Reflexões sobre a Luta Antimanicomial: (En)Cena entrevista Paulo Amarante

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Em visita aos estúdios do CEULP/ULBRA, o professor e pesquisador da área da Saúde Mental, Paulo Amarante, conversou com a equipe do (En)Cena sobre as reflexões acerca de suas experiências na militância da Luta Antimanicomial. O resultado da conversa foi transcrita na entrevista abaixo. (En)Cenaram com Amarante: César Gustavo, Mardônio Parente, Victor Melo e Rodrigo Correia.

(En)Cena – Do ponto de vista epistemológico, se não devemos chamar o indivíduo de “louco” devemos chamar de que?

Paulo Amarante – O termo louco certamente causa nas pessoas uma estranheza porque tem uma conotação pejorativa muito forte. Indica, no senso comum, uma pessoa sem discernimento, sem juízo, associada à ideia de periculosidade.

Eu não posso dizer de que deve ser chamada essa pessoa, por não ter uma resposta universal. Mas posso dizer que ela não é só esse aspecto, ela é um indivíduo, é um sujeito. Mas sempre adjetivamos a pessoa por alguma característica biológica, histórica ou cultural, e uma das questões mais difíceis é nomear esse comportamento que nós definimos como “louco”.

Posso te dizer com certeza que substituir “louco” por “doente mental” não é a melhor opção. Porque aparentemente se está falando um termo científico, mas que não só mantém a mesma carga de significados que a palavra “louco” como reduz a complexidade da experiência desse sujeito. A loucura ainda é mais instigante, mais complexa do que falar que isso tudo que a pessoa tem é apenas um “distúrbio” ou uma “desordem” mental.

Mas certamente no campo epistemológico esse é um problema: nós nos sentimos mal com os termos, fazemos a crítica a estes mas não conseguimos encontrar termos substitutivos. E talvez esse mal-estar tenha de ser permanente, porque definir seria colocar uma “nova verdade”.

(En)Cena – Quando você traz o conceito de “pessoa” isso já representa um salto, talvez não humanitário, mas epistemológico? 

Paulo Amarante – Sobre a questão da humanização eu carrego uma opinião minoritária e muito pessoal. Desde o início do Humaniza SUS, eu fui um crítico não só da política nacional em si, que acaba sendo uma política que envolve muito pouco os sujeitos da ação da humanização: os usuários do SUS.

Fica como uma iniciativa que parte dos técnicos para sujeitos passivos. E em nome da humanização se colonizou, se dizimou populações, além das violências que se fizeram em nome de Deus e do Humano. Mas a questão da “pessoa”, ou do “sujeito”, parece um deslocamento simples, mas ele é um dos pontos mais fundamentais de, primeiro, não reduzir o ser histórico a qualquer uma de suas características, incluindo aí o termo “usuário”.

Esse termo foi historicamente importante, usado pela primeira vez no âmbito do SUS para dizer sobre a pessoa que utiliza o sistema de saúde de uma maneira geral. E isso surgiu para evidenciar a participação da sociedade em um controle social desse sistema, o que acontece em um primeiro momento. Mas nós fomos assistindo a uma transformação desse papel social e o usuário passou, no âmbito da Saúde Mental, a ser uma pessoa com um tipo de transtorno ou doença e, no campo da saúde mental, esse termo acabou por substituir a palavra “paciente”. A pessoa que se apresentava como “paciente” agora se apresenta como “usuário” mas continua tendo uma relação com a doença.

(En)Cena – Esse termo, usuário, traz um sentido de proatividade, de quem toma para si algo ou alguma coisa. Porque esse termo foi ganhando um caráter de passividade?

Paulo Amarante – Primeiro que a perspectiva de que os cidadãos participariam e contribuiriam na gestão do SUS não funcionou. Ao mesmo tempo em que isso foi aprovado na constituição, as práticas políticas do Estado e dos governos foram contrárias a isso. As conferências são momentos importantes de produção de subjetividade, de práticas críticas e reflexivas, mas não são incorporadas como produção política.

E elas [as conferências] se tornaram uma farsa da ideia de participação social, os conselhos municipais e estaduais idem. Perdeu-se aquela ideia de que saúde é um processo civilizatório, é luta política, é garantia de direitos. Em parte foi por um desvio de rota da ideia da participação, que ficou descaracterizada como controle social e, por outra parte, por uma estratégia consciente de captura dos movimentos sociais que representavam os usuários.

Vê-se isso claramente com as ONGs que, de entidades que construíam pensamento crítico, construíam práticas alternativas ao Estado, passaram a fazer parte do Estado ou se tornaram meramente produtora de práticas que o Estado deveria fazer.

(En)Cena – Dentro de sua caminhada, você consegue identificar algum conselho do qual a saúde mental conseguiu se apropriar em termos de discurso ou operação?

Paulo Amarante – Sim, existem experiências. São exceções, mas existem municípios onde, por sua trajetória histórica, conseguiu-se fazer um movimento político. A mais histórica, e a primeira, foi Santos. Lá se construiu a primeira experiência de redução de danos e os dirigentes da prefeitura foram processados por distribuir seringas, por fazer trabalhos em espaços onde as pessoas poderiam usar, de alguma forma, algumas substâncias psicoativas.

Existem outras experiências, como em Campinas e também recentemente em Belo Horizonte. Mas ficaram experiências avulsas e isoladas e a política nacional não incorporou e hoje podemos dizer que nós temos menos controle social do Estado do que no início da retomada da democracia.

(En)Cena – A questão é da perda de valores coletivos da Saúde Mental? Na contemporaneidade, com o individualismo e a atrofia dos espaços e momentos públicos, perdeu-se a característica de valorizar conquistas como as que você citou?

Paulo Amarante – Não tenho dúvidas de que, quando o processo de reforma psiquiátrica começou, ele estava claramente incluído no bojo de um conjunto de aspirações, utopias, projetos de reconstrução nacional de um país mais cidadão, civilizado. Então, por tudo que nós passamos na ditadura, por tudo que nós passamos na luta contra a ditadura, nós que lutamos e sofremos represálias, nós trabalhamos para construir um país diferente.

Conseguimos fazer uma constituinte fantástica, conseguimos mobilizar as pessoas e o processo, na prática, não correspondeu ao nosso projeto de aspirações.

Por vários motivos nós fomos dominados por uma forma de capitalismo que não esperávamos na área da saúde. Hoje, qualquer empresário de saúde no Brasil é absolutamente favorável ao SUS, eles são defensores.

Eles, que falavam do SUS como uma agressão ao negócio deles, hoje, são os maiores defensores do SUS, porque eles ganham do SUS hoje o que eles não ganhavam sem o incentivo público. Então, enquanto nós ficamos preocupados com questões como matriciamento e discussões teóricas, não nos atentamos de que vivemos sob uma ideologia capitalista de prestação privada do serviço, onde os profissionais saem da universidade com esse ‘currículo oculto’.

No fundo, no que o cara pensa quando sai da faculdade? Que ele vai trabalhar no serviço privado, que ele vai ganhar muito dinheiro. Sérgio Arouca contou-me um episódio que ilustra essa mentalidade. Ele disse que largou a clínica porque, logo no primeiro plantão que ele foi fazer, um chefe de plantão chegou até a equipe, eufórico, e disse: “Consegui marcar mais uma amputação de membros inferiores na minha clínica particular” e todos comemoraram. E então o Sérgio chegou até o cara e falou “Pô, você deveria estar comemorando se tivesse conseguido evitar uma amputação”.

(En)Cena –  Onde não há “controle social do Estado” há “controle social pelo Estado”?

Paulo Amarante – Esse termo sempre foi criticado por isso. O conceito de controle social a partir de Foucault era essa ideia de que o Estado controlava a sociedade. Nós procuramos inverter: na prática, o controle social  que nós pretendíamos era de controlar as políticas e que não vingou por questões que citei antes, como o fato de que a frente conservadora, até por questões de ter mais recursos e possibilidades em relação à mídia, formação e produção de subjetividade, teve abrangência muito maior do que a gente conseguiu.

Mas, o que se vê hoje realmente é que vai aumentando o controle que o Estado exerce. Pode ser de maneira sutil, na figura das câmeras, de senhas, mas também de práticas mais tradicionais de controle social. E isso é curioso porque, nessa perspectiva teórica, poder-se-ia dizer que o Estado não precisa mais excluir fisicamente ninguém, na medida em que as pessoas estão excluídas porque não tem conta bancária, porque não tem crédito, porque não tem financiamento, porque não tem cartão, porque não tem senha e uma série outras formas de ingresso social.

Mas é curiosa a estratégia que o Estado vem tomando: a de uma ação de  intervenção na vida das pessoas, de reabrir espaço de internação e exclusão, de reabrir comunidades terapêuticas. Uma vez encerrando-se essa suposta epidemia do crack, esses espaços estariam disponíveis como espaços manicomiais. Porque essa onda da epidemia do crack não vai aguentar muito, como não aguentou a onda da heroína na Europa. A imprensa se interessa por um período, dá certa visibilidade, depois a imprensa muda de tema. O maior índice de violência que temos hoje é com o álcool e nós sabemos disso. É ele que promove a violência doméstica, no trânsito também…

(En)Cena – Essa intervenção do Estado, de forma física, vem aparecendo regularmente em ações de internações compulsórias. De que forma você enxerga isso?

Paulo Amarante – Eu acho que essa violência do Estado contra determinadas populações vulneráveis e fragilizadas, cuja justificativa pode ser o crack, pode ser a violência causada pela droga, ela tem um significado de retrocesso no âmbito político. Não esquecendo que, em 1988, a nossa constituição – como diria Ulysses Guimarães – foi cidadã porque ampliou direitos e garantias, mas nós estamos cada vez mais deixando de lado essas conquistas e fica cada um pensando no seu crescimento individual, no seu carro novo, em sua casa própria.

Foucault dizia que não há forma melhor de controlar as pessoas do que dar a elas um cartão de crédito. O crediário dá ao cidadão uma preocupação. Então ele se mantém ali, trabalhando para pagar esse crediário. Mas eu vejo muitas pessoas preocupadas com esse tema.

Fui à Escola Superior do Ministério Público da União e dei uma aula para juízes e procuradores públicos federais e depois fui à São Paulo, na Defensoria Pública, e de fato essas internações compulsórias são uma agressão à Constituição. Então, o que estamos vendo é um retrocesso político importante mas que pode estar ligado a um projeto econômico. Há um crescimento da classe média e há uma certa população que deve ser extinta, deve ser retirada do espaço público. No caso do Brasil, com a justificativa do projeto da Copa e da Olimpíada, coisa muito vista no Rio e em São Paulo, que eu acompanho mais, está ocorrendo uma higienização.

(En)Cena – Existe uma proposta de ‘recuperação de áreas’ dessas cidades que serve à essa ideia de higienização?

Paulo Amarante – Isso pode ser rememorado do início do século XX, com a questão da ‘Revolta da Vacina’. O que existia ali era um remanejamento da população pobre. Retiraram a população, o que ajudou no processo de criação das favelas, e a área ‘recuperada’ virou o grande centro comercial do Rio de Janeiro. Certas áreas foram (re)tomadas pelas populações: zona de porto, periferias e etc. Essas ‘cracolândias’, que é um termo já pejorativo, são como se fossem territórios produzidos propositalmente.

Militantes que trabalham com isso, como o Leonardo Pinho – de São Paulo, dizem que, antes do Estado entrar para demolir, reformar, refazer e vender para a iniciativa privada, nasce uma cracolândia, como se fosse uma zona de tolerância criada para depois o Estado poder chegar e se apropriar.

(En)Cena – Esses espaços, como você falou, de clínicas de recuperação de dependentes químicos que caminham para uma reedição dos manicômios, isso é algo já notado?

Paulo Amarante – Sim, e de formas exemplificadas nas clínicas rurais, que se assemelham muito aos hospícios-colônia, que tinham a ideia do trabalho terapêutico como trabalho moral, que antes era movido pela ciência e agora aparece regido pela fé. Uma das últimas reportagens que o Tim Lopes fez foi sobre as comunidades terapêuticas.

Uma das primeiras matérias que traziam denúncia de maus tratos, trabalho escravo, violência, tortura foi do Tim Lopes, que estava muito ameaçado com o fato de terem descoberto que ele havia se internado como usuário e, a partir disso, começou a registrar os abusos. E, curiosamente, saiu pouca coisa sobre isso. Logo depois, ele foi envolvido no episódio de que decorreu sua morte. Eu havia conversado com ele sobre a questão das comunidades terapêuticas e ele me disse: “Estou sendo ameaçado porque entrei, denunciei e tenho material rico sobre isso”.

(En)Cena – A reforma psiquiátrica chegou nos manicômios judiciários do Brasil?

Paulo Amarante – Muito pouco, mas chegou. Talvez esteja começando, mas com alguns trabalhos importantes. O caso mais emblemático é o PAI-PJ, de Minas Gerais, que foi uma experiência inovadora e inspirou outras experiências. Tem uma experiência em Goiás, tem outra em Salvador, Santa Catarina etc.

Existe uma circulação desses casos entre os juízes, que começaram a autorizar que os internos passassem a frequentar o CAPS, e muitos casos já foram reavaliados, principalmente depois daquele filme da Débora Diniz, “A Casa dos Mortos”. Então, acho que tá começando. Nós sabíamos que era difícil porque o sistema judiciário é mais conservador ainda do que o psiquiátrico. Eu fiquei muito mexido com o convite para dar aula na Escola Superior do Ministério Público da União, no sentido de pensar aonde nós chegamos com a reforma, tendo escuta em uma escola de magistrado que demonstrou interesse em ouvir.

