionamento há séculos? Preparar refeições, participar de reuniões e, ao mesmo tempo, cuidar das responsabilidades acadêmicas dos orientandos, enquanto auxilia na educação da filha, não é uma novidade.

Os textos apresentados abordam mulheres que perseveraram apesar das adversidades. Isso evidencia que existem inúmeras dificuldades e desafios, mas, ao mesmo tempo, uma multiplicidade de papéis protagonizados por mulheres. A habilidade de se reinventar destaca a influência e a presença das mulheres no mundo.

Os textos mencionados no livro tratam de mulheres que perseveraram apesar das adversidades. Isso evidencia que existem inúmeras dificuldades e desafios, mas, ao mesmo tempo, uma multiplicidade de papéis protagonizados por mulheres. A habilidade de se reinventar destaca a influência e a presença das mulheres no mundo.

O objetivo do livro e do nome é estreitar laços e estar mais em sintonia com os desafios que as mulheres enfrentam, desafios que poderiam ser resolvidos caso as instituições atuassem como parceiras comprometidas com a equidade e a justiça social. Nesse contexto, o livro parte da exposição de que esses espaços ainda não demonstram solidariedade com as diversas formas de opressão que as mulheres enfrentam simplesmente por serem mulheres.

No geral o livro fala sobre como o sistema de produção e reprodução social no capitalismo explora a mão de obra desvalorizada das mulheres. A ideia de que as mulheres conquistaram grandes cargos, mesmo que em proporções limitadas, é frequentemente apresentada como resultado da meritocracia, mascarando barreiras à mobilidade profissional feminina.

A máquina que mói as mulheres é a negligência para com as mulheres, principalmente aquelas afetadas pelo desemprego, subemprego, terceirização, sobrecarga de trabalho devido às jornadas triplas, aumento de mães solteiras e famílias solteiras por mulheres. É um sistema que destrói a existência de mulheres, e o livro detalha várias nuances que acontecem nesse sistema opressor.

REFERÊNCIA:

DOS SANTOS, Gleys Ially Ramos; OLIVEIRA, Juliete (orgs). A máquina de moer Mulheres – política, produção e estética na pandemia. EDUFT. TO 2023. Disponível em: <https://ww2.uft.edu.br/index.php/ultimas-noticias/33063-maquina-de-moer-mulheres-uma-coletanea-que-amplia-a-voz-feminina>. Acesso em: 29 set. 2023.

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São Tibira, indígena, homossexual e o primeiro corpo a ser esmagado pela homofobia no Brasil

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 São Tibira, o primeiro caso de homofobia registrado no Brasil

“Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino, minh’alma cativa. Rompi tratados, traí os ritos…”  Secos e Molhados – Sangue Latino

Em 2014, o antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), uma ONG que historicamente tem produzido dados sobre a discriminação contra a comunidade LGBTQIAP+ no Brasil, lançou um livro intitulado “São Tibira do Maranhão – 1613-1614, Índio Gay Mártir”. Este livro acendeu a luz para que enxergássemos a figura, até então, desconhecida: Tibira do Maranhão.

Tibira do Maranhão, um indígena pertencente à etnia tupinambá, foi executado em 1614 por causa de sua orientação sexual, especificamente por ser homossexual. A decisão de condenar a morte foi tomada por líderes religiosos católicos que estavam em uma missão no Brasil naquela época. Um desses líderes foi o entomólogo francês Yves d’Évreux (1577-1632), um frade capuchinho que colonizou o Brasil. D’Évreux detalha a execução de Tibira do Maranhão em seu livro intitulado “História das Coisas Mais Memoráveis ​​Acontecidas no Maranhão nos Anos de 1613-1614”.

Desde então, Luiz Mott tem trabalhado incansavelmente para aumentar a visibilidade desse episódio. Ele teve apoio de um líder religioso que vem de uma visão cristã independente, o arcebispo primaz da Santa Igreja Celta do Brasil, que expressou seu reconhecimento pelo martírio e pela santidade de Tibira do Maranhão. Desde que seu livro foi publicado, Mott liderou uma iniciativa para que Tibira do Maranhão fosse reconhecida não apenas como mártir, mas também como uma figura santa, assim iniciando o processo de canonização. Em 2016, as autoridades do Maranhão marcaram esse reconhecimento ao inaugurar uma placa em homenagem a Tibira na Praça Marcílio Dias, localizada em São Luís.

Uma pesquisa realizada com base nos dados do Sistema Único de Saúde (SUS) evidenciou que a cada hora uma pessoa LGBTQIAP+ é agredida no Brasil. Entre o período de 2015 e 2017 analisou-se esses dados, 24.564 notificações de violências contra pessoas da comunidade foram registradas, o que entende-se que, em média, são mais de 22 notificações por dia, ou seja, quase uma notificação por hora (PUTTI, 2020). São Tibira foi, infelizmente, o primeiro caso de homofobia registrada no Brasil, sendo um indígena morto pelas mãos de um colonizador de forma bruta, por sua etnia já era considerado por eles um ser sem notoriedade e por sua orientação, o mesmo foi condenado à morte.

