CAPS: do isolamento à desterritorialização

O professor Victor Meneses Melo possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina e mestrado na área de Psicologia e Sociedade pela Unesp-Assis. Teve experiência de cinco anos trabalhando em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), na cidade Cândido Mota no interior de São Paulo. Atualmente atua como professor de psicologia no CEULP/ULBRA além de ser consultor da Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde. É um dos idealizadores do Portal (En)Cena. Nesta entrevista, ele fala de psicologia e desterritorialização.

Victor Melo, Psicólogo e Professor no CEULP/ULBRA. Foto: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Olá professor, primeiramente gostaria de agradecer pela oportunidade da entrevista e de ressaltar o quanto é importante alimentar a discussão sobre saúde mental. Bem, nesse semestre nós discutimos muito o tema desterritorialização, sobretudo da informação por meio da internet e é justamente nesse contexto que centramos essa entrevista. Com o advento da internet é sabido que novas doenças, inclusive mentais, surgiram, apresentando novos desafios para a medicina e também para a psicologia. Como você, sob a luz da psicologia, enxerga essa relação da internet com essas novas doenças?

Victor Melo – Olá Rafael, um olá também aos leitores do portal Encena. Eu não afirmaria de cara que a internet produz doenças; acho que ela modifica a noção do ser humano e algumas modificações são tão grandes que aí, sim, a psicologia chega a chamar de doença. A psicologia fala muito que a internet leva as pessoas ao ostracismo, uma individualidade exacerbada, e prejudica o relacionamento pessoal, mas não acontece necessariamente dessa forma, as redes sociais também promovem a interação, também promovem encontros. Enfim é um tema novo e acho que a psicologia não adentrou tão bem para falar dele, ainda há muito que estudar.

(En)Cena – As relações e o contato físico são outros conceitos que são redefinidos na desterritorialização. Diversos autores falam que essa geração, que cresce imersa nas tecnologias, é a geração Z. Falar para essa geração que um beijo pela webcam não é realmente um beijo ou mesmo que um namoro à distância, fomentado pela internet, não é de fato um relacionamento, é muito complicado. Como você enxerga essas relações sem o contato físico?

Victor Melo – São diversos autores e conceitos que tentam falar sobre isso, eu creio que, principalmente na década de 1990, a psicologia teve bastante esse discurso de que essa interação não é viável à saúde das pessoas, não colabora, prejudica a saúde mental. Eu, particularmente, tendo em vista minha profissão, sempre adotei essa visão, sempre achei que a tecnologia prejudicasse as pessoas, mas consigo ver hoje que possuía essa visão a partir de minha vivência moral. Penso que os encontros presenciais são bem mais ricos, importantes e formadores de vínculos sociais, do que os virtuais, mas hoje eu revejo minha posição com relação à tecnologia, não de achar que temos que conviver virtualmente. A convivência afetiva, o toque entre as pessoas, o beijo tem que ser dado de forma presencial, na internet você pode mandar um beijo, mas é diferente. Não acho que a internet por si só é prejudicial. Essa questão da criança não é nova na sociedade, esse embate de gerações eu vivi com meu pai: pra mim, videogame era tecnologia da época e que meu pai não entendia “como vocês gostam dessa coisa”, dizia ele. Mas hoje essa questão da tecnologia é tão presente que meu pai joga Playstation. É possível a gente se adequar, é possível na educação lidar com essa questão de que a criança vê o mundo de uma forma e de que nós vemos diferente. É possível os pais se perceberem que não falam a mesma língua dos filhos, mas buscarem entender o que os filhos estão falando. É possível se comunicar com a juventude a pesar de hoje ela possuir uma linguagem que, eu, por exemplo, estou defasado, não consigo entender.

(En)Cena – A internet é um ponto de convergência e, ao mesmo tempo, de desterritorialização das relações; isso também deve acontecer na psicologia. Como se dá isso na psicologia, é possível tratamento on line?

Victor Melo – Isso tem começado a se desenvolver na psicologia. Eu estava justamente esses dias conversando com uma colega sobre psicoterapia por email. Ela me explicava que você vende 10 sessões, e a pessoa tem direito a 10 respostas por email. Eu me considero bastante retrógrado, isso é novo pra mim, e tenho certeza que vou rever isso daqui uns tempos, mas eu acho que, como a psicologia se funda no vínculo, eu creio que a internet é um meio pra isso, mas não o principal, sem extremos. Eu mesmo já respondi email de pessoas que atendo, mas não acho que conseguiria atender só e somente só por email, não acho que seria atendimento, nem psicoterapia, não acho que seria uma técnica que eu usaria para produzir um vínculo. Mas é uma coisa que está acontecendo, vou ter que me rever porque é uma pratica que vai se tornar rapidamente freqüente.