(En)Cena – A partir dessas reflexões, qual o sentimento que fica sobre a Luta Antimanicomial?

Paulo Amarante – A reflexão que fazemos é “não está bom do jeito que está, mas se pararmos pode ficar pior”. Então, o importante é acreditar que é a nossa ação que mantém o patamar das conquistas que alcançamos. Se entregarmos os pontos, a coisa vai piorar.


Fotos: Samuel Leumas

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Você conhece a Política Nacional de Humanização (PNH) do SUS?

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O (En)Cena recebe equipe de coordenadores e consultores da PNH que explicam quais as diretrizes e como funciona essa importante ferramenta do trabalho em saúde.

Humanizar é preciso, mas como fazê-lo? O (En)Cena recebeu nos estúdios de rádio do CEULP/ULBRA, Terezinha Moreira, enfermeira, psicóloga e coordenadora da PNH para a região Norte; Jamison Nascimento, bacharel em educação física e consultor da PNH para o estado de Roraima e também Alexsandra Cardoso Souza, pedagoga e consultora da PNH para os estados do Tocantins e Amazonas.

Explicando a configuração da PNH e falando sobre a realidade do trabalho em rede na saúde, os três profissionais discorreram por temas que vão desde os fundamentos que criaram até as dificuldades encontradas ao percorrer o trajeto atual de consolidação da proposta de humanização. Confira abaixo a transcrição da entrevista:

(En)Cena – Terezinha, o que é a PNH?

Terezinha Moreira – É uma política destinada a fazer o aprimoramento do Sistema Único de Saúde (SUS), é uma política pública e como nós gostamos de dizer “de todos nós”, e essa política de humanização surge no Ministério da Saúde, em 2003. Um grupo de professores doutores, mestres, chega para escrever esse texto. A construção da PNH é uma construção coletiva, ela nasce inspirada na construção coletiva no sentido de ajudar, de contribuir com a consolidação com os princípios do SUS: acesso, equidade, universalidade… E ela traz também algumas diretrizes para que nos oriente até porque o paradigma da política é algo instigante. É um paradigma ético, político, estético…

(En)Cena – O PNH é apresentado como política e não como programa, por quê?

Terezinha Moreira – O SUS está “prenho” de programas, porque eu digo isso? Porque o programa ele tem um início, um meio e um fim. Um programa, se não cumprir essas etapas ele não alcança seus objetivos, isso é o programa, a grande diferença entre um programa e a política é que a política se coloca num macro, coloca-se muitas vezes no micro, mas se coloca no macro, e uma política pública, ela surge não pela essência ou pela força de recurso financeiro, a política vem pelo nosso compromisso a política vem pelo nosso engajamento, a política vem pela nossa militância, então é algo que nós defendemos e  em que, a cada momento mais, apostamos.

(En)Cena – A PNH prevê o sujeito como protagonista, o que isso significa?

Terezinha Moreira – Essa ideia que a política traz é algo fascinante para nós, a política quando ela chega ao SUS em 2003 e diz que o SUS é para produzir e cuidar de vidas. Essa questão do protagonismo é fundamental, porque a política nos traz uma compreensão e nós trabalhamos intensamente nessa direção, na produção de sujeito. Nós precisamos estar com os trabalhadores, gestores e usuários do SUS neste sentido. De que essa condição de “assujeitamento” não contribuiu para o aprimoramento do SUS, não contribui para o seu próprio processo de vida, não contribuiu para a abrangência daquilo que o SUS tem para oferecer. Se nós trabalharmos nessa direção de produzir sujeitos, nós temos a clareza de que esses sujeitos farão o protagonismo e terão autonomia de cogerir esse sistema.

(En)Cena – A PNH tem como prerrogativas elementos objetivos: melhoria das condições de trabalho, melhoria salarial, melhoria do ambiente de trabalho. Mas ele tem como princípios também questões subjetivas, fale um pouco do que é subjetivo dentro do que a Rede Humaniza SUS também trabalha.

Terezinha Moreira – Bem… O professor Gastão Vagner é quem mais trouxe essa ideia, dizendo que uma clínica se amplia quando ela incorpora a produção subjetiva que o sujeito traz. Então o sujeito vem com uma história e nem sempre essa história tem o sentido daquilo que ele vem buscar na saúde. Então diz o professor Gastão que uma clínica que não inclui a produção subjetiva dos sujeitos é uma clínica dada ao fracasso. E é exatamente esse movimento que a Política Nacional de Humanização, e é um movimento contra hegemônico, vem produzindo para que a clínica se amplie. E o que degrada o SUS é justamente ignorar que o sujeito produz um tanto de coisa que a essa clínica organicista não dá conta, como por exemplo, a ambiência. A engenharia e a arquitetura têm que entender isso, que nós não estamos aqui para os mega hospitais e arroubos não, mas sim para criar espaços onde essa subjetividade possa se dar.

(En)Cena –  Como lidar com o paradoxo da subjetividade? Como a política traz essa visão da necessidade de olhar para a subjetividade para os médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde?

Terezinha Moreira  – É como se tivéssemos que virar profissionais da saúde pelo avesso. Em primeiro momento deve-se reconhecer que a pessoa está em sofrimento, é diferente. A humanização não nega que o sujeito adoece, o que ela preconiza é as condições que trazem adoecimento para esse sujeito. Essa compreensão que a humanização vem articulando, vem tecendo entre nós trabalhadores do SUS para que a gente possa mudar esse cotidiano. E não de forma imperativa ou prescritiva, a clínica ampliada não é clínica de prescrição é clínica, como diz a Alexsandra, de inscrição, e isso é muito forte.

(En)Cena – Jamison e Alexsandra, como é para vocês viver esse desafio, de trabalhar como consultores do SUS e lidar com a questão da humanização?

Alexsandra Souza – A gente vem experimentando de uma política né? A gente vem teorizando e construindo uma política. Eu sempre falo que na PNH a gente é consultor, mas a gente faz um movimento e aí é quase uma militância. É a partir da implicação que a gente pode ser gestor do trabalho, e a gente pode mudar o processo de trabalho dentro do serviço com uma escuta ampliada, vendo o usuário não como uma doença mas como uma pessoa que pode estar nas relações, porque os dispositivos da PNH se estabelecem nas relações, nas relações de trabalho.

Jamison Nascimento- Primeiro, é a história de falar que o SUS não foi dado, é bacana a gente perceber como que entramos nesse procedimento da instituição do SUS. A política traz a característica da militância, pois o SUS ainda tá em movimento de disputa, o que temos hoje do SUS é o que a sociedade conseguiu com essa disputa. Trazendo pra questão do trabalho e do trabalhador acho interessante falar do campo do trabalho no mundo, pois é interessante pensar em nós como sujeitos (trabalhadores) fomos conduzidos a condição de objeto, então valorizar o trabalhador é reconhecê-lo como sujeito com vontades, desejos e necessidades.

(En)Cena – Sobre os marcos que o PNH tem conseguido como está a  efetividade deles no SUS ?

Terezinha Moreira – Eu acho que a gente não tá em busca de uma conquista fácil. Eu não tenho governabilidade para reduzir filas, por exemplo. Se eu não tenho governabilidade para tratar desses problemas agudos do SUS o que eu vou fazer então para a Política Nacional de Humanização contribuir para a redução de filas? Para contribuir para que a pessoa seja acolhida no sistema? Contribuir para que ela encontre medicação? Para que ela encontre um ambiente que acolhe? O que tem na política que tem com que a gente aposte que é possível alcançar isso? A questão do SUS não é uma questão de ausência de recurso, de dinheiro. Para mim o SUS tem uma questão que é de gestão desses recursos, em toda a dimensão, para mim não se reduz fila com isso, só com dinheiro é um conjunto de ações. Falo do treinamento, é preciso “formar formadores” e isso só é possível em um espaço democrático…

(En)Cena – Imagino que é um espaço de muita tensão também, não?

Terezinha Moreira – O Jamison colocou a questão da disputa, o SUS tem que disputar. Isso é uma radicalização, o acolhimento também é uma radicalização, temos que radicalizar para acolher. Acolher é receber as pessoas, ver o que tá acontecendo com essa pessoa e quais são os recursos que necessita esse atendimento. E isso tem um atendimento, um acompanhamento e uma avaliação…

Alexsandra Souza – Acho que isso se concretiza quando a gente faz uma proposta de trabalhar em redes, a gente percebe que tem que estar conversando e dialogando com outros serviços da saúde naquela região, pois tem várias pessoas que estão imbricadas nessa rede que estão nesse processo formativo do trabalho, não é só o hospital ou o ambulatório, mas também são as organizações, os movimentos sociais, as representações, as associações…

(En)Cena – Ainda hoje é difícil verbalizar tudo isso dentro dos serviços de saúde, expor e conversar sobre isso com os profissionais?

Alexsandra Souza – É duro.

Terezinha Moreira – É difícil sim. Por que o que é que nós desejamos? É que o gestor estadual, ou municipal, enfim, os gestores pudessem acatar para suas pastas essa proposta. O que não acontece…

Jamison Nascimento – Ou não é regra.

(En)Cena – Estão aí, como a Alexsandra falou, uma série de vontades políticas de muitos atores (as diversas organizações, os movimentos sociais etc.), então a PNH é uma política que tem que lidar com muitas políticas?

Terezinha Moreira – Vou exemplificar um pouco essa dificuldade, determinadas situações exigem enfrentamentos. Nós devemos fazer o enfretamento nos campos das ideias. Quando o gestor diz pra mim: “Terezinha, humanização é filigrana” ou “humanização é utopia” ou que “dá muito trabalho e produz pouco”.

Alexsandra Souza – Ou então pedem para que peguemos as pessoas que “dão mais bom dia e coloquem pra acolher”

Terezinha Moreira – E pensam: “pronto, humanizou”. Então isso traduz a nossa dificuldade, não é nada simples. Nós temos que fazer com que esses gestores, e toda sociedade na verdade, compreendam o tipo de humanização que nos queremos. E o que queremos é um novo jeito de fazer aquilo que estamos fazendo no SUS.

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Saúde mental na graduação em Psicologia – avanços e desafios

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O psicólogo e professor doutor Sérgio Seiji Aragaki, da Universidade Federal do Tocantins fala sobre o ensino da Psicologia e os desafios do acadêmico no território da saúde mental.

Sérgio Aragaki é Doutor em Psicologia Social (PUC São Paulo) e professor do curso de Medicina e do Mestrado Profissional em Ciências da Saúde na Universidade Federal do Tocantins – UFT.

Foto: Katiúscia Gonzaga

(En)Cena – Como trabalhar saúde mental (um tema transversalizado por questões sociais, políticas, econômicas), em um curso que tem orientação biologicista?

Sergio Aragaki – Se eu considerar que o curso de Psicologia tem se diferenciado ao longo das décadas e mais recentemente eu tenho entendido e acompanhado que esse caráter mais biologicista tem perdido um pouco a força, não tanto, mas tem perdido… Acho que tem diversas maneiras de trabalhar a saúde mental e acho que a melhor maneira é essa; transversalizando. Claro que saúde mental é um tema transversal e hoje a gente entende  saúde de uma maneira ampliada, como decorrente de vários determinantes. Por exemplo, saúde hoje implica em boa moradia, boa condição de educação, trabalho, alimentação, enfim ,saúde é resultante de várias coisas e , pra se ter uma boa saúde e consequentemente uma boa saúde mental a gente tem que ter uma boa qualidade de vida. Creio que trabalhar com formação em saúde mental é uma possibilidade que se faz também transversalizando saúde mental em várias disciplinas, não só focada em uma disciplina, é claro que a gente foca na disciplina de psicopatologia, por exemplo, mas eu sei que há outras possibilidades tais como os estágios, o próprio Encena, que eu acho muito bom, enfim há várias possibilidades de se trabalhar com saúde mental.

(En)Cena – O aluno que cursa psicologia sai preparado para trabalhar com a questão das doenças mentais ou é preciso outras especializações?

Sergio Aragaki – Atualmente a gente tem buscado, muitos autores têm optado por falar em portadores de transtornos mentais, não mais em doentes mentais, entendo que doença mental é um termo estigmatizante.

O aluno pode sair, ele deveria sair minimamente preparado para atuar no campo da saúde mental e não mais tanto focado a trabalhar com doenças, com patologias. Quando a gente fala de uma formação mais ampliada, é justamente, por exemplo, formar para o SUS, a gente sabe que a maioria dos psicólogos hoje em dia atuam primeiro no SUS, o grande mercado de trabalho da saúde é junto ao SUS. O que a gente tem visto então é uma melhoria na formação nas grades curriculares, uma preocupação das faculdades de psicologia e outras da área de saúde em melhorar essa formação mais voltada pro SUS, mais voltada para compreensão da saúde e não só das doenças. É obvio que quanto mais o aluno estuda, se ele faz aprimoramento, especialização, mestrado, doutorado, se faz outros cursos, se freqüenta congressos, enfim, tudo isso contribui pra uma melhoria, eu diria assim, minimamente eu considero que os alunos, claro, isso depende de cada experiência, de cada faculdade, cada curso, mas minimamente a impressão que tenho é que eles têm sido formados pra um inicio de atuação, e que deve ser, com certeza, cada vez mais melhorada.