Falando de identidade sexual é importante falar sobre a cisheteronormatividade, a qual é responsável por tentar ditar qual a identidade sexual e de gênero é a correta, a conformidade à cisheteronormatividade advém de uma visão do mundo cristão monoteísta (ORNELAS, 2021). Com a história do São Tibira vale analisar a colonização das sexualidades, que pode estar relacionada a dispositivos políticos, ideológicos, raciais, econômicos e científicos que estão profundamente entrelaçados (FERNANDES, 2017).

                                                                                  Fonte: Theodor de Bry/Reprodução

Cena descrita por Pietro D’Anguiera em “De Orbe Novo”, com Vasco Nuñez de Balboa assassinando o irmão de um cacique no Panamá e 40 de seus companheiros por estarem vestidos de mulher, em 1513.

Esses mecanismos afetam várias comunidades (rurais, urbanas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, entre outras) por meio da imposição da cisheteronormatividade, que é uma parte integrante da estrutura de poder colonial que molda as normas morais e familiares, bem como a divisão de papéis de gênero no trabalho. Nesse contexto, é crucial entender que a sexualidade desempenha um papel fundamental na compreensão da dinâmica colonial, abrangendo questões que vão além do âmbito estrito do sexo, como casamento, laços familiares, vida doméstica, alianças políticas, habitação e outras mais, não sendo fechado ao sexo, estrito senso (FERNANDES, 2017).

A cisheteronormatividade e a imposição compulsória da heterossexualidade, instaladas durante o período da colonização europeia, estão enraizadas em discursos e práticas religiosas, políticas e civilizacionais que se baseiam em fundamentos científicos, teológicos e socioculturais (FERNANDES, 2017). Esse processo de colonização e imposição de uma cultura dominante afeta diretamente os corpos e as identidades sexuais, planejando estabelecer uma norma moral baseada no modelo de família cristã binária e hegemônica, criando assim dinâmicas de exploração e subordinação como meio de manter o poder e preservar a cultura branca, patriarcal e heterossexual da era moderna/colonial (FERNANDES, 2017)

A colonização sexual afeta diretamente a vida dos povos originários, já que os mesmos eram obrigados a seguir as idealizações colocadas por colonizadores, como forma de apagarem suas identidades. Em uma entrevista para à Rádio CNN, Danilo Tupinikim afirma que “é sempre importante pensar no quanto a colonização afetou os povos indígenas, e com questões de gênero e sexualidade não foi diferente”.

                                                                               Fonte: Yasmin Velloso/Mídia NINJA

Povos indígenas e LGBTQIAP+ enfrentam batalha dupla contra o preconceito

O processo de colonização imposto às comunidades indígenas representou um esforço deliberado de implementação de um ‘projeto de civilização’ que envolve a negação e a destruição de suas visões de mundo e conhecimentos, abrangendo seus costumes linguísticos, hábitos alimentares, práticas educacionais, identidades sexuais, sistemas religiosos e todas as outras formas de convívio comunitário. Esse processo e projeto continuam a ter impactos significativos até os dias atuais. A perspectiva colonizadora, que se estende desde o mito renascentista do ‘bom selvagem’ até a desumanização dos povos originários, está profundamente entrelaçada com a religião cristã e sua ênfase no ‘puritanismo ocidental, que valorizava a virgindade, o celibato, o casamento e outros valores semelhantes (Trevisan, 2018).

A visão dos missionários jesuítas no Brasil foi centrada na percepção de que o corpo ameríndio era visto como refletindo uma natureza corrompida. A atenção primordial dos jesuítas recai sobre o corpo ameríndio, abordando questões como a cauinagem, a luxúria (incluindo a sodomia), a nudez, os rituais antropofágicos e a poligamia, entre outros aspectos. No entanto, para os jesuítas, essa intervenção não se limitava ao corpo físico dos indígenas, mas visava, sobretudo, à transformação da alma por meio do corpo (Fernandes, 2017).

A história de São Tibira do Maranhão, o primeiro caso de homofobia documentado no Brasil, serve como um trágico lembrete das profundas raízes da discriminação contra a comunidade LGBTQIAP+ e não só isso, como a colonização ajudou na dissipação da identidade sexual dos povos originários em nosso país. São Tibira do Maranhão está em processo de tornar-se um mártir para a história do Brasil e, de modo geral, que isso nos sirva como lembrete de que na comunidade LGTQIAP+ não existe apenas uma luta, e que há sujeitos com mais de uma luta que vai para além da homofobia.

REFERÊNCIA

 

FERNANDES, Estevão R. “Existe índio gay?”: a colonização das sexualidades indígenas no Brasil. Curitiba: Editora Prismas, 2017. 245p.

GARCIA, Amanda; VIDICA, Letícia; BRITO, Leticia. Indígenas da comunidade LGBTQ sofrem duplo preconceito. CNN Brasil. 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/indigenas-da-comunidade-lgbtq-sofrem-duplo-preconceito-afirma-ativista/>. Acesso em 13 setem. 2023.

ORNELAS, Gabriel Mattos. Se há LGBTfobia não há agroecologia: coletivos de juventudes LGBTQIAP+ e processos educativos sobre diversidade afetiva, sexual e de gênero. ReDiPE: Revista Diálogos e Perspectivas em Educação, v. 3, n. 2, p. 92-102, 2021. Disponível em: <https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/ReDiPE/article/view/1693> Acesso em 11 setem. 2023.