(En)Cena – A tecnologia é realmente algo impressionante, é um fenômeno dominante que não há como ir contra. E assim foi com a internet, que hoje domina boa parte de nossas vidas. A importância da internet pode ser observada, sobretudo, na disseminação e na desterritorialização da informação. Sob essa perspectiva, na sua visão, qual a importância do portal (En)Cena?

Victor Melo – O (En)Cena é importante porque ele faz uma coisa que é a grande sacada da internet, ele dissemina, promove, alimenta uma discussão que tem ser feita, ele trata da saúde mental e permite divulgar experiências, relatos de experiências nos serviços em um meio de comunicação; isso torna muito mais públicas essas experiências e eu acho que têm que ser públicas mesmo. No começo eu me incomodava um pouco com essa questão porque, meu discurso, nas minhas aulas e nas minhas leituras, eu falo bastante do coletivo, do encontro, entre corpos, encontro vivo, e me envolvi com um projeto cuja base é a internet; então eu tive que me rever com isso. Mas eu acho que eu consigo pensar nessa contradição, nesse conflito, pensando que é uma baita de uma oportunidade de disseminar, alimentar a discussão sobre a saúde mental. Inclusive, sobre algumas situações que nós vivemos no cotidiano da saúde mental, só conseguimos superar se a discussão se disseminar, então acho que a internet é o meio mais eficaz pra isso.

(En)Cena – Saindo um pouco da internet, mas ainda na desterritorialização, pode-se perceber uma mutação no quadro da saúde mental. De uns anos para cá tomou conta o discurso antimanicomial e uma transferência dos serviços para os CAPS. Em vista disso e também de sua experiência no trabalho com CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), como se dá essa mudança de território?

Victor Melo – Os CAPS e as residências terapêuticas funcionam de forma aberta, diferente dos hospitais psiquiátricos. A pessoa tem o direito de ir e vir a hora que ela quiser. Não se trata de uma casa que vai tutelar o individuo. O CAPS funciona em um território muito mais próximo de onde o indivíduo vive os conflitos o que é uma diferença grande do hospital psiquiátrico. O CAPS tem essa característica de estar onde a pessoa mora e em conexão com outros serviços. O que diferencia do hospital também é que esse último se trata de uma estrutura isolada, acontece tudo lá dentro; depois que ele sai, ou ele volta ou acabou o vínculo.

(En)Cena – Então podemos entender o CAPS como um lugar bem mais propício por não ter a característica da “prisão” como os antigos manicômios?

Victor Melo – Sim, eu acho que a questão da prisão limita a questão de viver os conflitos; vivendo-se os conflitos, aumenta-se a possibilidade de arrumar outros caminhos para percorrer essa vida. Isolada dos seus conflitos, a pessoa não tem essa possibilidade de viver de formas diferentes aquela mesma problemática do dia-a-dia que é própria do cotidiano, que é da vida e que nos pede de mais, que nos pressiona. Acho que essa possibilidade de viver os conflitos, viver o sofrimento e ainda mantido nos conflitos é a possibilidade da vida, a pessoa se modifica a partir do momento que está sofrendo. Mas existem ocasiões em que a internação é necessária mesmo, contudo não é a regra, os CAPS se diferenciam por isso, não é centrado na internação.

(En)Cena – Essa questão da internação realmente é muito complicada, pois tirar o indivíduo das ruas é interferir nos princípios básicos do cidadão que é a questão da liberdade. Contudo, ainda sim existem casos extremos no qual a internação é necessária. Mas então como se dá essa decisão da internação?