(En)Cena – Em sua opinião, quais são às maiores dificuldades ou desafios para o aluno durante o curso?

Sergio Aragaki – Acho que depende de cada experiência, acho que as experiências são heterogêneas. Se eu considerar que o curso de psicologia é um curso que no meu entender deve levar muito a uma reflexão, a um posicionamento crítico diante da realidade, consequentemente o aluno tem que considerar as questões que são históricas, que são sociais, políticas, econômicas, então essa formação deve ser um pouco mais ampliada também, pra dar boas condições de formação para os psicólogos, seja em que campo de atuação eles forem trabalhar, não só na saúde, mas na área de trabalho, educação e daí em diante… Então, dificuldade é mais de conseguir articular e estar presente em redes que possibilitem esse posicionamento crítico, essa formação mais crítica.

(En)Cena – Fale de sua experiência como professor de psicologia. Quais as suas áreas de atuação profissional?

Sergio Aragaki – Eu sou professor no curso de medicina, e dialogo, sou apoiador da Política Nacional de Humanização… trabalhei durante muito tempo na área de saúde mental. Trabalho a partir da abordagem do Construcionismo Social em psicologia social que é uma vertente crítica em psicologia social. Já ministrei aulas de psicopatologia, hoje atuo no curso de medicina dando aula de psicologia para alunos de medicina e também no mestrado em ciências da Saúde.

(En)Cena – O que chama mais a sua atenção na Psicologia?

Sergio Aragaki – Vertentes brasileiras que vieram se fortalecendo a partir da década de 1980 aqui no Brasil, vertentes que questionam o cunho ideológico da profissão, que fazem com que a gente possa pensar criticamente, se posicionar de uma maneira mais coerente com a população brasileira, com aquilo que nós brasileiros e brasileiras precisamos e entendemos como uma melhor vida, uma melhor saúde, é o que me chama muita atenção na psicologia, pra além de uma psicologia que vai se voltar a um reducionismo psicológico, pra além de uma psicologia que vai se fazer no entendimento do individuo sem considerar de fato as questões históricas , sociais, políticas, econômicas, culturais. Nós temos aí uma ascensão e cada vez mais a possibilidade de um diálogo, de uma formação, de encontros tais como os da Associação Brasileira de Psicologia Social que se baseiam então numa postura latino americana e brasileira de formação em psicologia, e dentro disso, do campo da saúde como eu já disse, muitos psicólogos dialogando com sociólogos, antropólogos, economistas, historiadores, lingüistas, assistentes sociais e outras profissões pra compor então a sua própria formação chegando, inclusive, a questionar algumas fronteiras disciplinares e propiciando uma visão mais ampliada, mais coerente com a libertação, com a  produção de vida.

(En)Cena – Qual importância de discutir e ter espaços como o (En)Cena para tratar questões de saúde mental?

Sergio Aragaki – Creio que são fundamentais iniciativas como o (En)Cena por que se baseia numa postura ampliada, numa postura que percebe que a gente tem que trabalhar com saúde e não com doenças. A partir do momento que a gente trabalha com saúde é obvio que a gente vai trabalhar com doença, com sofrimento, angústias etc. Mas é fundamental  a iniciativa do (En)Cena pois tem essa possibilidade de um diálogo, de dar voz as diferentes pessoas e isso não tendo como marcador prioritário ter ou não ter um problema mental, mas escutá-las na sua diversidade, na sua multiplicidade e reconhecê-las  como cidadãos, cidadãs, acho que isso é  super louvável. Parabenizo.

(En)Cena – Para finalizar, deixe a partir da sua experiência alguma mensagem de incentivo, e/ou um conselho, e/ou sugestão, para os alunos de Psicologia, tanto para aqueles que estão iniciando o curso como para os que estão prestes a se formar.

Sergio Aragaki – A mensagem que eu deixo é pra gente reconhecer que a psicologia tem que ter um compromisso muito sério de melhoria das condições da população brasileira e pra isso é inevitável que a gente reconheça que a gente não é neutro, que as nossas teorias elas são interessadas, elas possibilitam ou uma melhoria da população ou simplesmente processos adaptativos e a conformação, a adequação à realidade, o que, nesse último caso, de adequação e conformação é muito grave, por que você perde a noção histórica do quanto a gente produz ativamente a cada momento a nossa própria história, as nossas  próprias vidas, e isso não sozinhos, mas coletivamente. Então o grande incentivo, a palavra que dou para os acadêmicos é poder de fato investir numa profissão que é séria e que é muito valorizada e que você possam se juntar a nós. (risos)

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Diferença no cuidado de quem ama

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Uma casa onde se observa pessoas conversando por todos os cantos, um ambiente calmo e harmônico, ilustrado de muitas cores nas artes expostas pelos cômodos (impossível não notar). Assim é a casa onde funciona o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Porto Nacional, a 60 km de Palmas(TO). O Centro é um serviço comunitário que tem como objetivo acolher pessoas que sofrem algum tipo de transtorno mental, em especial, os transtornos severos e persistentes, no seu território de abrangência.

O CAPS foi instalado na cidade no ano de1998 e atende hoje cerca de 220 usuários. A coordenadora Tânia conta que o local é similar a uma casa, que é quase impossível distinguir usuários, visitantes e funcionários.

Tânia Maria Rocha é coordenadora do CAPS da cidade de Porto Nacional há seis anos, e avalia sua atuação como algo desafiador. Formada em Psicologia pela Faculdade Católica de Goiás e mestre em Saúde Pública, a psicóloga já soma mais de 20 anos de experiência.

 

(En)Cena – O que é saúde mental?

Tânia – Se nós fossemos falar em saúde, seria qualidade de vida em tudo no sentido de se sentir bem, como praticar esportes, lidar bem com as pressões do dia a dia, stress, de você priorizar o lazer e uma boa leitura. Isso é saúde.  Já Saúde Mental não significa patologia, quando trabalhamos somente com o mental trabalhamos muito com transtornos e patologias, e acabamos esquecendo questões diárias que também estão ligadas a saúde mental. É você criar a alternativa de se dar bem com os desequilíbrios e perdas que nós temos, é a capacidade de ter mecanismos satisfatórios para lidar bem no decorrer da vida com os conflitos que surgem.

 

(En)Cena – Como é o atendimento do CAPS?

Tânia – O CAPS é um serviço de saúde mental. Fica até meio antagônico, porque nós lidamos mesmo é com doenças e transtornos mentais. O que é prioridade é a reabilitação psicossocial desse indivíduo que em algum momento de sua vida teve um desequilíbrio mental e procurou pelos nossos serviços. Dificilmente recebemos alguém que está bem, que não tenha um queixa, geralmente quem vem aos CAPS são pessoas que são trazidas por um familiar ou solicitam visitas. Recebemos também casos de alteração de pensamentos e agressividade.

Hoje, em função do aumento do uso de drogas, álcool e principalmente o uso do crack, nós temos uma realidade diferente, porque toda essa demanda nós atendemos hoje.  A nossa dificuldade é saber como atender e acompanhar, por conta da complexidade da dependência química e por ser um fenômeno social, cultural, econômico, e ter a ver com o modo de como o indivíduo se coloca diante do mundo e da dependência.  Como equipe, nós estamos sem pernas pra cuidar dessa questão, pois temos além do atendimento aos dependentes, outros casos com transtornos mentais graves e persistentes.

 

Atividade comemorativa:  Aniversariantes do mês – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – O objetivo do CAPS então é reabilitar?

Tânia – Sempre foi. O que é isso? É você trabalhar para inserção desse indivíduo na escola, na cultura, no esporte, no lazer, no território dele onde ele perdeu a capacidade de comunicação e contratação dentro do espaço em que está inserido, como a vizinha, o trabalho e sua própria casa. É como se ele perdesse a capacidade de se relacionar e ter afetividade. Um dos nossos grandes desafios como Centro, é essa recessão social, principalmente em casos mais graves, e também no mercado de trabalho que ainda não está pronto para receber pessoas que apresentam algumas diferenças. Quando falamos de reabilitar, não significa que voltará ao estágio de antes, o indivíduo sempre volta diferente.

 

(En)Cena – Nós sabemos que o CAPS não atende apenas a sua cidade, mas responde por uma região, quais as outras cidades que este atende?

Tânia – Além de Porto Nacional, atendemos outras 11 regiões. Antes nós atendíamos 21 cidades, com a abertura do CAPS em Dianópolis diminuiu.  Nós, por exemplo, atendemos o município de Mateiros, que segundo as reuniões de colegiados e gestores de saúde, eles argumentam que os valores nossos são mais parecidos e, por isso, é mais fácil eles resolverem as demandas aqui do que em Palmas.

 

Atividade:  Aula de violão – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – Os atendimentos necessitam de encaminhamento?

Tânia – Os outros municípios sim, pois nós temos que agendar por conta do deslocamento. Hoje, na cidade de Porto Nacional, nós passamos por um processo de desconstrução da figura do médico, e atendemos com a equipe de saúde mental com a justificativa que nem todos os casos é necessário o atendimento médico, e dessa forma hoje temos uma demanda espontânea sem a necessidade de encaminhamento.

 

(En)Cena – Qual a faixa etária para os atendimentos?

Tânia – Antes nós não atendíamos dependentes em álcool e droga, e hoje somos obrigados a atender pela demanda. Atendemos adolescentes e adultos em crise, mas não temos espaços lúdicos para o atendimento de crianças, quando há a necessidade de atender alguma, trabalhamos no ambulatório.

Antes atendíamos crianças com dificuldade de aprendizagem, mas por ser um trabalho que demanda tempo do profissional, onde este se envolve no contexto da escola e em todos os outros que envolve a criança, e também por trabalharmos com uma equipe mínima, não realizamos mais este tipo de atendimento.

(En)Cena – Qual a faixa etária que apresenta mais transtorno, de acordo com os atendimentos que realizam?

Tânia – (Tom de angústia e preocupação) Nós atendemos hoje viciados de 11, 12 anos de idade, que poderíamos considerar crianças, e adolescentes a partir de 15 anos de idade, e ao conversar com cada uma deles percebemos que acabaram por queimar a fase da infância ou até mesmo da adolescência. Muitos não surgem mais somente com a dependência química, trazendo associado a ela um transtorno psiquiátrico.

 

Atividade: Hidroginástica – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – E idade mais frequente?

Tânia – São os adulto-jovens, essa faixa etária que vai dos 20 até o início da fase idosa, a idade onde geralmente surgem os transtornos.

 

(En)Cena – Quais as características comuns desses atendimentos?

Tânia – Quando o usuário chega aqui no CAPS, ele é acolhido pela enfermeira, onde é feita a escuta da queixa e a avaliação do caso. Depois é feito o agendamento do atendimento domiciliar, que pode ser feito pelo médico, psicólogo, terapeuta ocupacional ou o assistente social. Após avaliação e traçado um projeto terapêutico para o paciente, onde verificamos a necessidade ou não de inserção do individuo no CAPS para um acompanhamento constante. Nós trabalhamos com três modalidades de usuários de CAPS: o não intensivo (3 vezes ao mês), o semi-intensivo (8 a 12 vezes ao mês) e o intensivo (de segunda a sexta). Nós avaliamos o grau de comprometimento e sofrimento psíquico, e não biológico.

(En)Cena – Quais as maiores queixas?

Tânia – O que mais vimos são transtornos de ansiedade e casos de depressão. Já indo para as patologias mais graves, nos deparamos com a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar, que é o TAB. Hoje nós encontramos muitos transtornos psiquiátricos causados pela dependência química. A depressão também tem crescido muito, e em todas as faixas etárias, que antes era mais comum em idosos.

 

Atividade: Oficina de Mosaico – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – A senhora consegue identificar uma causa que seja um fator predominante entre os atendimentos?

Tânia – Infelizmente quem vem ao CAPS tem uma condição socioeconômica horrível, vem de famílias disfuncionais no sentido de dificuldade de relacionamento, de comunicação, rigidez afetiva e muitas outras situações que nós assistimos. Não que as outras classes sociais não tenham transtornos, mas ainda existe um paradigma muito grande de se chegar ao CAPS.

Um grave problema que Porto Nacional enfrenta hoje é realmente a questão do álcool e das drogas. Hoje a cidade é tida como uma das maiores rotas de vendas, onde usuários de outras regiões vem comprar drogas aqui. Diante dessa situação gritante, surge a necessidade de criar alternativas de cuidados porque o CAPS sozinho não dá conta, e precisamos de uma rede.

(En)Cena – Então podemos apontar o crescimento dos atendimentos por causa do aumento da dependência química?

Tânia – Realmente tem crescido muito, e temos até que fazer um levantamento estatístico, mas encontramos muitas comorbidades psiquiátricas em função do uso e abuso do crack ou outro tipo de drogas. Mas os nossos maiores atendimentos são esquizofrênicos, e de depressão, que hoje acompanha muitos casos psiquiátricos.

Aqui não é muito comum atendermos casos de bulimia, o que tem a ver com a região. Se fossemos fazer essa entrevista em um CAPS de São Paulo, observaríamos uma demanda maior de casos pós-traumáticos, por conta da realidade e situações vividas nas grandes cidades.