PUTTI, Alexandre. Um LGBT é agredido no Brasil a cada hora, revelam dados do SUS. 2020. Disponível em:<https://www.cartacapital.com.br/diversidade/um-lgbt-e-agredido-no-brasil-a-cada-hora-revelam-dados-do-sus/>. Acesso em 11 setem. 2023.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à

atualidade. 4ª ed – Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

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Debate acerca da vivência LGBTQIAP+ dentro do contexto universitário

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Nas universidades a verdadeira inclusão se concretiza quando se adotam práticas visíveis, como os programas de ações afirmativas, como as cotas. Além disso, essa inclusão depende de uma administração universitária que prioriza a gestão social, o que significa tomar medidas democráticas, igualitárias, participativas, colaborativas e diversas, com decisões que valorizem a solidariedade em vez de focar exclusivamente em aspectos econômicos, conforme Moreira (et al. 2011).

Ainda segundo Moreira, também é crucial promover a inovação social, por meio da criação de projetos que buscam integrar e dar oportunidades aos menos favorecidos. Todos esses elementos se baseiam em um modelo de ação comunicativa e dialógica, em que os envolvidos na ação reconhecem a importância dessas práticas e concordam com sua validade. Embora possa parecer uma utopia, essa abordagem tem o potencial de se tornar realidade com empenho e dedicação.

Em muitos cenários educacionais, ainda não estão adequadamente equipados para abordar as diversas manifestações da sexualidade. Com frequência, os preconceitos e a discriminação são perpetuados nesse contexto, quer de forma velada ou até mesmo de maneira explícita. Isso torna a permanência de indivíduos LGBT um ato genuíno de enfrentamento.

A inclusão deve ser um ato que promova o crescimento humano, organizacional e social por meio de um processo abrangente de compartilhamento de conhecimentos, valores e crenças. Isso implica em integrar as minorias através de práticas que levam em consideração as circunstâncias materiais reais em que vivem, e, ao mesmo tempo, evitar a reprodução dos estigmas e exclusões presentes na sociedade (Magalhães et al., 2017).

E para falar mais sobre a vivência LGBTQIAP+ no contexto universitário, o EnCena convidou Karen Oliveira, lésbica, jornalista e atualmente formada em Psicologia e atuante na área, fazendo uso da teoria Sistêmica e atuante da Terapia Afirmativa, que é para o público LGBTQIAP+ .

Encena: Sabemos que você agora é uma profissional de psicologia. Durante seus estudos, como percebeu a preparação dos futuros psicólogos em relação ao atendimento e apoio às questões específicas enfrentadas pela comunidade LGBT?

 

Karen: Pela minha experiência, no contexto acadêmico faltam debates, inserção de disciplinas focadas na temática e preparação científica. Apesar de sabermos que nas universidades que ofertam cursos de Psicologia há variação de grades curriculares, em geral elas abordam essa temática de forma superficial. Por exemplo, durante toda a minha graduação não foi falado sobre psicoterapia afirmativa, que é focada em pessoas LGBTQIAP+. O meu conhecimento sobre essa vertente foi resultado apenas de estudo próprio. A falta de visibilidade traz consequências negativas tanto para os estudantes, que serão futuros psicólogos, quanto para os que virão a ser seus pacientes. Portanto, ainda falta preparação a nível institucional e capacitação dos acadêmicos quanto a ferramentas, postura e ética no atendimento desse grupo minoritário.

 

Encena: Como mulher lésbica, você sentiu segurança para expressar sua orientação sexual durante os estudos universitários? Poderia compartilhar um pouco sobre sua experiência nesse sentido?

 

Karen: Em alguns momentos sim, mas, como já mencionei, esse debate foi muito raso dentro do ambiente acadêmico durante a minha graduação. Infelizmente, na minha vivência, em algumas situações, faltou acolhimento e não houve muito espaço e/ou visibilidade, causando estresse de minoria e potencialização de mecanismos de defesa.

 

Encena: À medida que você avançou na carreira, atualmente como psicóloga, você sente que a aceitação da diversidade sexual é mais efetiva nos ambientes profissionais do que nos contextos acadêmicos? Por quê?

 

Karen: Acredito que é difícil haver uma aceitação totalmente efetiva, visto que a construção social é heteronormativa e o Brasil é o país que lidera o ranking de mortes pelo crime de LGBTfobia. Há situações de homofobia em todos os espaços. Mas, talvez pela hierarquização institucional existente na universidade, quando existe o título de ser uma profissional, pode ser que haja mais respeito em alguns espaços, além da possibilidade de atendimento ao público LGBTQIAP+. Mas, ainda enquanto profissionais, infelizmente não estamos imunes ao preconceito e às violências.

 

Encena: Em sua opinião, quais são os principais desafios que as universidades ainda enfrentam quando se trata de garantir a inclusão e o respeito aos direitos LGBT?

 

Karen: Acredito que seja necessário as universidades desenvolverem mecanismos de acolhimento, inserção, inclusão, integração, respeito, validação e métodos para a permanência dos estudantes que fazem parte da comunidade. É importante que a temática seja trabalhada com professores, que sejam promovidas palestras, rodas de conversa e projetos que abordem a inclusão. Também há a necessidade da criação de mais disciplinas que falem sobre gênero e sexualidade e que haja, para além do papel, intolerância com os preconceitos que possam ser vivenciados.

