Diferença no cuidado de quem ama

Uma casa onde se observa pessoas conversando por todos os cantos, um ambiente calmo e harmônico, ilustrado de muitas cores nas artes expostas pelos cômodos (impossível não notar). Assim é a casa onde funciona o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Porto Nacional, a 60 km de Palmas(TO). O Centro é um serviço comunitário que tem como objetivo acolher pessoas que sofrem algum tipo de transtorno mental, em especial, os transtornos severos e persistentes, no seu território de abrangência.

O CAPS foi instalado na cidade no ano de1998 e atende hoje cerca de 220 usuários. A coordenadora Tânia conta que o local é similar a uma casa, que é quase impossível distinguir usuários, visitantes e funcionários.

Tânia Maria Rocha é coordenadora do CAPS da cidade de Porto Nacional há seis anos, e avalia sua atuação como algo desafiador. Formada em Psicologia pela Faculdade Católica de Goiás e mestre em Saúde Pública, a psicóloga já soma mais de 20 anos de experiência.

 

(En)Cena – O que é saúde mental?

Tânia – Se nós fossemos falar em saúde, seria qualidade de vida em tudo no sentido de se sentir bem, como praticar esportes, lidar bem com as pressões do dia a dia, stress, de você priorizar o lazer e uma boa leitura. Isso é saúde.  Já Saúde Mental não significa patologia, quando trabalhamos somente com o mental trabalhamos muito com transtornos e patologias, e acabamos esquecendo questões diárias que também estão ligadas a saúde mental. É você criar a alternativa de se dar bem com os desequilíbrios e perdas que nós temos, é a capacidade de ter mecanismos satisfatórios para lidar bem no decorrer da vida com os conflitos que surgem.

 

(En)Cena – Como é o atendimento do CAPS?

Tânia – O CAPS é um serviço de saúde mental. Fica até meio antagônico, porque nós lidamos mesmo é com doenças e transtornos mentais. O que é prioridade é a reabilitação psicossocial desse indivíduo que em algum momento de sua vida teve um desequilíbrio mental e procurou pelos nossos serviços. Dificilmente recebemos alguém que está bem, que não tenha um queixa, geralmente quem vem aos CAPS são pessoas que são trazidas por um familiar ou solicitam visitas. Recebemos também casos de alteração de pensamentos e agressividade.

Hoje, em função do aumento do uso de drogas, álcool e principalmente o uso do crack, nós temos uma realidade diferente, porque toda essa demanda nós atendemos hoje.  A nossa dificuldade é saber como atender e acompanhar, por conta da complexidade da dependência química e por ser um fenômeno social, cultural, econômico, e ter a ver com o modo de como o indivíduo se coloca diante do mundo e da dependência.  Como equipe, nós estamos sem pernas pra cuidar dessa questão, pois temos além do atendimento aos dependentes, outros casos com transtornos mentais graves e persistentes.

 

Atividade comemorativa:  Aniversariantes do mês – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – O objetivo do CAPS então é reabilitar?

Tânia – Sempre foi. O que é isso? É você trabalhar para inserção desse indivíduo na escola, na cultura, no esporte, no lazer, no território dele onde ele perdeu a capacidade de comunicação e contratação dentro do espaço em que está inserido, como a vizinha, o trabalho e sua própria casa. É como se ele perdesse a capacidade de se relacionar e ter afetividade. Um dos nossos grandes desafios como Centro, é essa recessão social, principalmente em casos mais graves, e também no mercado de trabalho que ainda não está pronto para receber pessoas que apresentam algumas diferenças. Quando falamos de reabilitar, não significa que voltará ao estágio de antes, o indivíduo sempre volta diferente.

 

(En)Cena – Nós sabemos que o CAPS não atende apenas a sua cidade, mas responde por uma região, quais as outras cidades que este atende?

Tânia – Além de Porto Nacional, atendemos outras 11 regiões. Antes nós atendíamos 21 cidades, com a abertura do CAPS em Dianópolis diminuiu.  Nós, por exemplo, atendemos o município de Mateiros, que segundo as reuniões de colegiados e gestores de saúde, eles argumentam que os valores nossos são mais parecidos e, por isso, é mais fácil eles resolverem as demandas aqui do que em Palmas.

 

Atividade:  Aula de violão – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – Os atendimentos necessitam de encaminhamento?

Tânia – Os outros municípios sim, pois nós temos que agendar por conta do deslocamento. Hoje, na cidade de Porto Nacional, nós passamos por um processo de desconstrução da figura do médico, e atendemos com a equipe de saúde mental com a justificativa que nem todos os casos é necessário o atendimento médico, e dessa forma hoje temos uma demanda espontânea sem a necessidade de encaminhamento.