(En)Cena – Quais as estratégias que o grupo do CAPS criou em busca de amenizar o problema da dependência química?

Tânia – A primeira coisa que nós estamos fazendo é estudar, pois nós éramos cheios de paradigmas, de medo, de preconceito. Todo mundo acha que dependente químico é bandido e que ele é assim porque ele quer.  Então, nós buscamos desconstruir os preconceitos internos, assim como fizemos em relação à loucura. Fazemos acompanhamentos, visitas domiciliares, se o paciente está preso nós vamos até ele, temos um grupo de álcool e drogas há muitos anos. Estamos buscando reestruturar ele e buscar parcerias com outros setores da sociedade. Conseguimos parcerias com ONGs e instituições não governamentais, como o grupo de canoagem, pois a prioridade de tirá-los daqui, pois é fácil pro profissional ficar trancado em uma sala atendendo, agora ir para fora onde as coisas estão acontecendo é o verdadeiro desafio.

 

(En)Cena – Agora falando um pouco sobre a história do surgimento dos CAPS, eu li que os Centros surgiram com a proposta de acabar com os manicômios, e trabalhar justamente a reabilitação social, que é do que acabou de falar. A senhora chegou a conhecer o trabalho de um manicômio?

Tânia – Cheguei a conhecer sim o Manicômio Adauto Botelho quando eu estudava na Faculdade Católica em Goiás. Era um horror, nós entrávamos morrendo de medo e olhando os tratamentos mais desumanos que alguém pode imaginar. Eu me lembro deles pelados, descabelados, jogados e sem nenhuma higiene praticamente.

Os manicômios foram criados para os donos ganharem dinheiro, e não para cuidar de pessoas e muitas vezes eram atendidas pessoas que não tinham transtornos graves, e pela forma que eram tratados acabavam perdendo a sua identidade e cidadania, pois não havia a escolha de querer estar lá ou não. Os pacientes que não apresentavam nenhum transtorno, com certeza passavam a ter, após os tratamentos.

Abolir esses tratamentos foi um grande avanço social. Eu não acredito em uma sociedade totalmente sem clínicas especializadas, não diria manicômio, mas tem situações que infelizmente necessitam de caso de internação.

(En)Cena – E como seria o atendimento dessas clínicas?

Tânia – Atendimentos diferenciados e especializados. Até pode ser hospital geral mesmo, que se crie uma ala e que se cuide deles lá, que é o processo que está sendo muito difícil de ser construído também, da época da reforma psiquiátrica. Não é reforma psiquiátrica no sentido de reformar a psiquiatria, mas no sentido de cuidado.

Então, os manicômios eram produtores de isolamentos, de mais sofrimentos, de loucura e dor. Eles não possuíam nenhuma troca afetiva. Nós costumamos falar que o CAPS é um espaço de lazer, de saúde de troca de afeto. Temos casos aqui que, a família relata, depois que o indivíduo passou a freqüentar melhorou o relacionamento com os familiares. E eles dizem que isso é porque aqui eles aprendem a ser bem tratados e assim conseguiram levar para o convívio. Graças a Deus, os manicômios acabaram, quer dizer, ainda existem muitos por aí e ainda acontecem muitas mortes, mas a maioria já fechou as portas.

 

(En)Cena – E como é a relação da equipe de saúde mental com os usuários do CAPS? Nós sabemos que quando falamos de atendimento mental muitos imaginam uma sala fechada onde é trabalhado o transtorno com sessões de longas conversas.

Tânia – O atendimento do CAPS é realmente diferenciado, para você ter uma idéia nós nem utilizamos muitos nossas salas. Aqui nós temos vários pés de manga, e geralmente os atendimentos são feitos lá mesmo, é onde também reunimos os grupos. Essa vivência de cuidado é bem aberta, mas é claro que existem casos de atendimentos que precisam de um contorno mais fechado.

(En)Cena – Vocês desenvolvem atividades artísticas também? Aqui ao nosso redor eu estou vendo diversos quadros de pinturas artísticas.

Tânia – Realizamos sim, várias oficinas como pintura em tela, pintura em tecido e bisqui. Esse ano nós temos uma artesão que está trabalhando muito com reciclagem, e dessa forma foram criadas várias coisas com jornal, revista, garrafas pet. Está faltando algo que mexa com a emoção, como teatro ou música. Infelizmente ainda não temos como contratar esses profissionais, mas estamos abertos a voluntários que queiram realizar esses trabalhos.

 

Atividade: Oficina de pintura – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

(En)Cena – A senhora consegue enxergar que há quebra de barreiras em relação aos usuários, o que normalmente difícil de conseguir em um consultório?

Tânia – Demais. Os pacientes do CAPS dificilmente vão a consultórios, geralmente eles já te puxam e conversam tudo. A não ser que estejam com muita angústia e muito sofrimento. É um trabalho construído na rotina, no dia a dia. Dos 220 que atendemos hoje, são pouquíssimos que levamos para dentro de consultórios.

(En)Cena – Eu percebo aqui um ambiente mais amigável, mais familiar.

Tânia – Nós buscamos passar justamente um ambiente de uma casa onde existem conflitos, trocas, existe afeto, regras, limites e a figura de autoridade que sempre tem em um lar. Eles chegam a confiar tanto que acabam por achar que eu tenho a solução para tudo (risos). Tentamos criar ao máximo um ambiente agradável e de liberdade.

 

Atividade: Torneio de dominó – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – Como é o convívio com a família?

Tânia – É muito difícil trazer a família para o nosso espaço. Os parentes só aparecem quando o caso está realmente grave. Quando vemos algum familiar telefonar, já sabemos que não é boa coisa, e isso eu vejo como uma falha nossa, pois, de certa forma, somos muito paternalistas. Nós pegamos os usuários e tomamos pra nós, querendo cuidar dele, e termina que acabamos não aproximando as famílias.

 

(En)Cena – Então o trabalho de atendimento se estende às famílias?

Tânia – Nós temos um grupo de família, ele é descentralizado, e acontece em três lugares da cidade de acordo com os pontos de localização das famílias, para não haver desculpas de distância. Existem famílias participativas, mas grande maioria não é. Eu sinto que com os filhos deles aqui, eles acabam por ficar aliviados e passam a tratar como uma desocupação do problema. Nas vezes que nos encontramos, eu percebo que é uma dificuldade de todos os CAPS, a questão da família lidar com a falta de informação da própria família e da sociedade em geral.

(En)Cena – Falando em informação, nos últimos anos a mídia vem abordando constantemente em novelas, seriados e filmes, por exemplo, questões que envolvem a saúde mental. Qual a sua opinião sobre a abordagem da mídia sobre o assunto?

Tânia –  Eu acho até positiva, é um desafio falar disso.  As falhas que vejo são poucas. Para o serviço e para os usuários é um ganho, pois está se ajudando a desmistificar a loucura, ajudando a mostrar que ela não é tão feia e que é possível sim viver com ela.  A mídia peca quando ela vai para os extremos, quando ela exagera. Em geral, eu sou a favor porque de certa forma ajuda a acabar com o medo da loucura, que é algo secular. É bom que a mídia use diversas abordagens e formas de comunicação, como o caso da violência doméstica, a pessoa de certa forma está sofrendo e gerando um monte de traumas que necessitam de tratamentos.

(En)Cena – A senhora consegue enxergar essas abordagens de forma educativa?

Tânia – Eu acho que não deixa de ser, porque trabalha a informação, desmancha preconceitos e paradigmas. Em certos momentos eu acredito sim, como a novela que tratou da esquizofrenia, deixou claro que não há cura e por mais que aqueles pais quisessem, só há evolução e controle. Tudo isso ajudou para que todos passassem a ver o esquizofrênico com outros olhos.

(En)Cena – Para finalizar, de todos esses transtornos e dificuldades que conversamos, qual seria o maior desafio da psicologia hoje?

Tânia – Nesse momento, não sei se em função não só do meu trabalho, mas também da mídia que está trabalhando bastante a questão da dependência química, eu acho esse o trabalho mais complicado e desafiador. Eles falam que um terço vai ficar na dependência, um terço recupera e outro um terço morre. Para a recuperação desse um terço que sobrevive sem o vício, necessita de tentativas com grupos de ajudas, comunidades terapêuticas, CAPS, e outras várias tentativas que não são apenas a psicologia.

O profissional da psicologia tem os limites dele, tem muita coisa que é do indivíduo. Entender a subjetividade da droga e o que ela representa na vida daquele indivíduo é um desafio constante.

O que me preocupa são as mulheres dependentes que acabam usando o sexo como troca, acabando por engravidar e gerar uma criação que pode vir a ter transtorno dentro desse cenário. A assistência a essas crianças também é um assunto bastante relevante, o que podemos fazer por essas crianças e adolescentes que estão por aí?

Eu como psicóloga, depois de mais de 20 anos de profissão, se você me perguntar que abordagem trabalhar com um dependente químico eu não sei te responder. Nós estamos trabalhando com tentativas.

 

 


Nota: texto originalmente publicado na Revista Laboratorio EU – www.revistaeu.blogspot.com – , do curso de Jornalismo do CEULP/ULBRA vinculada à disciplina de Produção Jornalística II – Revista orientada pela professora Jocyelma Santana.

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CAPS: do isolamento à desterritorialização

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O professor Victor Meneses Melo possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina e mestrado na área de Psicologia e Sociedade pela Unesp-Assis. Teve experiência de cinco anos trabalhando em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), na cidade Cândido Mota no interior de São Paulo. Atualmente atua como professor de psicologia no CEULP/ULBRA além de ser consultor da Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde. É um dos idealizadores do Portal (En)Cena. Nesta entrevista, ele fala de psicologia e desterritorialização.

Victor Melo, Psicólogo e Professor no CEULP/ULBRA. Foto: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Olá professor, primeiramente gostaria de agradecer pela oportunidade da entrevista e de ressaltar o quanto é importante alimentar a discussão sobre saúde mental. Bem, nesse semestre nós discutimos muito o tema desterritorialização, sobretudo da informação por meio da internet e é justamente nesse contexto que centramos essa entrevista. Com o advento da internet é sabido que novas doenças, inclusive mentais, surgiram, apresentando novos desafios para a medicina e também para a psicologia. Como você, sob a luz da psicologia, enxerga essa relação da internet com essas novas doenças?

Victor Melo – Olá Rafael, um olá também aos leitores do portal Encena. Eu não afirmaria de cara que a internet produz doenças; acho que ela modifica a noção do ser humano e algumas modificações são tão grandes que aí, sim, a psicologia chega a chamar de doença. A psicologia fala muito que a internet leva as pessoas ao ostracismo, uma individualidade exacerbada, e prejudica o relacionamento pessoal, mas não acontece necessariamente dessa forma, as redes sociais também promovem a interação, também promovem encontros. Enfim é um tema novo e acho que a psicologia não adentrou tão bem para falar dele, ainda há muito que estudar.

(En)Cena – As relações e o contato físico são outros conceitos que são redefinidos na desterritorialização. Diversos autores falam que essa geração, que cresce imersa nas tecnologias, é a geração Z. Falar para essa geração que um beijo pela webcam não é realmente um beijo ou mesmo que um namoro à distância, fomentado pela internet, não é de fato um relacionamento, é muito complicado. Como você enxerga essas relações sem o contato físico?

Victor Melo – São diversos autores e conceitos que tentam falar sobre isso, eu creio que, principalmente na década de 1990, a psicologia teve bastante esse discurso de que essa interação não é viável à saúde das pessoas, não colabora, prejudica a saúde mental. Eu, particularmente, tendo em vista minha profissão, sempre adotei essa visão, sempre achei que a tecnologia prejudicasse as pessoas, mas consigo ver hoje que possuía essa visão a partir de minha vivência moral. Penso que os encontros presenciais são bem mais ricos, importantes e formadores de vínculos sociais, do que os virtuais, mas hoje eu revejo minha posição com relação à tecnologia, não de achar que temos que conviver virtualmente. A convivência afetiva, o toque entre as pessoas, o beijo tem que ser dado de forma presencial, na internet você pode mandar um beijo, mas é diferente. Não acho que a internet por si só é prejudicial. Essa questão da criança não é nova na sociedade, esse embate de gerações eu vivi com meu pai: pra mim, videogame era tecnologia da época e que meu pai não entendia “como vocês gostam dessa coisa”, dizia ele. Mas hoje essa questão da tecnologia é tão presente que meu pai joga Playstation. É possível a gente se adequar, é possível na educação lidar com essa questão de que a criança vê o mundo de uma forma e de que nós vemos diferente. É possível os pais se perceberem que não falam a mesma língua dos filhos, mas buscarem entender o que os filhos estão falando. É possível se comunicar com a juventude a pesar de hoje ela possuir uma linguagem que, eu, por exemplo, estou defasado, não consigo entender.

(En)Cena – A internet é um ponto de convergência e, ao mesmo tempo, de desterritorialização das relações; isso também deve acontecer na psicologia. Como se dá isso na psicologia, é possível tratamento on line?

Victor Melo – Isso tem começado a se desenvolver na psicologia. Eu estava justamente esses dias conversando com uma colega sobre psicoterapia por email. Ela me explicava que você vende 10 sessões, e a pessoa tem direito a 10 respostas por email. Eu me considero bastante retrógrado, isso é novo pra mim, e tenho certeza que vou rever isso daqui uns tempos, mas eu acho que, como a psicologia se funda no vínculo, eu creio que a internet é um meio pra isso, mas não o principal, sem extremos. Eu mesmo já respondi email de pessoas que atendo, mas não acho que conseguiria atender só e somente só por email, não acho que seria atendimento, nem psicoterapia, não acho que seria uma técnica que eu usaria para produzir um vínculo. Mas é uma coisa que está acontecendo, vou ter que me rever porque é uma pratica que vai se tornar rapidamente freqüente.