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“Parece que não sou digna de amor”: a solidão afetiva de mulheres negras

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A solidão afetiva da mulher negra é uma realidade dolorosa e frequentemente invisibilizada, impactando suas conexões íntimas e amorosas.

“Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas “só corpo, sem mente”

Iniciando-se falando sobre a solidão, podemos dizer que a  solidão é um estado emocional e subjetivo caracterizado pela sensação de estar sozinho, isolado e ausente de cuidado de conexões com outras pessoas. É uma experiência comum que pode afetar qualquer indivíduo, independentemente de estar fisicamente sozinho ou cercado por outras pessoas. A solidão é frequentemente descrita como uma sensação de vazio, tristeza e desconexão.

A solidão pode surgir por diversos motivos, como a falta de relacionamentos íntimos, a ausência de apoio social, a perda de entes queridos, a separação de um parceiro, a mudança para um novo local ou até mesmo a sensação de não ser compreendido pelos outros .

É importante destacar que a solidão não está diretamente relacionada com a quantidade de pensamentos sociais que uma pessoa possui, mas sim com a qualidade dessas. Uma pessoa pode estar cercada de outras pessoas e ainda assim sentir-se solitária se essas conexões não forem expressivas, autônomas e satisfatórias.

A solidão, segundo Weiss (1973), pode ser entendida como uma resposta à falta de um tipo específico de relacionamento ou à ausência de um determinado provimento relacional. Em muitos casos, é uma resposta à falta de uma conexão íntima e pessoalmente próxima, mas também pode ser uma resposta à falta de amizades, relacionamentos colegiais ou outros vínculos com uma comunidade coesa. Com base nessas situações, o autor mencionado sugere que a solidão é uma resposta à deficiência relacional e, apesar das diferenças em cada experiência de solidão , existem sintomas comuns, o que permite considerar a solidão como uma condição singular.

Dentro do contexto da solidão, como foi dito, ela pode estar presente em diferentes âmbitos da nossa vida, então é válido falar sobre a solidão afetiva, sendo essa um tipo de solidão que pode estar relacionada a ausência ou a não completude nos aspectos emocionais e afetivos de um sujeito. Elas podem vir como sentimento de vazio, desconexão emocional e a falta de intimidade em relacionamentos pessoais, ou até mesmo a falta dessas relações.

Pontuando que a solidão é um fenômeno de caráter subjetivo e perpetua em vários aspectos do sujeito, faz-se necessário falar sobre suas dimensões dentro da vivência das mulheres negras, principalmente no que diz respeito à solidão afetiva das mesmas. As mulheres negras muitas vezes enfrentam desafios adicionais em relação à solidão afetiva devido às interseções de opressão racial e de gênero. Elas podem enfrentar estereótipos negativos, detectar raciais e dificuldades em encontrar relacionamentos íntimos e experimentar que levem em conta sua identidade racial e experiências específicas

Fonte: Alex Green/Pexels

A solidão afetiva tem efeitos profundos na vida das mulheres negras, afetando sua autoestima, saúde mental e emocional

No trabalho de Pacheco (2013), são discutidos os fatores presentes na sociedade, que foram historicamente moldados pela construção sociocultural decorrente do colonialismo no Brasil. Esses fatores incluem o racismo, sexismo e cisheteropatriarcado, que atuam como sistemas reguladores na sociedade, influenciando não apenas as relações sociais, mas também as subjetividades individuais e a expressão da afetividade sexual.

Durante o período colonial no Brasil, os senhores de escravos tinham o direito de propriedade sobre o corpo de suas escravas. Devido às restrições morais da época, que proibiam os senhores de sanar seus desejos sexuais com suas esposas brancas, eles escolhiam as mulheres negras para realizar seus desejos sexuais. Na literatura da época, as personagens negras eram frequentemente retratadas de forma estereotipada como anti-heroínas, e representadas de forma sensual, exibicionistas, moralmente depravadas, corpulentas e voluptuosas. Esses estereótipos racistas construídos de forma estrutural, foram capazes de criar uma imagem coletiva da mulher negra como sendo um objeto apenas para prazer e satisfação, despertando pouca confiança e, portanto, não sendo consideradas para o casamento, pois eram vistas como infiéis e estavam fora dos padrões de beleza certos pela branquitude (OLIVEIRA & SANTOS, 2018).

No trabalho de Pacheco (2013), são discutidos os fatores estruturais presentes na sociedade, que têm sido historicamente moldados pela construção sociocultural baseada no histórico colonialismo brasileiro. Esses fatores estruturais, como o racismo, sexismo e cisheteropatriarcado, atuam como reguladores na sociedade, influenciando não apenas as relações sociais, mas também as subjetividades individuais e a expressão afetiva. Essas estruturas se manifestam de forma tangível nas preferências afetivas dos indivíduos, resultando em repercussões em relação às preferências afetivas e ao acesso ao afeto. Isso indica quem tem o direito de fazer escolhas afetivas e quem é privado desse direito com base na questão da raça (VIEIRA, 2020.).