 

(En)Cena – Qual a faixa etária para os atendimentos?

Tânia – Antes nós não atendíamos dependentes em álcool e droga, e hoje somos obrigados a atender pela demanda. Atendemos adolescentes e adultos em crise, mas não temos espaços lúdicos para o atendimento de crianças, quando há a necessidade de atender alguma, trabalhamos no ambulatório.

Antes atendíamos crianças com dificuldade de aprendizagem, mas por ser um trabalho que demanda tempo do profissional, onde este se envolve no contexto da escola e em todos os outros que envolve a criança, e também por trabalharmos com uma equipe mínima, não realizamos mais este tipo de atendimento.

(En)Cena – Qual a faixa etária que apresenta mais transtorno, de acordo com os atendimentos que realizam?

Tânia – (Tom de angústia e preocupação) Nós atendemos hoje viciados de 11, 12 anos de idade, que poderíamos considerar crianças, e adolescentes a partir de 15 anos de idade, e ao conversar com cada uma deles percebemos que acabaram por queimar a fase da infância ou até mesmo da adolescência. Muitos não surgem mais somente com a dependência química, trazendo associado a ela um transtorno psiquiátrico.

 

Atividade: Hidroginástica – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – E idade mais frequente?

Tânia – São os adulto-jovens, essa faixa etária que vai dos 20 até o início da fase idosa, a idade onde geralmente surgem os transtornos.

 

(En)Cena – Quais as características comuns desses atendimentos?

Tânia – Quando o usuário chega aqui no CAPS, ele é acolhido pela enfermeira, onde é feita a escuta da queixa e a avaliação do caso. Depois é feito o agendamento do atendimento domiciliar, que pode ser feito pelo médico, psicólogo, terapeuta ocupacional ou o assistente social. Após avaliação e traçado um projeto terapêutico para o paciente, onde verificamos a necessidade ou não de inserção do individuo no CAPS para um acompanhamento constante. Nós trabalhamos com três modalidades de usuários de CAPS: o não intensivo (3 vezes ao mês), o semi-intensivo (8 a 12 vezes ao mês) e o intensivo (de segunda a sexta). Nós avaliamos o grau de comprometimento e sofrimento psíquico, e não biológico.

(En)Cena – Quais as maiores queixas?

Tânia – O que mais vimos são transtornos de ansiedade e casos de depressão. Já indo para as patologias mais graves, nos deparamos com a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar, que é o TAB. Hoje nós encontramos muitos transtornos psiquiátricos causados pela dependência química. A depressão também tem crescido muito, e em todas as faixas etárias, que antes era mais comum em idosos.

 

Atividade: Oficina de Mosaico – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – A senhora consegue identificar uma causa que seja um fator predominante entre os atendimentos?

Tânia – Infelizmente quem vem ao CAPS tem uma condição socioeconômica horrível, vem de famílias disfuncionais no sentido de dificuldade de relacionamento, de comunicação, rigidez afetiva e muitas outras situações que nós assistimos. Não que as outras classes sociais não tenham transtornos, mas ainda existe um paradigma muito grande de se chegar ao CAPS.

Um grave problema que Porto Nacional enfrenta hoje é realmente a questão do álcool e das drogas. Hoje a cidade é tida como uma das maiores rotas de vendas, onde usuários de outras regiões vem comprar drogas aqui. Diante dessa situação gritante, surge a necessidade de criar alternativas de cuidados porque o CAPS sozinho não dá conta, e precisamos de uma rede.

(En)Cena – Então podemos apontar o crescimento dos atendimentos por causa do aumento da dependência química?

Tânia – Realmente tem crescido muito, e temos até que fazer um levantamento estatístico, mas encontramos muitas comorbidades psiquiátricas em função do uso e abuso do crack ou outro tipo de drogas. Mas os nossos maiores atendimentos são esquizofrênicos, e de depressão, que hoje acompanha muitos casos psiquiátricos.

Aqui não é muito comum atendermos casos de bulimia, o que tem a ver com a região. Se fossemos fazer essa entrevista em um CAPS de São Paulo, observaríamos uma demanda maior de casos pós-traumáticos, por conta da realidade e situações vividas nas grandes cidades.

(En)Cena – Quais as estratégias que o grupo do CAPS criou em busca de amenizar o problema da dependência química?