(En)Cena – A tecnologia é realmente algo impressionante, é um fenômeno dominante que não há como ir contra. E assim foi com a internet, que hoje domina boa parte de nossas vidas. A importância da internet pode ser observada, sobretudo, na disseminação e na desterritorialização da informação. Sob essa perspectiva, na sua visão, qual a importância do portal (En)Cena?

Victor Melo – O (En)Cena é importante porque ele faz uma coisa que é a grande sacada da internet, ele dissemina, promove, alimenta uma discussão que tem ser feita, ele trata da saúde mental e permite divulgar experiências, relatos de experiências nos serviços em um meio de comunicação; isso torna muito mais públicas essas experiências e eu acho que têm que ser públicas mesmo. No começo eu me incomodava um pouco com essa questão porque, meu discurso, nas minhas aulas e nas minhas leituras, eu falo bastante do coletivo, do encontro, entre corpos, encontro vivo, e me envolvi com um projeto cuja base é a internet; então eu tive que me rever com isso. Mas eu acho que eu consigo pensar nessa contradição, nesse conflito, pensando que é uma baita de uma oportunidade de disseminar, alimentar a discussão sobre a saúde mental. Inclusive, sobre algumas situações que nós vivemos no cotidiano da saúde mental, só conseguimos superar se a discussão se disseminar, então acho que a internet é o meio mais eficaz pra isso.

(En)Cena – Saindo um pouco da internet, mas ainda na desterritorialização, pode-se perceber uma mutação no quadro da saúde mental. De uns anos para cá tomou conta o discurso antimanicomial e uma transferência dos serviços para os CAPS. Em vista disso e também de sua experiência no trabalho com CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), como se dá essa mudança de território?

Victor Melo – Os CAPS e as residências terapêuticas funcionam de forma aberta, diferente dos hospitais psiquiátricos. A pessoa tem o direito de ir e vir a hora que ela quiser. Não se trata de uma casa que vai tutelar o individuo. O CAPS funciona em um território muito mais próximo de onde o indivíduo vive os conflitos o que é uma diferença grande do hospital psiquiátrico. O CAPS tem essa característica de estar onde a pessoa mora e em conexão com outros serviços. O que diferencia do hospital também é que esse último se trata de uma estrutura isolada, acontece tudo lá dentro; depois que ele sai, ou ele volta ou acabou o vínculo.

(En)Cena – Então podemos entender o CAPS como um lugar bem mais propício por não ter a característica da “prisão” como os antigos manicômios?

Victor Melo – Sim, eu acho que a questão da prisão limita a questão de viver os conflitos; vivendo-se os conflitos, aumenta-se a possibilidade de arrumar outros caminhos para percorrer essa vida. Isolada dos seus conflitos, a pessoa não tem essa possibilidade de viver de formas diferentes aquela mesma problemática do dia-a-dia que é própria do cotidiano, que é da vida e que nos pede de mais, que nos pressiona. Acho que essa possibilidade de viver os conflitos, viver o sofrimento e ainda mantido nos conflitos é a possibilidade da vida, a pessoa se modifica a partir do momento que está sofrendo. Mas existem ocasiões em que a internação é necessária mesmo, contudo não é a regra, os CAPS se diferenciam por isso, não é centrado na internação.

(En)Cena – Essa questão da internação realmente é muito complicada, pois tirar o indivíduo das ruas é interferir nos princípios básicos do cidadão que é a questão da liberdade. Contudo, ainda sim existem casos extremos no qual a internação é necessária. Mas então como se dá essa decisão da internação?

Victor Melo –  É muito delicado esse tema. Os ideais são sempre radicais, mas se a gente for pensar no ideal da liberdade, no primeiro momento, é errado mesmo você internar sem o consentimento da pessoa. Mas eu penso, por exemplo, com pessoas que eu me deparei e que eu já participei de internações involuntárias, que se a pessoa não fosse internada ela se mataria, não ao certo, mas, se faz uma previsão, ou mataria outros, ou mesmo adoeceria fisicamente, sem um pensamento crítico sobre isso. Então, no cotidiano, é muito difícil a gente levar ao extremo os nossos ideais, nós fazemos muito isso na universidade. É muito fácil eu falar pra você que eu sou contra internação involuntária e que isso tem que acabar, mas no cotidiano eu me deparei com situações que eu, infelizmente, digo infelizmente por ser algo contraditório em mim, mas que eu concordei com a internação, pois eu prefiro ver a pessoa internada, mas daqui um tempo conseguir trocar uma idéia com ela, manter o vínculo e ajudá-la no que ela precisa pra se sentir melhor nesse mundo, do que vê-la fazendo algo contra sua saúde ou sua vida. Então acho que o mais importante nesse caso é que de fato essa decisão não seja particular de um profissional, não estou dizendo que outros profissionais devam assinar a internação, esse ato é do médico, mas que as condições disponíveis sejam feitas de forma coletiva, com opiniões de mais profissionais, da família, do indivíduo se possível, creio que essa forma de funcionar o serviço permite a gente pensar mais esse ideal.

(En)Cena – De fato lidar com algo tão complexo como o ser humano é uma tarefa muito difícil, contudo a psicologia se propõe a isso. E como a decisão de um só profissional é muito subjetiva e carregada de sua bagagem cultural, essa idéia de mais opiniões realmente parece atingir um patamar mais concreto e uma decisão mais próxima do que é justo.

Victor Melo – Fazendo assim, essa decisão permite colocar na mesa o que tem disponível para evitá-la. E evitá-la por quê? Primeiro pensando nesse ideal da liberdade, mas também pensando nessa especificidade.  Esse modo de decisão interdisciplinar ele permite não banalizar a decisão da internação, permite que ela seja mais cuidadosa e que antes dela possa haver outras possibilidades. A internação compulsória às vezes acontece sem uma devida avaliação, é deficitário, é algo demorado. Teve um caso que presenciei em que chegou a internação compulsória, a pessoa já tinha sido internada, estava refazendo tratamento, já estava com uma relação boa com o serviço e chegou internação judicial.

(En)Cena – É realmente muito complicado, o indivíduo de repente está no tratamento certo, no caminho certo para a uma melhora de vida e então chega a internação judicial. Nesse caso o médico não pode recorrer da decisão?

Victor Melo – Pode! Nesse caso, o que aconteceu foi que a médica pensou em assinar, porque é a praxe; nos serviços, as profissionais já estão lidando com tanta coisa que questionar o poder judiciário parece algo tão distante, apesar de possível. O que aconteceu nessa situação foi que ela não assinou, ela foi até sua equipe, que questionou a decisão judicial; ela sabia, era bem atenta ao projeto terapêutico, e sabia que a pessoa já tinha sido internada, que já tinha voltado a se tratar com ela, que estava estável. Então a equipe redigiu uma carta ao poder judiciário que foi aceita. Mas foi aceita porque o vínculo com as assistentes sociais desse meio eram bons, então elas mediaram isso.

(En)Cena – O problema é justamente essa praxe em assinar, então. Casos como esses poderiam acabar de uma maneira muito trágica.

Victor Melo – Sim, esse caso, talvez em outro canto, em uma equipe menos atenta, ele voltaria a ser internado.

(En)Cena – Você já trabalhou no CAPS Candido Mota, interior de SP. Lá você lidava com diversos casos de saúde mental, imagino. O CAPS apesar de garantir a liberdade ao indivíduo, querendo ou não, acaba servindo como um não-lugar, um local fora da sociedade no qual ele possa interagir, onde vai ser respeitado e bem tratado. Acredito que, dentro do CAPS, a pessoa deva criar um vínculo principalmente com o médico ou psicólogo que a trata. Então, qual seria um caso que teria te marcado muito?

Victor Melo – Então, um caso que me marcou muito foi de uma pessoa que tinha por diagnostico retardo mental grave com traços de autismo. Quando eu o conheci ele tinha em torno de 26 anos, obeso mórbido e que ficava 24h por dia dentro da casa dele, ele não saía. Então, você imagina a qualidade de vida dele, não interagia com outras pessoas além da família, era extremamente sedentário e não gastava energia. Na época que o conheci ele morava com o pai e a mãe e tinha umas manias de mudar os móveis dos cômodos; se ele colocasse na cabeça que tinha que tirar as coisas do quarto e levar para a sala, tinha que ser feito, se não ele ficava bastante agressivo. O pai e a mãe eram senhores, a mãe já estava bastante debilitada, e o pai já tinha em torno de 74 anos. Essa era a realidade dele, seus pais tinham dificuldade, a mãe era o alicerce da casa; apesar de, às vezes, ele a agredir, ela conseguia colocar um limite nele; já o pai tinha bastante medo dele. Contudo a mãe morreu e o pai teve que começar a rever sua posição de pai. Ele não era tão presente, mas passou a cuidar do rapaz. Então o pai começou a ir constantemente ao serviço pedindo a internação do sujeito. Diariamente, por umas semanas, praticamente, durante meses, toda semana, demonstrando-se muito cansado, mas não havia a indicação da internação. Ele não estava dando conta daquela situação, tinha muito medo, estava estressado, mas o estresse de um não justifica a internação do outro. O sujeito se comunicava por gestos, e em determinada visita que fizemos à casa dele, ele apontou para fora querendo dizer “quero ‘dá’ uma volta” e o pai traduziu pra mim o que ele queria, mas que a família não deixava porque tinha medo dele sair correndo. Tinha todo um fantasma em torno disso, andar na rua era uma coisa extremamente errada, perigosa. Eu não sei o que me deu, às vezes, a gente faz umas apostas que pode quebrar a cara ou pode dar certo, eu virei pra ele e falei,  “ô João (nome fictício) vamos combinar de ir até a esquina e a gente volta andando”. Ele fez que sim. O pai dele foi muito contra, mas eu insisti; então ele saiu do portão e titubeou porque ficou perdido, como se fosse um bicho, um gato saindo. “João lembra o combinado? Vamos ali, vamos andar”, eu falei. Eu estava com uma colega minha e ele seguia a gente: eu dava dez passos, ele dava dez passos… Quando voltamos para a casa, eu estava de carro, ele apontou para o carro, queria andar de carro; fomos. Durante o caminho, ele me guiava, apontava para virar, em determinado momento eu apontava para outros cantos e ele fazia que não, e indicava a direção oposta; então comecei a apontar o lado contrário do que eu queria ir, para ver se ele estava apenas me contrariando; era a última rua da cidade, eu apontei para uma direção e ele fez que sim. A rua terminava em um cemitério, no qual a mãe dele estava. E eu não sei até hoje se ele tem a noção do mapa da cidade ou o que aconteceu, mas então eu perguntei se ele queria ver a mãe; fez que não com a cabeça. Então perguntei se ele queria voltar, ele fez que sim. Na volta em nenhum momento ele apontou alguma direção. Depois disso comecei a levar ele para sair, andava com ele na praça, coisa que pra nós é básica, mas que para ele mudava a vida. Depois disso, ele começou a fazer coisas interessantes, começou a ir sozinho pra casa da irmã dele, uma coisa que não fazia antes… Esse caso marcou bastante pela intensidade da vivência.

(En)Cena: É realmente um caso bem comovente, mas ao mesmo tempo nós vemos o quanto foi arriscado, uma vez que é bem comum a agressividade em autistas. Havia chances de ele se rebelar, mas mesmo assim você fez a aposta e foi em frente, mas é justamente esse o trabalho do psicólogo, fazer o possível para o bem do tratamento. Mas, e no final ele foi internado ou não houve a necessidade?

Victor Melo: Antes de chegar nessa proposta, dos passeios, nós visitamos a casa dele com mais frequência depois que a mãe morreu, mas de fato foi uma aposta. E ele não chegou a ser internado, porque ele ia pra casa da irmã, então o pai ficava mais sossegado, a mania de mudar os móveis de lugar parou, porque a energia que ele gastava nisso ele começou a gastar nas caminhadas, colocou talvez uma perspectiva na vida dele.

(En)Cena: O portal EnCena agradece ao professor Victor Melo pela oportunidade dessa troca de ideias a qual é tão importante para alimentar e disseminar a discussão acerca da saúde mental. Essa conversa foi uma partilha de experiências sobre a saúde mental e os CAPS, tendo como plano de fundo a desterritorialização, mas é apenas o início desse câmbio de informações. Agora é ficar ligado no EnCena e retroalimentar o processo e a troca de conhecimentos.


Nota: texto originalmente publicado na Revista Laboratorio EU – www.revistaeu.blogspot.com – , do curso de Jornalismo do CEULP/ULBRA vinculada à disciplina de Produção Jornalística II – Revista orientada pela professora Jocyelma Santana.

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Perspectivas e Apostas: uma conversa com Tássio de Oliveira

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Psicólogo recém-formado pelo CEULP/ULBRA, piauiense de 22 anos, no Tocantins há 5 anos, Tássio de Oliveira recebeu o Portal (En)Cena para falar sobre o trabalho em Saúde Mental desenvolvido junto às comunidades indígenas no Estado do Tocantins, além de responder a questões ligadas a arte e outras formas de expressão e suas implicações.