Nesse aspecto, a exclusão de certos grupos de mulheres como potenciais parceiras afetivo-sexuais é construída por meio da racialização da negritude em contraste com a não-racialização da branquitude. Essa diferença surge na vivência interseccional de raça e gênero em outros grupos femininos nesse contexto, destacando como as mulheres brancas são predominantemente preferidas nesses relacionamentos, o que contribui para a solidão das mulheres negras (PACHECO, 2013).

Fonte: Olayinka Babalola/Unsplash

A falta de um suporte sólido pode dificultar a superação desses obstáculos e levar a um sentimento de exaustão emocional.

A nossa sociedade é estruturada a partir de uma história escravocrata, sendo assim o racismo estrutural é presente e conceitua-se no sentido relacional e com isso, a sociedade julga quem é digo ou não de amor. Embora as escolhas afetivas parecem ser feitas apenas por preferências pessoais, a estrutura social também contribui para essas escolhas (OLIVEIRA & SANTOS, 2018).  Então, a afetividade é como se fosse direito apenas às pessoas brancas, já que ela é bastante vivenciada, enquanto pessoas negras estão existindo dentro de uma negação por conta da opressão racista dentro do campo afetivo-relacional, e assim podendo ser fator adoecedor. E a negação de amor para com pessoas pretas em detrimento da branquitude, pode afetar diretamente na autoestima dessas pessoas (VIEIRA, 2020).

E dentro desse contexto, as mulheres negras, são submetidas as várias dimensões sociais intersecionais, sendo obrigadas a enfrentarem os sentimentos de aversão a si mesma e solidão em detrimento do racismo estrutural (VIEIRA, 2020). E nisso, o corpo negro também é alvo disso, sendo concomitante para escolhas afetivas, nisso a forma como a estética do corpo da mulher negra é percebida, principalmente por meio de características fenotípicas, é atravessada por diferentes representações sociais que perpetuam conceitos e estereótipos racistas e machistas. Existe uma idealização do outro como belo, agradável e desejável, que se baseia nos padrões estabelecidos pela branquitude (SOUZA, 1983).

Discutir sobre mulheres já é abordar tópicos frequentemente negligenciados, porém, ao direcionar a atenção para as mulheres negras, percebe-se que a dívida histórica é ainda mais profunda do que se pode imaginar. A história revela uma triste realidade de estigmatização e marginalização das mulheres negras, nas quais sua humanidade e individualidade foram negadas e suas experiências afetivas diminuídas.

 

Referência:

OLIVEIRA, Ilzver de Matos; SANTOS, Nayara Cristina Santana. Solidão tem cor? Uma análise sobre a afetividade das mulheres negras. 2018. Disponível em: <https://www.lareferencia.info/vufind/Record/BR_34bb4dcb1c269c2a1c23385965008d37> Acesso em 30, de maio, 2023.

PACHECO, Ana Claudia Lemos. Mulher negra: afetividade e solidão. Edufba, 2013

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro, ou, As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social . Graal, 1983.

VIEIRA, Camilla Gabrielle Gomes. Experiências de solidão da mulher negra como repercussão do racismo estrutural brasileiro. Pretextos-Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, v. 5, n. 10, p. 291-311, 2020. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/22458> Acesso em 31, de maio, 2023.

WEISS, Robert Stuart. Loneliness: The experience of emotional and social isolation. Cambridge MIT Press, 1973. 263.

 

 

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“É obrigação sua ter relações sexuais com seu marido”: estupro marital; o inimigo dorme ao lado

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“Eu tinha falado que não queria, e que estava cansada aquela noite, mas ele já foi tirando minha roupa e tudo bem, né!? Temos que fazer sacrifícios no casamento.”

Segundo Oxford Languages, marital é um adjetivo relativo ao marido, ao que se refere o estado matrimonial. No passado, muitas sociedades consideravam o casamento como uma forma de consentimento permanente para o sexo, onde as mulheres eram consideradas propriedade dos maridos. Nesse contexto, a ideia de estupro marital não era reconhecida, uma vez que se acreditava que o consentimento para o sexo era implícito no casamento. A representação da figura feminina ao longo da história frequentemente refletiu dinâmicas de poder que resultaram em um contexto de controle e submissão da mulher em relação à figura masculina.

Ao longo das antigas civilizações, observa-se um padrão no qual os homens ocupavam papéis de destaque no cenário político, social e até mesmo nas relações familiares, enquanto as mulheres eram frequentemente relegadas ao âmbito familiar. Essa dinâmica patriarcal contribuiu significativamente para a disseminação de preconceitos contra as mulheres, que ainda persistem nos dias atuais. Essa cultura do estupro, presente no imaginário de indivíduos que cometem esse ato perverso, reflete a visão distorcida de que a vítima deve ser subjugada aos desejos insidiosos do agressor, servindo como alimento para sua libido e satisfação pessoal (ROSA, 2019).

O estupro marital entende-se como o ato de violar a dignidade sexual da esposa, em que ela é submetida a um ato sexual não consensual, sendo forçada ou coagida pelo seu marido a realizá-lo contra sua vontade. Nesse contexto, a esposa tem seu direito de escolha negado, resultando na violação de sua dignidade sexual (BOTELHO; DE REZENDE, 2023). Um exemplo disso é uma cena na novela Vai na Fé, produzida pela rede Globo, onde Theo, um dos personagens principais, tem relações sexuais com sua esposa, Clara, mesmo ela não estando confortável e dizendo “não”, e mesmo assim ele continua o ato. O estupro marital é presente em várias formas, na insistência, na tentativa de convencer após o “não” e todos os atos feitos sem consentimento.