Tânia – A primeira coisa que nós estamos fazendo é estudar, pois nós éramos cheios de paradigmas, de medo, de preconceito. Todo mundo acha que dependente químico é bandido e que ele é assim porque ele quer.  Então, nós buscamos desconstruir os preconceitos internos, assim como fizemos em relação à loucura. Fazemos acompanhamentos, visitas domiciliares, se o paciente está preso nós vamos até ele, temos um grupo de álcool e drogas há muitos anos. Estamos buscando reestruturar ele e buscar parcerias com outros setores da sociedade. Conseguimos parcerias com ONGs e instituições não governamentais, como o grupo de canoagem, pois a prioridade de tirá-los daqui, pois é fácil pro profissional ficar trancado em uma sala atendendo, agora ir para fora onde as coisas estão acontecendo é o verdadeiro desafio.

 

(En)Cena – Agora falando um pouco sobre a história do surgimento dos CAPS, eu li que os Centros surgiram com a proposta de acabar com os manicômios, e trabalhar justamente a reabilitação social, que é do que acabou de falar. A senhora chegou a conhecer o trabalho de um manicômio?

Tânia – Cheguei a conhecer sim o Manicômio Adauto Botelho quando eu estudava na Faculdade Católica em Goiás. Era um horror, nós entrávamos morrendo de medo e olhando os tratamentos mais desumanos que alguém pode imaginar. Eu me lembro deles pelados, descabelados, jogados e sem nenhuma higiene praticamente.

Os manicômios foram criados para os donos ganharem dinheiro, e não para cuidar de pessoas e muitas vezes eram atendidas pessoas que não tinham transtornos graves, e pela forma que eram tratados acabavam perdendo a sua identidade e cidadania, pois não havia a escolha de querer estar lá ou não. Os pacientes que não apresentavam nenhum transtorno, com certeza passavam a ter, após os tratamentos.

Abolir esses tratamentos foi um grande avanço social. Eu não acredito em uma sociedade totalmente sem clínicas especializadas, não diria manicômio, mas tem situações que infelizmente necessitam de caso de internação.

(En)Cena – E como seria o atendimento dessas clínicas?

Tânia – Atendimentos diferenciados e especializados. Até pode ser hospital geral mesmo, que se crie uma ala e que se cuide deles lá, que é o processo que está sendo muito difícil de ser construído também, da época da reforma psiquiátrica. Não é reforma psiquiátrica no sentido de reformar a psiquiatria, mas no sentido de cuidado.

Então, os manicômios eram produtores de isolamentos, de mais sofrimentos, de loucura e dor. Eles não possuíam nenhuma troca afetiva. Nós costumamos falar que o CAPS é um espaço de lazer, de saúde de troca de afeto. Temos casos aqui que, a família relata, depois que o indivíduo passou a freqüentar melhorou o relacionamento com os familiares. E eles dizem que isso é porque aqui eles aprendem a ser bem tratados e assim conseguiram levar para o convívio. Graças a Deus, os manicômios acabaram, quer dizer, ainda existem muitos por aí e ainda acontecem muitas mortes, mas a maioria já fechou as portas.

 

(En)Cena – E como é a relação da equipe de saúde mental com os usuários do CAPS? Nós sabemos que quando falamos de atendimento mental muitos imaginam uma sala fechada onde é trabalhado o transtorno com sessões de longas conversas.

Tânia – O atendimento do CAPS é realmente diferenciado, para você ter uma idéia nós nem utilizamos muitos nossas salas. Aqui nós temos vários pés de manga, e geralmente os atendimentos são feitos lá mesmo, é onde também reunimos os grupos. Essa vivência de cuidado é bem aberta, mas é claro que existem casos de atendimentos que precisam de um contorno mais fechado.

(En)Cena – Vocês desenvolvem atividades artísticas também? Aqui ao nosso redor eu estou vendo diversos quadros de pinturas artísticas.

Tânia – Realizamos sim, várias oficinas como pintura em tela, pintura em tecido e bisqui. Esse ano nós temos uma artesão que está trabalhando muito com reciclagem, e dessa forma foram criadas várias coisas com jornal, revista, garrafas pet. Está faltando algo que mexa com a emoção, como teatro ou música. Infelizmente ainda não temos como contratar esses profissionais, mas estamos abertos a voluntários que queiram realizar esses trabalhos.

 

Atividade: Oficina de pintura – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

(En)Cena – A senhora consegue enxergar que há quebra de barreiras em relação aos usuários, o que normalmente difícil de conseguir em um consultório?

Tânia – Demais. Os pacientes do CAPS dificilmente vão a consultórios, geralmente eles já te puxam e conversam tudo. A não ser que estejam com muita angústia e muito sofrimento. É um trabalho construído na rotina, no dia a dia. Dos 220 que atendemos hoje, são pouquíssimos que levamos para dentro de consultórios.