Tássio de Oliveria em suas atividades. Foto: Rodrigo Gomes

(En)Cena – Sobre a Saúde Mental e a forma de enxergar e lidar com as questões contemporâneas dessa atividade, porque você buscou essa área e também quais suas impressões sobre o serviço em saúde mental hoje?

Tássio de Oliveira – Acredito que a idéia que se tem hoje em Saúde Mental, motiva não só a mim, mas a muita gente que aposta em uma idéia de que é possível tratar a pessoa com transtorno psicossocial sem necessariamente tirá-la do convívio com outras pessoas. Acho que isto é o principal atrativo hoje.

(En)Cena – Sobre os CAPS e essa nova abordagem como você enxerga a trajetória e a situação atual do serviço em Saúde Mental?

Tássio de Oliveira – Eu acho que o CAPS tá se tornando conhecido como um ‘novo lugar de louco’ mas o mais importante é que ele não está se tornando um ‘depositário de pessoas’ que é como ficaram tachados os asilos e outras instituições ligadas a Saúde Mental em outros cenários e épocas. É uma outra mentalidade que traz também uma outra forma de trabalhar, está sujeita ao mesmo processo mas traz algo diferente.

(En)Cena – Tássio, o trabalho de atenção em saúde mental voltado ao indígena mostraria algumas destas diferenças?

Tássio de Oliveira – As diferenças se dão na forma de trabalhar os elementos culturais. Deve-se respeitar o contexto de cada tribo, os costumes. Nas aldeias se verificam dificuldades da equipe realizar procedimentos de imunização por exemplo, ou de exames em pacientes do sexo feminino, o que tem de ser compreendido. A grande dificuldade talvez resida em ligar com outros problemas como, por exemplo, o consumo de álcool cada vez maior. Mas o conceito é o mesmo, cada indivíduo tem sua trajetória.

(En)Cena – Para você o que é trabalhar com saúde mental?

Tássio de Oliveira – Trabalhar Saúde Mental para mim é um movimento dialético de construção e desconstrução. É buscar formas de se expressar, é compreender que a figura do louco durante muito tempo foi o extremo da diferença e também durante anos foi alvo de discriminação e dizer para o mundo que as pessoas têm de começar a aceitar a convivência com pessoas com transtornos e admitir estas especificidades é que valoriza e compõe este trabalho.

(En)Cena – E o que te move dentro desse processo de construção e desconstrução?

Tássio de Oliveira – Para mim não importa onde estamos, seja em um serviço ligado diretamente a Saúde Mental ou em outro setor da sociedade, todos temos um compromisso com a sociedade em buscar transformar a realidade a partir de sua atuação, então buscar essa relação é algo que vem a partir deste pensamento.

(En)Cena – E o que você colocaria em evidência, literalmente em cena, hoje sobre Saúde Mental?

Tássio de Oliveira – Para mim as aproximações dos mecanismos culturais, políticos e artísticos da proposta que existe hoje para a condução da discussão sobre Saúde Mental, tudo pode ser entendido como maneiras de expressão e apreensão. Então considero que toda a proposta que agregue isto é bem-vinda e deve ser entendida não só como alegoria, mas como algo fundamental

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Rupturas e Encontros: Desafios da Reforma Psiquiatra Brasileira

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YASUI, Silvio. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro, 2006. 208p. Tese (Doutorado em Ciências na Área de Saúde) – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz – ENSP – FIOCRUZ.

Silvio Yasui escreveu a tese em questão a partir de seus encontros com a história da Psiquiatria Brasileira e as tentativas de rompimento com o modelo asilar. Esse trabalho se transformou em um livro, o qual está concorrendo o Prêmio Jabuti, na categoria Psicologia e Psicanálise, cujo resultado está previsto para sair no dia 18 de outubro de 2011.

A vivência do autor com o tema iniciou-se em seu segundo ano da faculdade de Psicologia, em um Hospital Psiquiátrico, onde ele começou a estagiar. Naquele momento, o modelo asilar era vigente e os asilos eram produtores de maus-tratos, silêncio, relações verticais e, por isso, reproduzia subjetividades seriadas. No entanto, o autor percebeu que os habitantes daquele lugar eram pessoas interessantes, com histórias intensas e, apesar de vez ou outra estarem em crise, eles mantinham contato pessoal e afetivo. Com a finalidade de que outras pessoas levassem em conta esse lado dos “loucos”, Silvio começou a ser militante no Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, o qual buscou romper com o modelo vigente (asilar) e propor outro, que mais tarde seria denominado de psicossocial.

Por meio de suas experiências, o autor percebeu que um novo rumo poderia ser tomado na história da Saúde Mental, a qual passou e passa por quatro âmbitos distintos, propostos por Paulo Amarante como dimensões da Reforma Psiquiátrica Brasileira e são elas: a dimensão Teórico-Conceitual ou Epistemológica, a Técnico-Assistencial, a Jurídico-Política e a Sociocultural. Yasui nomeia a penúltima dimensão de Política, pois acredita que as relações políticas e jurídicas se dão no mesmo contexto e o conceito de político abarca os dois.  Essas quatro dimensões mostram como se deram as propostas de transição do modelo asilar para o psicossocial a fim de produzir novas formas de cuidar.

Na Dimensão Epistemológica, Silvio convida o leitor a vivenciar as relações históricas que se deram a fim de modificar a lógica do serviço de Saúde Mental no Brasil. Ele começa a contar a história antes mesmo de se fazer participante desse processo, ou seja, desde o primeiro hospício brasileiro até aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Dessa maneira, tais vivências foram permeadas pela observação de maus-tratos, violência, uniformidade, lutas, muitas das quais permitiram chegar à situação atual. O contar a história da loucura no Brasil é muito rico, não só pelos dados históricos, mas para perceber como as pessoas portadoras de sofrimento psíquico foram tratadas durante anos, séculos. Além disso, permite que profissionais, secretários de Saúde Mental e, inclusive, a comunidade percebam as implicações das estratégias utilizadas para lidar com que foi só um “problema” a ser escondido e até esquecido. Se é que é possível esquecê-lo.

A dimensão Técnico-Assistencial remete às propostas a serem estabelecidas nas redes que se propõem a cuidar dos portadores de sofrimento psíquico e, ao mesmo tempo em que são desconstruídos conceitos vivenciados anteriormente, são construídas novas possibilidades.

Uma das novas possibilidades é o cuidado. Esse conceito convida os profissionais de saúde, os quais se envolvem com uma diversidade de indivíduos, a cuidarem não de doenças, mas de pessoas. Yasui coloca isso, sustentando-se no fato de que o tratamento psiquiátrico foi marcado por práticas de violência aos portadores de sofrimento mental nos séculos anteriores, ou seja, as pessoas que mais precisavam de proteção eram agredidas de algum modo. Diante disso, questiona-se: será que o tratamento oferecido antes aos portadores de sofrimento mental, identificado como violento pelo autor, realmente não era, à época, a maneira dos profissionais expressarem o cuidado?

Concordo que aquela não é a melhor forma de cuidar, até mesmo porque foram visíveis os efeitos devastadores na subjetividade dos indivíduos que receberam tais ações de cuidado. Entendo que estas práticas foram ocasionadas pela visão da época e outros fatores, mas não creio que as ações daqueles profissionais estavam centradas nos maus-tratos.

Para que o conceito de cuidado não caia no vazio, o cuidado deve ser pautado por alguns conceitos-ferramentas, como: Território, Acolhimento, Responsabilização, Projeto de Cuidado e o Trabalho em rede. O território seria o local onde o cuidado acontece sem que se o reduza apenas a seu aspecto físico. Silvio lembra que, além desse espaço ser estrutura, ele é criado e transformado pelo homem através dos múltiplos encontros. O acolhimento é a escuta e a recepção integral ao indivíduo que chega ao serviço. O projeto de cuidado é aquilo que os profissionais de Saúde Mental irão elaborar juntos a partir do acolhimento com a finalidade de tentar dar conta da subjetividade dos que adoecem psiquicamente. O trabalho em rede é a articulação com outras instituições ou pessoas às práticas de cuidado, a fim de que se consiga de certa forma alcançar o indivíduo.

Na dimensão Politica, o autor faz mais uma viagem nos longos caminhos percorridos pela Saúde Mental, relatando as legislações construídas, referentes aos portadores de sofrimento psíquico. Na história das leis elaboradas, o louco já foi compreendido como alguém altamente perigoso com a ideia da periculosidade. Atualmente, estas leis continuam representando a dicotomia, pois a Reforma Psiquiátrica conseguiu avançar com a lei 10216, a qual promove novas práticas ao cuidado do louco. No entanto, o Código Penal continua veiculando o discurso da periculosidade confirmada pelos profissionais de saúde. Mas podemos compreendê-lo sempre assim? Ou é possível modificar tal compreensão? Desta forma, o Movimento da Luta Antimanicomial permanece buscando a compreensão da sociedade a fim de que a sociedade entenda que “os perigosos” são pessoas e merecem serem tratados com dignidade.

No fim ou no início de novos caminhos a serem percorridos, Silvio Yasui concebeu que os movimentos foram e são necessários para um novo processo civilizador, que envolva o diálogo e a convivência com a diferença. Apesar disso parecer um sonho utópico, ele afirma que mudar o mundo é nosso dever. Então, enquanto não se sonhar, novos caminhos também não poderão ser seguidos. Dessa forma, sonhemos para nos motivar a buscar novos horizontes para a existência humana.

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Saúde Mental – o desafio da gestão pública

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Ester Cabral é assistente social, especialista em Saúde Pública e Mental, responsável pelo gerenciamento técnico da Saúde Mental no Tocantins. Sua relação com esta área já passa de uma década. Agora, ao assumir a gerência técnica, toma para si o desafio de recompor e fortalecer a política de saúde mental no Estado. Nesta entrevista ao portal (En)Cena, Ester Cabral fala sobre sua trajetória profissional,  investimentos necessários para equipar e melhorar o atendimento aos pacientes com transtornos mentais no Tocantins  e o modelo  da rede de assistência implantado no Brasil. 

Ester em suas atividades profissionais. Foto: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Como começou sua relação com a Saúde Mental?

Ester Cabral – Fiz Serviço Social e me especializei em Saúde Pública e Saúde Mental. Comecei em Saúde Mental coordenando o CAPS de Araguaína. No início, o CAPS estava com um problema organizacional na instituição e a Secretaria de Saúde do Estado, na época, passou a gerência do serviço para uma fundação evangélica; então, assumi a gerência por esta fundação, trabalhei por 11 anos como coordenadora do serviço, que virou um serviço de referência aqui no Estado. Depois deste período, saí de lá, porque eu fui para a Psicologia. Tenho esta passagem aí na Psicologia. Tive que mudar de cidade, fui trabalhar no CAPS de Colinas, trabalhei um ano entre o CAPS e o Hospital de Colinas, fazendo estes dois serviços. Depois vim pra cá, para a secretaria, na área técnica de Saúde Mental. Em Junho deste ano, eu assumi a gerência da área técnica de Saúde Mental. Esta área, aqui, nestes últimos oito anos, teve retrocesso muito grande. Nós saímos de coordenação para área técnica. Perdemos muito! Agora a gente está querendo recompor a área. Como é pelo Governo Federal e também pelo Estado, a gente acredita que volta a ser uma coordenação para poder efetivar melhor a política de Saúde Mental. Peguei a gerência em Junho e, desde Janeiro, estamos em processo de Matriciamento nos municípios de pequeno porte, que foi um recurso que o Ministério de Saúde disponibilizou no apagar das luzes de 2010.

(En)Cena – É do PEAD?

Ester Cabral – É do PEAD (Plano Emergencial de Ampliação do Acesso do Tratamento para usuários de Álcool e Drogas), sim. Esse recurso foi de R$ 10 mil para os municípios de pequeno porte. Aqueles que já têm o Pacto assinado, já receberam direto no fundo municipal. Os que não têm o Pacto, o dinheiro veio para a Secretária Estadual, que  repassou para que estes municípios pudessem executar esta ação de Matriciamento. O que é o Matriciamento? Matriciamento é uma ação estratégica que o município faz através de um profissional de Saúde Mental; este profissional vai ser o articulador entre as políticas públicas do município e resolver os casos de álcool, drogas e violência. Então, este matriciador vai fazer, estrategicamente, a rede acontecer nos municípios base deste grupo. É a saúde a partir da Estratégia da Saúde da Família, mas junto com este grupo da Saúde da Família está o grupo do  CRAS, na Assistência Social, nos municípios que têm o CREAS, Conselho Tutelar, Educação, Segurança Pública.

(En)Cena – Contextualizando esta rede…

Ester Cabra – É contextualizando esta rede. Nas cidades que têm população indígena, a pessoa que precisar de atendimento ao indígena também estará presente. Aí, este grupo trabalha os problemas do município, onde cada um também é responsável por uma área. E todos sabem o que estão fazendo. Se for um caso de violência doméstica, eles sabem quem chega primeiro, quem vai dar suporte, quem vai junto e como vai acudir esta pessoa. O agente não pode ir sozinho, tem que ir com agente público. E a educação da rede básica de promoção à saúde, prevenção ao uso do crack, álcool e outras drogas. Então, o matriciamento, a filosofia do matriciamento é essa, a construção intersetorial de redes nos municípios. Porque o Ministério entende e a gente também, que precisamos criar uma estrutura básica no Estado, onde os pequenos municípios saibam o que fazer com os que chegam. O município tem o suporte técnico aqui da nossa secretaria e também dos municípios que tem CAPS. Porque os municípios que tem CAPS são referencia para os pequenos municípios. Então, os casos que chegam e precisam de atendimento especializado, esses casos vão para o CAPS. Hoje nós temos uma rede de CAPS no Estado que cobre oito municípios e seis regiões. Temos dois CAPS II: Araguaína e Palmas e um CAPS AD.