Victor Melo –  É muito delicado esse tema. Os ideais são sempre radicais, mas se a gente for pensar no ideal da liberdade, no primeiro momento, é errado mesmo você internar sem o consentimento da pessoa. Mas eu penso, por exemplo, com pessoas que eu me deparei e que eu já participei de internações involuntárias, que se a pessoa não fosse internada ela se mataria, não ao certo, mas, se faz uma previsão, ou mataria outros, ou mesmo adoeceria fisicamente, sem um pensamento crítico sobre isso. Então, no cotidiano, é muito difícil a gente levar ao extremo os nossos ideais, nós fazemos muito isso na universidade. É muito fácil eu falar pra você que eu sou contra internação involuntária e que isso tem que acabar, mas no cotidiano eu me deparei com situações que eu, infelizmente, digo infelizmente por ser algo contraditório em mim, mas que eu concordei com a internação, pois eu prefiro ver a pessoa internada, mas daqui um tempo conseguir trocar uma idéia com ela, manter o vínculo e ajudá-la no que ela precisa pra se sentir melhor nesse mundo, do que vê-la fazendo algo contra sua saúde ou sua vida. Então acho que o mais importante nesse caso é que de fato essa decisão não seja particular de um profissional, não estou dizendo que outros profissionais devam assinar a internação, esse ato é do médico, mas que as condições disponíveis sejam feitas de forma coletiva, com opiniões de mais profissionais, da família, do indivíduo se possível, creio que essa forma de funcionar o serviço permite a gente pensar mais esse ideal.

(En)Cena – De fato lidar com algo tão complexo como o ser humano é uma tarefa muito difícil, contudo a psicologia se propõe a isso. E como a decisão de um só profissional é muito subjetiva e carregada de sua bagagem cultural, essa idéia de mais opiniões realmente parece atingir um patamar mais concreto e uma decisão mais próxima do que é justo.

Victor Melo – Fazendo assim, essa decisão permite colocar na mesa o que tem disponível para evitá-la. E evitá-la por quê? Primeiro pensando nesse ideal da liberdade, mas também pensando nessa especificidade.  Esse modo de decisão interdisciplinar ele permite não banalizar a decisão da internação, permite que ela seja mais cuidadosa e que antes dela possa haver outras possibilidades. A internação compulsória às vezes acontece sem uma devida avaliação, é deficitário, é algo demorado. Teve um caso que presenciei em que chegou a internação compulsória, a pessoa já tinha sido internada, estava refazendo tratamento, já estava com uma relação boa com o serviço e chegou internação judicial.

(En)Cena – É realmente muito complicado, o indivíduo de repente está no tratamento certo, no caminho certo para a uma melhora de vida e então chega a internação judicial. Nesse caso o médico não pode recorrer da decisão?

Victor Melo – Pode! Nesse caso, o que aconteceu foi que a médica pensou em assinar, porque é a praxe; nos serviços, as profissionais já estão lidando com tanta coisa que questionar o poder judiciário parece algo tão distante, apesar de possível. O que aconteceu nessa situação foi que ela não assinou, ela foi até sua equipe, que questionou a decisão judicial; ela sabia, era bem atenta ao projeto terapêutico, e sabia que a pessoa já tinha sido internada, que já tinha voltado a se tratar com ela, que estava estável. Então a equipe redigiu uma carta ao poder judiciário que foi aceita. Mas foi aceita porque o vínculo com as assistentes sociais desse meio eram bons, então elas mediaram isso.

(En)Cena – O problema é justamente essa praxe em assinar, então. Casos como esses poderiam acabar de uma maneira muito trágica.

Victor Melo – Sim, esse caso, talvez em outro canto, em uma equipe menos atenta, ele voltaria a ser internado.

(En)Cena – Você já trabalhou no CAPS Candido Mota, interior de SP. Lá você lidava com diversos casos de saúde mental, imagino. O CAPS apesar de garantir a liberdade ao indivíduo, querendo ou não, acaba servindo como um não-lugar, um local fora da sociedade no qual ele possa interagir, onde vai ser respeitado e bem tratado. Acredito que, dentro do CAPS, a pessoa deva criar um vínculo principalmente com o médico ou psicólogo que a trata. Então, qual seria um caso que teria te marcado muito?