(En)Cena – Eu percebo aqui um ambiente mais amigável, mais familiar.

Tânia – Nós buscamos passar justamente um ambiente de uma casa onde existem conflitos, trocas, existe afeto, regras, limites e a figura de autoridade que sempre tem em um lar. Eles chegam a confiar tanto que acabam por achar que eu tenho a solução para tudo (risos). Tentamos criar ao máximo um ambiente agradável e de liberdade.

 

Atividade: Torneio de dominó – Foto: Arquivo/ CAPS Porto Nacional

 

(En)Cena – Como é o convívio com a família?

Tânia – É muito difícil trazer a família para o nosso espaço. Os parentes só aparecem quando o caso está realmente grave. Quando vemos algum familiar telefonar, já sabemos que não é boa coisa, e isso eu vejo como uma falha nossa, pois, de certa forma, somos muito paternalistas. Nós pegamos os usuários e tomamos pra nós, querendo cuidar dele, e termina que acabamos não aproximando as famílias.

 

(En)Cena – Então o trabalho de atendimento se estende às famílias?

Tânia – Nós temos um grupo de família, ele é descentralizado, e acontece em três lugares da cidade de acordo com os pontos de localização das famílias, para não haver desculpas de distância. Existem famílias participativas, mas grande maioria não é. Eu sinto que com os filhos deles aqui, eles acabam por ficar aliviados e passam a tratar como uma desocupação do problema. Nas vezes que nos encontramos, eu percebo que é uma dificuldade de todos os CAPS, a questão da família lidar com a falta de informação da própria família e da sociedade em geral.

(En)Cena – Falando em informação, nos últimos anos a mídia vem abordando constantemente em novelas, seriados e filmes, por exemplo, questões que envolvem a saúde mental. Qual a sua opinião sobre a abordagem da mídia sobre o assunto?

Tânia –  Eu acho até positiva, é um desafio falar disso.  As falhas que vejo são poucas. Para o serviço e para os usuários é um ganho, pois está se ajudando a desmistificar a loucura, ajudando a mostrar que ela não é tão feia e que é possível sim viver com ela.  A mídia peca quando ela vai para os extremos, quando ela exagera. Em geral, eu sou a favor porque de certa forma ajuda a acabar com o medo da loucura, que é algo secular. É bom que a mídia use diversas abordagens e formas de comunicação, como o caso da violência doméstica, a pessoa de certa forma está sofrendo e gerando um monte de traumas que necessitam de tratamentos.

(En)Cena – A senhora consegue enxergar essas abordagens de forma educativa?

Tânia – Eu acho que não deixa de ser, porque trabalha a informação, desmancha preconceitos e paradigmas. Em certos momentos eu acredito sim, como a novela que tratou da esquizofrenia, deixou claro que não há cura e por mais que aqueles pais quisessem, só há evolução e controle. Tudo isso ajudou para que todos passassem a ver o esquizofrênico com outros olhos.

(En)Cena – Para finalizar, de todos esses transtornos e dificuldades que conversamos, qual seria o maior desafio da psicologia hoje?

Tânia – Nesse momento, não sei se em função não só do meu trabalho, mas também da mídia que está trabalhando bastante a questão da dependência química, eu acho esse o trabalho mais complicado e desafiador. Eles falam que um terço vai ficar na dependência, um terço recupera e outro um terço morre. Para a recuperação desse um terço que sobrevive sem o vício, necessita de tentativas com grupos de ajudas, comunidades terapêuticas, CAPS, e outras várias tentativas que não são apenas a psicologia.

O profissional da psicologia tem os limites dele, tem muita coisa que é do indivíduo. Entender a subjetividade da droga e o que ela representa na vida daquele indivíduo é um desafio constante.

O que me preocupa são as mulheres dependentes que acabam usando o sexo como troca, acabando por engravidar e gerar uma criação que pode vir a ter transtorno dentro desse cenário. A assistência a essas crianças também é um assunto bastante relevante, o que podemos fazer por essas crianças e adolescentes que estão por aí?

Eu como psicóloga, depois de mais de 20 anos de profissão, se você me perguntar que abordagem trabalhar com um dependente químico eu não sei te responder. Nós estamos trabalhando com tentativas.

 

 


Nota: texto originalmente publicado na Revista Laboratorio EU – www.revistaeu.blogspot.com – , do curso de Jornalismo do CEULP/ULBRA vinculada à disciplina de Produção Jornalística II – Revista orientada pela professora Jocyelma Santana.