(En)Cena – O de Porto Nacional não é II também?

Ester Cabral – Não. Eles querem ser II, mas ainda não conseguiram fazer essa mudança. Temos um CAPS AD II aqui em Palmas. Nós estamos trabalhando agora na construção, além do matriciamento. Queremos formar três blocos regionais com a atenção de álcool e drogas tanto para os transtornos mentais, quanto para adulto e infantil, em Araguaína, Palmas e Gurupi. Então, já estamos conversando com os órgãos públicos. Araguaína já vai abrir o CAPS AD, agora em Novembro, entrar em funcionamento no mês de Novembro AD III. O CAPS “i”,  em Araguaína, está em implantação. Creio que até o fim do ano a gente abre o  infantil, porque já funcionou, não como CAPS, mas como ambulatório.

(En)Cena – Naquela Clinica de Repouso São Francisco?

Ester Cabral – Não, aquela Clínica de Repouso São Francisco é outro dispositivo que a gente utiliza para internação. Temos 160 leitos em internação para Saúde Mental e agora estamos revendo o convênio, fazendo um novo convênio, onde, destes 160 leitos, 20 deles sejam para álcool e drogas. Estamos fechando o convênio, estamos em fase final de negociação para assinar, para mandar os outros casos que precisam de internação involuntária ou compulsória neste serviço, que é um serviço particular conveniado com o SUS. Mas, hoje, já temos em Araguaína o CAPS AD II, que é a base de onde vai sair o CAPS AD III. E o CAPS “i”, estamos preparando a equipe para fazer este trabalho. Junto a isto, estamos trabalhando em Gurupi; já sensibilizamos o gestor. Eles já enviaram para o Ministério da Saúde para vir o incentivo para a implantação do CAPS AD III lá. Em Palmas, estamos aguardando o gestor, que a gente já conversou várias vezes com ele para que ele assumisse, transformasse o CAPS AD II em CAPS AD III. Mas ainda não conseguimos um parecer favorável dele, eles ainda estão se organizando para isto. O que temos pensando para o Estado são estas três regiões e, junto com eles, estamos esperando o Ministério da Saúde soltar a portaria para ampliação que aí também em Araguaína, Palmas, Gurupi, a gente projeta a Casa de Acolhimento Provisório que, quando a pessoa sai do CAPS ADIII, vai para esta residência para fazer a reinserção social. Temos planos para três Casas de Acolhimento no Estado: em Palmas, Araguaína e em Gurupi. Se nós tivermos cobrindo a região sul, centro e norte, a gente entende que vamos ter um pouco mais de suporte para recebermos estas pessoas que estão com problema e destituídas de estrutura que dê conta.

(En)Cena – Você disse que teremos CAPS AD III, já existe alguma experiência desta, de CAPS no Brasil?

Ester Cabral – Sim. É uma experiência que já existem mais de 15 CAPS AD III no Brasil. CAPS AD III é uma experiência que alguns CAPS AD II fizeram em abrir 24 horas e ser CAPS ad III. Então, no ano passado, o Ministério soltou a portaria instituindo como um serviço contemplado pelo Ministério de Saúde. Nós temos muitos CAPS AD III funcionando no Brasil; nós temos experiência no Pará, Maranhão, na região Norte – estes dois estados – em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul já tem, em São Paulo tem vários, em Minas, quase todos os estados tem este serviço. A região norte é a que menos tem CAPS AD III, mas as outras estão construindo também esta alternativa. Uma vez que só agora, no fim do ano passado, que a portaria do Ministério saiu. Facilita porque tem recurso, né? É melhor trabalhar na lógica do recurso. É o que a gente está tendo hoje. Nós temos uma residência terapêutica em funcionamento em Araguatins, tem seis moradores; essa residência terapêutica é um recurso, uma casa onde as pessoas que perderam o vínculo familiar, por conseqüência da doença,  ficam morando lá. Elas são moradoras desta casa por tempo indeterminado. O Ministério da Saúde está lançando agora no mês de Setembro, já finalizou várias portarias, instituindo outros serviços para área de saúde mental e a gente está aguardando para saber que outros serviços serão estes. O que a gente sabe é Ampliação dessas Casas Terapêuticas Transitórias, que estão sendo chamadas de Unidades Residenciais Terapêuticas Transitórias. Também os aluguéis sociais, esperando recurso maior para trabalhar com a economia solidária, porque não adianta nada a gente tratar a doença, se não houver este suporte social. Sem este suporte social fica inviável qualquer tipo de ação curativa, que nem chega a ser potencializada. A gente precisa potencializar outras ações e a intersetoriedade, que a gente precisa no Estado e não estamos conseguindo.

(En)Cena – Você sente que a formação acadêmica tem faltado algo ou ainda está muito centrada no Modelo Biomédico?

Ester Cabral – É, a gente percebe que a formação acadêmica tem que voltar MUITO nas ações sociais e comunitárias, especialmente no atendimento social e comunitário. Eu creio que tenho que fazer uma conversa maior com a academia dos serviços e das políticas de serviços. Os alunos saem conhecendo um pouco só da política, mas o máximo é ter passado por um estágio em algum dos nossos serviços, mas não têm comprometimento, não tem pesquisa, não tem extensões universitárias que possam potencializar estes estudos nas academias. Se nós tivéssemos uma conversa com a academia, teríamos avanços maiores tanto para quem está saindo como para o serviço e a política, de modo geral. Eu creio que a gente vai fazer esta costura aí. Aqui na gerência, a gente está pensando em colocar, trabalhar em três dimensões: o atendimento do serviço de Saúde Mental, atendimento com Álcool e outras Drogas, atendimento com a intersetoridade. Na intersetoridade, a gente vai ter uma discussão permanente, questão das universidades, conversar com elas, projeto de economia solidaria, atenção básica. Na intersetoridade, inter e intra, nas secretarias que, às vezes, a gente se perde aqui dentro por não ter tempo e nem espaço para essas conversas. A vigilância sanitária, a gente está tendo uma abertura maior, porque nós estamos tendo uma conversa, porque nós estamos precisando estudar a questão dos indicadores, formular pesquisas epidemiológicas na área de álcool e drogas, que a gente não tem, a questão do suicídio. Nós precisamos avançar e nós estamos fazendo esta conversa ainda. Com a atenção básica, tivemos uma conversa a partir do matriciamento, mas a gente precisa avançar, e muito. Os hospitais com os leitos psiquiátricos no Hospital Geral, nós precisamos ter. Hoje nós temos uma unidade só, que é aqui em Palmas. Uma unidade com 10 leitos, que é no Hospital Geral de Palmas. Mas nos outros hospitais do estado não temos. Nós não temos leitos para a Saúde Mental, mas isto é uma conversa que tem que ter dentro das secretárias, intrasetor. Fora das secretarias, temos tido uma conversa com a Secretária de Justiça e de Direitos Humanos, está começando esta conversa, no Ministério Público, está muito difícil.

(En)Cena – Como é que é, eles não compreendem?

Ester Cabral – Compreender até que compreendem, mas é uma questão institucional, porque lá já tem uma superintendência especifica para de álcool e drogas, tem outra visão do tipo de abordagem, então, precisamos costurar esta visão. Ainda está no começo, mas a gente tem tido conversas. Nós participamos do Conselho sobre drogas e, ainda é muito incipiente, gostaríamos de ter avançado mais, até porque nós entendemos que o papel da superintendência seria o de fazer essa articulação política e não apreender. Então, esta articulação política que ainda precisamos construir com eles, ainda precisou fazer, mas ainda não estamos conseguindo, por a questão do tratamento deveria ser com a gente, o atendimento e nós estamos trabalhando para montar esta estrutura de rede. Eles fazem também o discurso do tratamento, mas com outra vertente, outra visão, ideologia. E a gente vai ter que afinar este discurso, nós sabemos que é longo caminho e estamos completamente dispostos a participar dele com todas as nossas dificuldades, todas nossas carências e, principalmente, pessoal, estrutura física. Mas a gente quer participar desta discussão para construir algo que faça sentido dentro da Reforma Psiquiátrica, dentro do conceito da lei 10.216, que é a lei que orienta a ação de Saúde Mental, PEAD, o Plano de Ampliação de Álcool e Drogas e a lei que rege o PEAD, a legislação que rege todo este plano. A gente quer fazer de forma mais clara, mas de trânsito dentro das secretarias nem começamos a discussão. No Conselho da Assistência nem começou uma conversa, já enviou o oficio para que, pelo menos, participassem do matriciamento e sabemos que estão participando. Mas, enquanto instituição, não sentamos para conversar. Fomos ao Conselho de Assistência Social, levamos o assunto, mas não tivemos muito eco nesta inter-relação. Com a Educação também precisamos afinar o discurso; não chegamos ainda pra essa conversa, temos um caminho, aí, muito grande para trilhar. Estamos estruturando a nossa área técnica, estamos esperando os concursados entrarem para saber quem vai compor a nossa equipe para fazer este trabalho acontecer.

(En)Cena – E assim, dentro do matriciamento o que você acha que é dificuldade e potencial?

Ester Cabral – Olha, dentro do matriciamento temos duas dificuldades muito fortes: primeiro, é o entendimento do que é matriciamento, por parte dos gestores e parte da equipe, segundo, encontrar pessoas que teriam perfil para ser matriciadores. Essa foi a grande dificuldade Alguns municípios queriam e querem, mas não tem recursos humanos para fazer isto. Nós recebemos do Ministério uma lista com o nome de três pessoas para cobrirem o Estado e não tem condição. Então, nós mapeamos 25 pessoas, mais ou menos, que a gente achou que teria condição para estar nos ajudando, mas a gente viu que essas pessoas também não tinham tempo, pois estavam em outros processos. Então, o Ministério sinalizou que nós poderíamos pegar pessoas recém-formadas para que pudessem também depois se fixar naquelas cidades. É uma forma de onde poderia interiorizar os profissionais. Então, abrimos  a discussão para o Estado e falamos assim para os gestores: que se conhecesse alguém que pudesse fazer, que contratasse. Não fizeram porque não têm pessoas para fazer e outras que não sabem e nem entendem a importância do matriciamento. Fizemos um trabalho com o Conselho de Secretários do Estado e do Município. O Ministério Público tem nos ajudado muito nesta ação do matriciamento, cobrando que os municípios façam, cobrando os recursos. O CONSEMS tem nos ajudado bastante, pois conscientiza, orienta os municípios. As próprias equipes da Saúde da Família nos ajuda, mas, assim, as dificuldades são muitas e também porque foi uma estratégia que vem tendo sem muita explicação. O Ministério da Saúde mandou a portaria no dia 27 de Dezembro, sem explicar para gente como iria acontecer. Então, todo o entendimento desta portaria, levamos um mês para entender. O Ministério depois mandou o passo-a-passo, fomos entendendo, achamos os municípios para fazer e o resultado é esse: muitos estão com o matriciamento bem avançado e com bom produto, rede. Daqueles municípios que conseguiram realmente implantar desde o inicio, está bem adiantado o processo de construção da rede; tem grupo que conversa, tem grupo de estrategia de ação, nós temos bons planos, apareceram bons planos, outros nem tão bons, mas temos bons planos. Sempre a partir desta disposição que o município teve de contratar recém-formados, outros profissionais que estavam vindo para o Estado agora e os resultados tem sido estes. Infelizmente, a gente não conseguiu alcançar todos, ainda não estamos conseguindo.

(En)Cena – Em questão da supervisão clinica-institucional, como ela tem acontecido?

Ester Cabral – A supervisão clinica-institucional é um programa do Ministério da Saúde para dar suporte técnico e teórico pros CAPS de saúde da Atenção Básica. Alguns municípios mandaram projeto, foi aprovado, receberam recurso e fizeram. Ainda está muito na fase de editais. Quando o Ministério manda um edital, consegue o recurso e faz. O Ministério, no ano passado, soltou uma verba para escola de supervisores institucional e o Tocantins foi contemplado com uma Escola de Supervisores. Estamos ainda em negociação com a Escola de Medicina Tropical. Eu creio que ela comece no próximo ano, agora não tem como. Estou esperando Janeiro até Fevereiro que abra realmente a Escola de Supervisores. A ideia é ter 30 supervisores por turma assim, a gente vai formar a massa crítica, recursos humanos que tenham condição de fazer apoio institucional dentro dos serviços, não só nas três regiões, mas em todas as regiões do Estado, que hoje são 15. Os apoiadores devem ser chamados para escola de supervisores, possam estar ajudando técnica  e teoricamente   estas equipes a trabalharem a temática Saúde Mental e Álcool e drogas.

(En)Cena – Um dado de 2009 indica que  todo ano passam pelo CAPS cerca de 12 mil  pessoas, mas que só 1.904 pessoas são acompanhadas por ano, por quê esta discrepância entre estes números?