Victor Melo – Então, um caso que me marcou muito foi de uma pessoa que tinha por diagnostico retardo mental grave com traços de autismo. Quando eu o conheci ele tinha em torno de 26 anos, obeso mórbido e que ficava 24h por dia dentro da casa dele, ele não saía. Então, você imagina a qualidade de vida dele, não interagia com outras pessoas além da família, era extremamente sedentário e não gastava energia. Na época que o conheci ele morava com o pai e a mãe e tinha umas manias de mudar os móveis dos cômodos; se ele colocasse na cabeça que tinha que tirar as coisas do quarto e levar para a sala, tinha que ser feito, se não ele ficava bastante agressivo. O pai e a mãe eram senhores, a mãe já estava bastante debilitada, e o pai já tinha em torno de 74 anos. Essa era a realidade dele, seus pais tinham dificuldade, a mãe era o alicerce da casa; apesar de, às vezes, ele a agredir, ela conseguia colocar um limite nele; já o pai tinha bastante medo dele. Contudo a mãe morreu e o pai teve que começar a rever sua posição de pai. Ele não era tão presente, mas passou a cuidar do rapaz. Então o pai começou a ir constantemente ao serviço pedindo a internação do sujeito. Diariamente, por umas semanas, praticamente, durante meses, toda semana, demonstrando-se muito cansado, mas não havia a indicação da internação. Ele não estava dando conta daquela situação, tinha muito medo, estava estressado, mas o estresse de um não justifica a internação do outro. O sujeito se comunicava por gestos, e em determinada visita que fizemos à casa dele, ele apontou para fora querendo dizer “quero ‘dá’ uma volta” e o pai traduziu pra mim o que ele queria, mas que a família não deixava porque tinha medo dele sair correndo. Tinha todo um fantasma em torno disso, andar na rua era uma coisa extremamente errada, perigosa. Eu não sei o que me deu, às vezes, a gente faz umas apostas que pode quebrar a cara ou pode dar certo, eu virei pra ele e falei,  “ô João (nome fictício) vamos combinar de ir até a esquina e a gente volta andando”. Ele fez que sim. O pai dele foi muito contra, mas eu insisti; então ele saiu do portão e titubeou porque ficou perdido, como se fosse um bicho, um gato saindo. “João lembra o combinado? Vamos ali, vamos andar”, eu falei. Eu estava com uma colega minha e ele seguia a gente: eu dava dez passos, ele dava dez passos… Quando voltamos para a casa, eu estava de carro, ele apontou para o carro, queria andar de carro; fomos. Durante o caminho, ele me guiava, apontava para virar, em determinado momento eu apontava para outros cantos e ele fazia que não, e indicava a direção oposta; então comecei a apontar o lado contrário do que eu queria ir, para ver se ele estava apenas me contrariando; era a última rua da cidade, eu apontei para uma direção e ele fez que sim. A rua terminava em um cemitério, no qual a mãe dele estava. E eu não sei até hoje se ele tem a noção do mapa da cidade ou o que aconteceu, mas então eu perguntei se ele queria ver a mãe; fez que não com a cabeça. Então perguntei se ele queria voltar, ele fez que sim. Na volta em nenhum momento ele apontou alguma direção. Depois disso comecei a levar ele para sair, andava com ele na praça, coisa que pra nós é básica, mas que para ele mudava a vida. Depois disso, ele começou a fazer coisas interessantes, começou a ir sozinho pra casa da irmã dele, uma coisa que não fazia antes… Esse caso marcou bastante pela intensidade da vivência.

(En)Cena: É realmente um caso bem comovente, mas ao mesmo tempo nós vemos o quanto foi arriscado, uma vez que é bem comum a agressividade em autistas. Havia chances de ele se rebelar, mas mesmo assim você fez a aposta e foi em frente, mas é justamente esse o trabalho do psicólogo, fazer o possível para o bem do tratamento. Mas, e no final ele foi internado ou não houve a necessidade?

Victor Melo: Antes de chegar nessa proposta, dos passeios, nós visitamos a casa dele com mais frequência depois que a mãe morreu, mas de fato foi uma aposta. E ele não chegou a ser internado, porque ele ia pra casa da irmã, então o pai ficava mais sossegado, a mania de mudar os móveis de lugar parou, porque a energia que ele gastava nisso ele começou a gastar nas caminhadas, colocou talvez uma perspectiva na vida dele.

(En)Cena: O portal EnCena agradece ao professor Victor Melo pela oportunidade dessa troca de ideias a qual é tão importante para alimentar e disseminar a discussão acerca da saúde mental. Essa conversa foi uma partilha de experiências sobre a saúde mental e os CAPS, tendo como plano de fundo a desterritorialização, mas é apenas o início desse câmbio de informações. Agora é ficar ligado no EnCena e retroalimentar o processo e a troca de conhecimentos.


Nota: texto originalmente publicado na Revista Laboratorio EU – www.revistaeu.blogspot.com – , do curso de Jornalismo do CEULP/ULBRA vinculada à disciplina de Produção Jornalística II – Revista orientada pela professora Jocyelma Santana.