As mulheres, especialmente as esposas, desempenham diversos papéis na sociedade moderna. Além de cuidar do lar, elas também são incentivadas a serem boas esposas, a trabalhar fora, buscar qualificação através do estudo e, ao mesmo tempo, serem mães. No entanto, a sociedade em que vivemos também as objetifica sexualmente, colocando-as como meros objetos de desejo, procriação e funcionalidade, e aquelas que não se encaixam em certos padrões são marginalizadas. Todo esse conflito de papéis resulta em colocá-las em situação de vulnerabilidade e tirando sua subjetividade (CARNUT & FAQUIM, 2014.)

Ao longo da história, o crime de violação tem sido uma realidade constante sempre que a sociedade o reconheceu como tal. Durante diferentes períodos, houve diversas formas de punir aqueles que o praticavam. No entanto, uma forma de estupro que ocorria de maneira mais dissimulada era a modalidade de estupro que ocorria dentro dos relacionamentos (TAVARES, 2020). Agressão como essa aniquila a dignidade, humanidade, a sua afetividade e saúde mental de uma mulher,  pondo em risco sua saúde mental e ameaçando sua própria existência (SANTANA, 2022).

Fonte:  M. /Unsplash

Muitas mulheres não reconhecem o abuso sofrido dentro do relacionamento

Dar lugar a esse discurso, é legitimar a violência sexual dentro dos relacionamentos, normalizando o estupro conjugal como algo aceitável ou até mesmo esperado, podendo impedir o reconhecimento da violência e, inclusive, desencorajar a vitima a procurar rede de apoio. Outra problemática enfrentada, é o fato do estupro marital não ser tipificado por lei.

É crucial estabelecer leis e políticas que reconheçam o estupro conjugal como um crime, independentemente do estado civil das pessoas envolvidas. Isso implica garantir que as leis sejam claras e abrangentes, permitindo que as vítimas denunciem o crime e obtenham justiça diante dessa forma de violência doméstica. Embora a Lei Maria da Penha tenha sido um avanço importante na proteção das mulheres contra a violência doméstica, o estupro marital não é tipificado no Código Penal, o que gera dificuldades para a efetivação da responsabilização dos agressores e até mesmo o reconhecimento deste tipo de violência (SERQUEIRA et al., 2022).

O estupro conjugal é uma violação dos direitos humanos e da liberdade das mulheres, negando-lhes a autonomia sobre seus próprios corpos e sua capacidade de consentir ou recusar relações sexuais. A ideologia patriarcal, que sustenta a noção de poder absoluto do homem dentro do casamento, contribui para a perpetuação dessa forma de violência. A desconstrução do patriarcalismo requer uma mudança profunda na mentalidade e nas normas sociais que perpetuam a supremacia masculina (TAVARES, 2020).

Fonte: Volkan Olmez/Unsplash

Quando seu corpo é invadido, sua alma é roubada

É fundamental romper com paradigmas culturais que dificultam a identificação do estupro conjugal, a fim de que esse crime seja denunciado de forma efetiva pela vítima e para que a sociedade compreenda que o marido pode ser o agressor nessa situação (JUNIOR et al., 2019). Em suma, o discurso patriarcal que impõe a obrigação da mulher de fazer sexo com um homem tem um impacto significativo na sociedade, perpetuando desigualdades de gênero e violação dos direitos sexuais das mulheres, é fundamental desafiar e desmantelar essas ideias.

 

Referências:

BOTELHO, Nara Vitoria Dias; DE REZENDE, Ricardo Ferreira. ESTUPRO MARITAL: VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE SEXUAL DA MULHER DENTRO DO CASAMENTO. Facit Business and Technology Journal, v. 3, n. 40, 2023. Disponível em: <https://jnt1.websiteseguro.com/index.php/JNT/article/view/2035> Acesso em 03, de junho, 2023.

CARNUT, Leonardo; FAQUIM, Juliana Pereira Silva. Conceitos de família e a tipologia familiar: aspectos teóricos para o trabalho da equipe de saúde bucal na estratégia de saúde da família. JMPHC| Journal of Management & Primary Health Care| ISSN 2179-6750, v. 5, n. 1, p. 62-70, 2014. Disponível em: <https://jmphc.com.br/jmphc/article/view/198> Acesso em, 03, de junho, 2023.

JUNIOR, Jacintho Jairo Granado Santos et al. Estupro Marital: A violação da dignidade sexual da mulher no casamento. FIBRA Lex, n. 6, 2019. Disponível em: <https://fibrapara.edu.br/periodicos/index.php/fibralex/article/view/116> Acesso em 05, de junho, 2023.

ROSA, Luana Mesquita da. A configuração do crime de estupro marital nas violências sexuais em relações conjugais. Direito-Araranguá, 2019. Disponível em: <https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/7599> Acesso em 03, de junho, 2023.

SANTANA, Annanda Elen Silva. Estupro marital? A mulher, as relações conjugais e o direito ao corpo. 2022. Disponível em: <https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/23584> Acesso em 03, de junho, 2023.