Ester Cabral – Na verdade, eles têm uma lógica de atendimento que sejam por nível de atenção. Então, há pessoas que chegam em crise, ela entra no plano terapêutico intensivo, então ela vai para o CAPS todos os dias e fica o dia todo para receber todo o tratamento. Ela tem que receber, no mínimo, 22 procedimentos no mês pelo médico, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, cuidados de enfermagem, dentre outros programas, oficinas terapêuticas. Quando melhora da crise, sai da crise,  continua indo no Centro,  pode ficar três meses neste intensivo e, se precisar ficar mais, é renovado. O paciente vai para o semi-intensivo, não precisa ir à casa todo dia, vai três vezes por semana. Pode fazer 12 procedimentos por mês. Assim, vai criando autonomia, pode ir uma vez por semana. Então, esta forma progressiva, não diria de alta, mas de autonomia do paciente. Quem olha de fora, pensa que estes estão deixando de ser atendidos, mas não, esta é uma alta acompanhada. Então, essa é uma forma de autonomia, no período que o paciente não está no CAPS, está em outras atividades comunitárias, em curso profissionalizante, se ele tiver condições, estiver com a família ou na escola. Quando vai para o não-intensivo, volta para o ambulatório, onde recebe acompanhamento ambulatorial, que é um serviço que não é feito mais dentro CAPS. Então, a pessoa sai deste número e está no ambulatório, ela está na rede, na rede ambulatorial. Se tiver algum problema, ela pode voltar para o serviço, para o não-intensivo ou para o semi-intensivo ou, caso de crise, para o intensivo. O que acontece é que muitos vão para o ambulatório e perdem consulta, param de tomar medicação e voltam para crise e assim voltam para o serviço; ou, às vezes, é uma forma da família garantir a medicação, é pedir para ficar no não-intensivo, porque pelo menos ele está lá três vezes por semana ou só uma vez por mês, porque moram longe, mas está garantida, ali, a medicação. É isto que a gente tem visto. Aí você vê uma diferença de quem é atendido e quem é acompanhado, por exemplo, no CAPS II que tem 220 por mês, só 45 precisam  de acompanhamento diário; na verdade, o resto precisa de acompanhamento semanal ou mensal, não precisam de acompanhamento diário.

Então, na verdade, o que quando a gente vê algo desesperador nos dados não é tão desesperador, pois é uma progressão do serviço.

Isso, é a lógica do sistema da politica de atendimento. O que a Reforma vem pensar é a ideia de que não precisamos e nem podemos cronificar o doente, nós precisamos, nós temos que desinstitucionalizar. Tivemos aí séculos que a doença mental foi institucionalizada, onde a pessoa é rotulada como doente e tem que estar naquele tratamento eterno. Nós viemos de um processo histórico, de anos de internação, pessoas que viveram 60 anos, viveram uma vida, pessoas que foram internadas crianças e saíram depois que morrerão. Então foram eternos moradores dos manicômios. É isto que a reforma quer quebrar, é a desinstitucionalização da doença mental, porque ele precisa ser tratado na comunidade, em serviços comunitários. Então, ele vai sair da lógica hospitalocêntrica para a lógica do serviço comunitário que quanto menor for o grau de dependência da pessoa com este serviço, melhor indicador que a rede funciona. Se eu estou tendo um grande numero de pessoas sendo acompanhadas, isto significa que em algum lugar o serviço está falhando, agora se o numero do acompanhamento está sendo menor, isto indica que o acompanhamento reintegra na sociedade. Aí entram outros dispositivos, a economia solidária, as associações, os grupos de produção da economia solidária, empreendimentos sociais. Porque a gente sabe que o problema de emprego e renda para esta população é muito mais complicada do que para outra. Para isto, o suporte do serviço é importante. Já a partir do trabalho que é feito dentro do CAPS, pra gerar uma autonomia e uma consciência maior dos seus direitos. Isto é feito por meio das assembleias, que acontecem dentro dos serviços, todos os CAPS precisam ter, gerar este espaço democrático, da construção da cidadania. E construção da ideia que eu tenho direitos. E não é porque sou doente e estou doente e que não tenho direitos, a  garantia da efetivação destes direitos.

(En)Cena – Fico até emocionada com isto! Mas assim, em dados 14% das internações são de álcool e outras drogas, você considera ser necessário um maior investimento nesta área?

Ester Cabral – A questão do álcool e drogas é do momento, é a crise da sociedade no momento, especialmente agora com o crack que, antigamente, a droga era elitizada, quem usava eram os intelectuais, empresários, mas agora não; há uma rede capitalista e capitalizada de distribuição da droga. Então, a sociedade fica assim, sem saber o que fazer. Se pegar os dados de álcool e drogas, você vai ver que a quantidade de álcool é muito, muito maior do que do crack. A questão é que o barulho que o crack faz é muito maior do que o álcool. O álcool é lícito e o crack não. E o prejuízo do crack é muito grande, do álcool também. Como o álcool é lícito, a sociedade aceita até que não atrapalhe a viver. Eu vejo que, assim, está faltando esta intersetoridade, a sociedade parar de se culpar e jogar a culpa no outro. Eu estava conversando com uma mãe, que a gente tem em uma clinica de reabilitação fora do estado. Nós só mandamos por uma questão judicial e lá, nessa noite, ele fugiu. A mãe veio pedir para que o filho fique lá. A família não sabe o que fazer e ninguém sabe o que fazer. Então, temos que juntar forças pra montar uma estratégia do que fazer. Como acudir? Se for montando a rede, a gente está montando, mas não temos garantia que esta rede vai dar certo. Ontem, estava assistindo um videozinho do SENAD, neste filme, a saúde, a educação, o conselho tutelar, o conselho sobre drogas, assistência social, a habitação chamando pra si a responsabilidade. Quando eu puxo pra mim a responsabilidade, estou aumentando a chance de dar certo, mas eu não posso garantir sozinha, porque tenho que construir, montar a rede. Se ainda não tem dado certo é porque não temos uma política única, intersetorial; é para fazer acontecer. A gente ainda tem que limpar a ideologia, nós temos muita ideologia, principalmente no estado do Tocantins, nós temos muita ideologia e pouca ação. Muita gente dizendo: “Só isto aqui que dá certo”, “Não, vocês não fazem”, ”Só fazem se for desse jeito”. Então, a gente está tendo muita ideologia e pouca ação, acho que a gente tem que desmontar o nosso medo de agir, sair de cima do pedestal e começar a sentar em roda e admitir a nossa fragilidade que a gente não tem dado conta e aí temos que fazer alguma coisa e não sair acusando: “Só a gente que dar conta disto”. A gente tem ajuda das comunidades terapêuticas, serviços suplementares, tem muita gente que precisa da saúde. Clínica de recuperação, existem algumas no estado, mas que sequer tem alvará da vigilância sanitária. Como é que eu, como órgão público, vou mandar alguém para um serviço que o próprio órgão não reconhece? Não tem como. Eles podem ser potencializados, mas aí resolve? No afoito de fazer as coisas acontecerem, corre o risco de praticarmos uma ideologia higienista, onde eu vou tirar da rua o que eu não quero ver e esconder dentro de uma clínica. Não é assim, não precisamos voltar à era do manicômio, precisamos encarar, propor ações intersetoriais e a sociedade tem que dar as mãos e resolver, parar de empurrar e esconde-esconde. Nós precisamos é resolver! Então, a gente está vendo…

Ester e sua equipe em reunião de trabalho. Foto: Arquivo Pessoal

 

(En)Cena – Você considera que o Estado ainda vive uma ideia manicomial, porquê parece até que o Estado tem um dos maiores números de leitos no Brasil?

Ester Cabral – Não, é porque no Estado do Tocantins é o único que não tem Hospital Psiquiátrico. Nós temos 160 leitos conveniados, mas que não são do Estado. Nós temos estados aí que tem mais de 4.000 pessoas em clinicas. O que nós temos no Estado é a ideia que só internando resolve, principalmente álcool e drogas. Até que na doença mental já desmontamos bastante esta ideia com o CAPS; já sabem que dá certo, já tem família que pede para ir para o CAPS. Então, isto já está desmontando, mas isto tem o quê? 15 anos. É um trabalho que, agora, com esta questão álcool e drogas, está todo mundo muito assustado e o jeito é tirar de perto. Então, vamos higienizar o ambiente, jogar fora, colocar este povo em um lugar bem escondido e não pode sair de lá. Eu recebi uma demanda judicial esta semana que dizia que queria que eu internasse uma pessoa que cometeu delito, inclusive, por tempo indeterminado. Isto me diz que ele está pedindo uma prisão perpetua e a gente sabe que as casas de custódia, manicômios judiciários são prisões perpétuas. O que estou dizendo? Posso alimentar isto? Não, não posso alimentar isto! E aqui vai uma denuncia que, se a gente não tomar cuidado, vai instaurar no país e é o que a gente tem feito é instaurar prisões perpétuas, nos manicômios judiciários. Na III Conferencia Nacional de Saúde Mental a gente já vem apontando que isto não pode acontecer e a lei 10.216 é muito clara: não podem ter internações indeterminadadas. Não pode colocar a pessoa lá e esquecê-la! Ainda vamos ter que pensar como tratar o louco infrator, o pessoal de álcool e drogas que cometem delito todo dia e comete delito para sustentar a droga. Será que a saúde é só ação de repressão do tráfico? O que pode ser feito? Há uma discussão muito grande da legalização da droga, mas é isto que vai resolver? Legalizar? E o que vamos fazer com isto legalizado? Nós estamos vendo o álcool legalizado. O que acontece? O nosso maior número de problemas é o álcool. Uma discussão que a gente vai ter que fazer mesmo. Sem paixão ideológica, mas com o pé no chão. É isto que está acontecendo hoje.

(En)Cena – Quais as suas dificuldades na gerencia técnica de saúde mental?

Ester Cabral – Hoje a maior dificuldade que a gente está tendo aqui é a estrutura da secretaria para esta gerencial. Nós ainda estamos dependendo de recursos humanos. Hoje eu conto apenas com dois assistentes administrativos. Ontem veio uma assistente social que, possivelmente, vem trabalhar conosco, mas ela ainda está em processo de tomar posse, né? Então, eu ainda não posso contar com ela. Mas ainda preciso de gente! Como técnica, estou sozinha. A gente tinha a Raquel, mas hoje é o seu último dia. Infelizmente, né? É uma perda muito grande para o Estado; ela está indo para outro estado. Mas mesmo com ela aqui, nos já estávamos batalhando. Outra dificuldade que vejo é a estrutura organizacional da secretaria, pois, nós não estamos, porque se você olhar o organograma da saúde, a Saúde Mental e Álcool e outras drogas, nós não estamos. Ela ainda não existe. Nós já conversamos com o secretário, ele está sensível a isto, ele já autorizou que se criasse esta área dentro da estrutura, agora vai depender de muitas coisas, de estrutura física, nós não temos. Você viu, o espaço é muito pequenininho, não temos recursos humanos e não estamos no organograma da saúde, que contemple a Saúde Mental, que é uma área estratégica. Agora, neste ano, que viramos estratégia; uma das ações que o nosso secretário fez que foi louvável: ele nos colocou no gabinete até que esta estrutura aconteça. Isto facilitou muito o processo, porque processos que demoravam seis meses duram, agora, 30 dias. A gente despacha logo com ele, nós não temos que passar pela burocracia. Se eu tenho um problema, já despacho direto com o secretário, então, isto facilitou, mas a gente sabe que isto não é a solução. Foi uma ação emergencial que mostrou uma sensibilidade do secretário com a área, que ele vê a importância e, especialmente, pelo Álcool e Drogas, que há uma secretaria nacional, mas que está ligada a presidente da república. Nós precisamos dar um nível de importância também compatível, junto com isto. Ele já assinou a portaria para o colegiado de Saúde Mental. Quem pertence a este colegiado? O colegiado é composto pelos técnicos das secretarias de saúde, de Saúde Mental, todos os coordenadores de serviço do estado e alguns serviços intersetoriais; nós temos lá o pessoal da área indígena, nós temos gente do hospital, da unidade hospitalar, dos conselhos de saúde e álcool e drogas; este é colegiado. O colegiado caminha junto com a gerência para pensarmos estratégia de Saúde Mental e avaliar as políticas.

(En)Cena – O que considera um potencial para a gerência de saúde mental, aquilo que tem possibilidade de crescer?

Ester Cabral – Eu creio que se a gente trabalhar direitinho o que temos planejado. O que temos esperado é uma Saúde Mental estruturada dentro do estado; a população esteja garantindo a Saúde Mental. Saúde Mental, onde a gente não tenha mais que internar pacientes por crises que, se precisar internar, a gente saiba pra onde mandar e que a população tenha uma gerência de saúde eficaz para cobrir as suas necessidades. A gente está trabalhando no PPA, para colocar recurso, que nem isto a gente tem tanto para especialização. Começa agora em Novembro o segundo curso de especialização de Saúde Mental   para pessoas que são da rede; nós estamos também com outros cursos de atualização para as equipes de unidades da família e dos CAPS; aprimoramento e aperfeiçoamento das equipes de álcool e drogas. Então, a gente quer trabalhar na estruturação da saúde, aprimoramento das equipes e também CONSTRUÇÃO de trabalhos alternativos para os pacientes que são atendidos. A gente conta com a intersetoridade também.

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