Abrindo espaço para as diferenças

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Relato de experiência sobre o encontro entre religião e psicologia

Fonte Agência Brasil


A religião sempre fez parte da minha vida de maneira significativa, eu nasci em uma família que tem valores cristãos como norteadores, e pais pastores; quando criança a maioria das minhas lembranças foram construídas em ambientes como na igreja, retiros e eventos semelhantes, além da maioria das minhas amizades também serem construídas a partir dessa realidade.

Hoje, posso dizer que grande parte do que sou e acredito está baseado nessa construção e nesses valores a mim apresentados desde cedo. Por essa realidade sempre ser a maior parte daquilo que eu vivia, isso nunca gerou em mim conflitos e questionamentos tanto sobre as crenças que eu acredito, como sobre os costumes e pensamentos que carrego durante tantos anos.

Quando entrei no curso de Psicologia, foi um dos primeiros contatos com um meio em que tive a oportunidade de conviver com diversas pessoas que pensam e possuem crenças totalmente diferentes da minha, hoje em dia eu encaro isso como um grande privilégio, mas nem sempre foi assim.

O curso de psicologia é caracterizado pela discussão de diversos temas que podem ser vistos como delicados dentro da sociedade em que vivemos, além disso também é caracterizado pela diversidade de pessoas que optam por estudá-lo, construindo um ambiente de diferentes ideias, pensamentos e crenças. E isso começou a me causar crises de identidade sobre aquilo que eu passei uma vida toda aprendendo.

Teve determinados períodos e matérias que eu comecei a me perguntar se a psicologia realmente era para mim, por achar que para me tornar uma boa profissional teria que abrir mão daquilo que eu acreditava, e isso me gerou bastante sofrimento, em achar que iria me formar e nunca conseguiria atuar, e esse dilema foi crescendo em mim ao decorrer do tempo.

Fonte Agência Brasil

Quando eu entrei no sexto período do curso, comecei a fazer terapia, e lembro que em uma determinada sessão começamos a conversar sobre meus medos como futura profissional, lembro-me de ser a primeira vez que conversava com alguém sobre aquilo que pensei durante tanto tempo, e essa conversa foi essencial para mim.

Naquela sessão eu pude entender como a psicologia realmente funcionava, sem o peso que eu sempre coloquei sobre ela. Eu entendi que a psicologia não era sobre eu abandonar minhas crenças e ter a mesma opinião que meus pacientes, também não era sobre eu conseguir me conectar apenas com pessoas que pensam como eu, pois isso pode ser muito limitador, não apenas como profissional mas também como pessoa.

Comecei a entender que como prática clínica eu posso sim atender e ter um vínculo com alguém que pensa diferente de mim, sempre entendendo que o espaço terapêutico é do paciente e que eu jamais irei induzi-lo a nada, e sim ajudá-lo a despertar nele aquilo que ele pensa ser melhor, pois seria muita arrogância pensar que o diploma conquistado me dá o direito de ditar aquilo que é melhor ou pior para alguém, por fim, quando estava em supervisão clínica escutei uma frase que foi a cereja do bolo que faltava dentro desse processo: “Precisamos nos afastar ideologicamente e nos aproximar afetivamente”, isso abriu os meus olhos para entender as diversas possibilidades que a psicologia nos dá quando nos preocupamos com a pessoa que está a nossa frente e não com as ideologias.

Fonte Agência Brasil

Hoje eu vejo que essa experiência vivida no decorrer do curso me ensinou uma lição muito valiosa, a de que uma das coisas mais incríveis que nós temos na vida é o privilégio de conviver com pessoas que pensam diferente de nós, também pude ver o quanto perdemos quando escutamos o outro sem genuinamente se interessar em conhecer o mundo daquela pessoa e simplesmente como intuito de convencê-lo a pensar como nós.

Em suma, pude perceber que uma das coisas mais valiosas que existe é a diversidade, as diferenças, e quando elas são respeitadas conseguimos ser melhores e tornar o mundo um pouco melhor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Eugenia e etnocentrismo, uma sociedade segregada

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A luta pela sobrevivência deflagrou uma nova ideologia para melhorar a raça humana por meio da ciência.

Quando Charles Darwin escreveu sobre a seleção natural e difundiu a ideia de que a sobrevivência dos organismos dependia de sua adaptação no ambiente, importantes pensadores inclinaram-se sobre este conceito e destilaram novas teorias. A luta pela sobrevivência deflagrou uma nova ideologia para melhorar a raça humana por meio da ciência.