SERQUEIRA, Dielly Silva et al. ESTUPRO MARITAL: Uma violência ainda sem tipificação no Código Penal. In: Anais Colóquio Estadual de Pesquisa Multidisciplinar (ISSN-2527-2500) & Congresso Nacional de Pesquisa Multidisciplinar. 2022. Disponível em <http://publicacoes.unifimes.edu.br/index.php/coloquio/article/view/1653> Acesso em 05, de junho

TAVARES, Rosane Gomes. Estupro marital: a violência que se oculta no amor. Brasília. 2020.  Disponível em: <https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/14137> Acesso em 05, de junho, 2023.

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Bissexualidade feminina em um corpo não feminino: o impacto da heteronormatividade

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Eu me encontro e me desencontro, todos os dias. E nesses encontros eu me encontro e me desencontro para me (re)conhecer, sempre.

Nasci e cresci em uma cidade no interior do Tocantins, onde não existia muita diversidade. Eu nunca tive muito contato com o “diferente”, digo, pessoas com estilos diferentes, roupas, gostos, música, orientação sexual… não é como se não existisse essas pessoas “diferentes”, mas onde cresci eram poucas. Porém, quando eu as via, percebia o olhar repulsivo dos meus pais e do contexto social em que eu era inserida. Quando falo isso, lembro de alguns episódios que vivenciei durante minha infância pois  eu não entendia aqueles olhares, muito menos via algo de “errado” nessas pessoas. Mas eu, enquanto criança, em alguns momentos, identificava os comportamentos preconceituosos, apenas não entendia o que era o preconceito.

Desde que me entendo por gente, sempre soube que gostava de meninas e meninos, aquela paixãozinha de querer pegar na mão, sabe!? Até uma certa idade não via “problema” em querer pegar na mão de uma garota, assim como eu queria pegar na mão de outro garoto, só que de alguma forma, mesmo sendo nova, eu reprimia certos comportamentos como, pegar na mão de alguma menina, e até mesmo menino, mas hoje consigo entender melhor o motivo.

Quando mais nova, gostava bastante de jogar bola, luta, brincar com meninos, não era – até hoje não sou (risos) – muito fã de vestidos, muito menos brincar de bonecas, então era comum receber certos olhares negativos e falas como “mas você podia se interessar mais por coisas de menina” ou “parece que você quer ser um menino”. São frases como essas e muitas outras que contribuíram para que eu fosse uma criança e adolescente mais reprimida, afinal, como assim uma garota não performa a tal feminilidade que a sociedade tanto impõe para o sexo feminino(?). É a pergunta que nunca precisou ser dita de forma literal, mas sempre ficou nos olhares, nas frases “inofensivas” e nas imposições no meu comportamento: “seja mais feminina!”.

Por essas e outras, deixei de lado essas “paixõezinhas”, afinal, eu era muito “esquisita” para pensar que alguém teria os mesmos sentimentos por mim. Assim, fui entrando na adolescência e pré-adolescência sem pensar nessa coisa de “eu gosto de homem ou de mulher?”. E adicionando o fato de ter crescido em um ambiente familiar religioso conversador, além de viver em uma sociedade machista, misógina, LGBTQfóbica, criei a consciência que “ser gay é errado”, “verdade” essa construída por olhares do Outro, contribuindo para o não pensar sobre mim.

Em relação a vestimenta e cabelo, nunca deixei de expressar quais eram meus desejos “quero cortar cabelo”, “não uso vestido”, “não uso salto”, “não gosto de sapatilha”… muitos desses não querer eram ignorados, e também, procuraram maneiras de “adaptar” meus gostos para que se adequassem mais ao conceito do feminino, como forma de burlar aquilo que viam de masculino em mim.

O momento em que voltei a pensar sobre isso e sobre mim – que para mim foi emblemático – foi quando, na televisão, assistindo a um programa que eu tanto gostava, em uma tarde, as duas apresentadoras do programa que eu assistia sem falta, que por sinal eram mulheres que eu admirava pelo estilo despojado, que aparentava ter uma identidade própria, deram um selinho. Assim, de graça. Minha mente entrou em colapso, pois, “porque elas fizeram isso?”, “que nojo, isso não é certo”, “mas por qual motivo aquilo era tão bonito?”. Aí então parei por alguns minutos, e me recordei daquilo que já havia esquecido, ou fingi que esqueci, da minha vizinha: que eu era apaixonadinha quando criança, das outras meninas que eu queria andar de mãos dadas no recreio… nesses poucos segundos (e foram poucos mesmo) me dei conta da razão do sentimento de pertencimento para com aquela cena que tinha acabado de ver, sensação essa que tentei burlar em alguns segundos.

Essa “performance” de gênero diz respeito sobre os papéis de gênero impostos pela sociedade para os sexos, homem e mulher, desde seu nascimento. Trata-se de comportamentos, atitudes e características que a sociedade atribui para cada sexo (FISKE, 2010). E esses papéis de gênero como forma de constructo são apenas estereótipos que reduzem homens e mulheres, contribuindo para a desigualdade de gênero e expressão do mesmo (CONNELL, 2009). E essas imposições de gênero estereotipados contribuem ainda mais para essas normativas sociais opressivas que limitam o potencial de indivíduos que não se colocam nesses padrões preestabelecidos.

Na época eu já tinha acesso à internet, então fui pesquisar quiz de perguntas: “descubra aqui se você é lésbica ou não”, eu nem sabia direito o conceito de “lésbica”, apenas o “sapatão” que no meu meio usavam de forma pejorativa para referir-se a mulheres que gostavam de outras mulheres, e essas mulheres sempre, de alguma forma, tinha algo “não feminino” em sua imagem. Elaborando melhor o desejo que por algum motivo eu havia esquecido, consegui – em um tempo até que curto – me entender como uma mulher que gostava de outra mulher.

Percebo que eu nunca tive, de fato, dificuldade em aceitar que gosto de pessoas do mesmo sexo e gênero. Acredito que nunca, felizmente, passei pela heterossexualidade compulsória, mas digo que fui e sou constantemente vítima da heteronormatividade. Eu sabia que gostava de homens, só que era confuso para mim de uma certa forma, como eu, uma mulher que não usava saltos, se pudesse, teria cabelo curto, não usava vestidos, acessórios delicados tidos como femininos, poderia gostar de homens? Até porque não era possível um homem gostar de uma mulher assim!

A heterossexualidade compulsória é determinada pela obrigação social da qual os indivíduos devam se identificar e envolver em relações heterossexuais independente de suas preferências pessoais (RICH, 1980). A heteronormatividade produz um grande impacto na construção da identidade de gênero e sexual dos indivíduos. A rigidez dos padrões comportamentais e expressões de gênero baseados nas normas impostas socialmente ligadas à heterossexualidade, limitam a liberdade individual e castram as possibilidades de expressão de gênero além das categorias binárias estabelecidas (CONNELL, 1987).

Então digo que daí começou o meu processo de aceitação. Por um tempo me entendi como mulher lésbica, já que eu tinha “trejeitos” masculinos e até mesmo era confundida com homem, então, não tinha como eu gostar de homem sendo “desse jeito”. Mas a performance do não feminino que nos é imposto não afetou apenas minha aceitação da minha bissexualidade, também afetou minhas relações com outras mulheres. Por não exercer esse papel, logo me denominavam como a ativa da relação, ou o homem da relação, no qual eu tinha que fazer o papel de dominadora, que dentro da heteronormatividade e nos padrões de papéis de gênero, é função do homem ser quem domina e a mulher a passiva, ou seja, as mulheres que possuem essa aparência socialmente mais feminina, dentro da relação com outra mulher, é denominada como passiva. Então me via obrigada a exercer esse papel e sustentá-lo em meus comportamentos, e assim minha identidade sexual e expressão sexual se tornaram vítimas das normativas heterossexuais.

Dentro dessa construção, que papel eu iria exercer dentro de uma relação com outro homem? O papel que esperavam de mim (e ainda esperam) é de um homem, então, juntando isso com a minha crença de que os homens não sentem desejo por mim, na minha cabeça era impossível uma relação como essa se desenvolver. Com o tempo, estudando e me permitindo conhecer pessoas novas, e me conhecer também, me entreguei ao que realmente era meu. Fui experienciando vivências com homens e com o tempo aceitei referir a bissexualidade como a minha sexualidade.

Hoje aceito bem minha bissexualidade e os meus desejos, mas o conceito de feminino, para mim, ainda é algo para se trabalhar. O impacto da heteronormatividade ainda se faz bastante presente na minha vida, e creio que será por um bom tempo. Junto a isso existe a invalidação da minha sexualidade, qual tenho que lidar diariamente, já que o meu feminino é antiquado para estar dentro do mundo bissexual, afinal, não tenho um “meio-termo” para facilitar a minha relação entre homem e mulher, “você deveria ser um pouco mais feminina, para estar com homem e mais masculina para se estar com uma mulher, ficando aí em um meio termo”. Frequentemente sou confundida com uma mulher lésbica por causa da minha aparência e dita como o “homem da relação”, e são questões que impactam na minha vida de maneiras quase impossíveis de serem ditas.

Finalizo o texto com uma citação de Judith Butler, do livro Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990), onde ela fala sobre o impacto da heteronormatividade compulsória na vida de homens e mulheres. A heteronormatividade tem uma grande influência na construção dos papéis de gênero, colocando expectativas em homens e mulheres como forma de sustentar tal comportamento, servindo como forma de controle social. O gênero é uma construção social performativa, servindo como forma de questionar a ideia de categorização fixa em relação ao gênero. A heteronormatividade compulsória oprime a expressão de gênero e exige formalidade aos papéis de gênero binários e tradicionais.

 

Referência:

CONNELL, R. W. Gender: In world perspective. John Wiley & Sons, 2009

CONNELL, Raewyn W. Gender and Power: Society, the Person, and Sexual Politics. Stanford University Press, 1987.

FISKE, Susan T. “Venus and Mars or Down to Earth: Stereotypes and Realities of Gender Differences.” Perspectives on Psychological Science, vol. 5, no. 6, 2010, p. 688–92. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3652639/> . Acesso em 14 de maio, 2023.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.

RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 5, n. 4, p. 631-660, 1980. Disponível em: <https://transasdocorpo.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Compulsory-heterosexuality-and-lesbian-existence-2.pdf> Acesso em 15 de maio, 2023.

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