Francis J. Galton é o nome associado ao surgimento da genética e da eugenia, que significa “bem nascer”. Teorizando, seria o estudo dos fatores socialmente controláveis que podem elevar ou rebaixar as qualidades raciais das gerações futuras, tanto física quanto mentalmente. Por meio de casamentos e uniões seletivas, Galton acreditava que poderia modificar a natureza das pessoas, separando aqueles que supostamente eram “perfeitos” e preservando assim a qualidade das futuras gerações.

A degeneração biológica passou a ser uma preocupação e a proibição de uniões indesejáveis era algo bastante coercivo. Propostas políticas de higiene ou profilaxia social passaram a surgir em vários países, dentre eles o Brasil. Em 1923, foi fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental, pelo psiquiatra Gustavo Riedel, que ganhou sustentação nos pressupostos eugenistas, atingindo, posteriormente, o campo social. A eugenia era vista por Riedel como o “paraíso terrestre”, reafirmando os pressupostos de Renato Kehl, o mentor da eugenia no Brasil.

Fonte: https://goo.gl/qmFsfJ

“A mulher é vigiada não apenas para ter um feto saudável, com saúde perfeita.” – — Breno Rosostolato

O aspecto cultural e social da eugenia é o que chama a atenção, em vários países, inclusive o Brasil. As explicações para as crises econômicas e políticas isentavam as elites e imputavam toda a responsabilidade ao povo. Ou seja, os problemas de uma sociedade eram justificados através de uma constituição étnica e na presença de raças inferiores.

Na Alemanha, a Lei de Nuremberg, alicerçada nos pressupostos eugênicos, proibia o casamento de alemães com judeus, o casamento de pessoas com transtornos mentais, doenças contagiosas ou hereditárias. Propunha-se a esterilização de pessoas com problemas hereditários e que poderiam comprometer a saúde da raça ariana, associado a isso toda a perversidade e crueldade de uma mente doentia de um ditador como Hitler, que desejava conquistar o mundo. O documentário “Homo Sapiens – 1900”, do diretor sueco Peter Cohen, aborda de maneira enfática as práticas eugênicas durante o holocausto. Um verdadeiro genocídio cruel e injustificável.

Esta concepção de eugenia traduz-se, hoje, no biopoder difundido por estudiosos e intelectuais, com o propósito de estudar estratégias de intervenção sobre a vida cotidiana. Entretanto, alguns preconceitos revelam-se como absurdos propagados pelo biopoder, pois se atribuem à marginalização de “raças inferiores” os conflitos sociais, a pobreza, o aumento da violência, as drogas e por aí vai. Questões como o racismo e o sexismo são reveladas. O aconselhamento genético, por esse ponto de vista, é um espaço de poder e controle, ancorado nas concepções dessa nova genética, determinando a subjetividade das pessoas, pois não temos identidade, mas bioidentidades.

Fonte: https://goo.gl/81DHAU

A mulher é vigiada não apenas para ter um feto saudável, com saúde perfeita. O seu corpo sofre muito mais intervenções médicas, comparado ao do homem. A identidade da mulher é influenciada por essas exigências. Na maioria dos casos, o homem permanece numa posição despreocupada. São inúmeros as técnicas e procedimentos resultantes do biopoder como controle populacional e de natalidade, fertilização in vitro, diagnóstico pré-natal e pré-implantação, aborto terapêutico e clonagem reprodutiva.

Métodos científicos estão a serviço da saúde e da sociedade e possuem como alicerces ideológicos um controle adequado e seguro de doenças, a ponto de antever o surgimento de deficiências ou patologias congênitas, do crescimento descontrolado da população e, por último, o mapeamento do DNA. A genética é a área que se utiliza desses estudos científicos, difunde conceitos, ponderações e determina os aspectos adequados para a existência humana. São métodos eugênicos que estão por trás desses propósitos de prever eventuais problemas.

Porém, a eugenia não cessou. Este movimento social reforça o conceito de etnocentrismo que impera no mundo. Sociedades segregadas por diferenças religiosas são motivos para guerras infinitas e exterminações sumárias. A intolerância sexual, como a misoginia e o antifeminismo, assassina mulheres simplesmente por serem mulheres. A homofobia, lesbofobia e transfobia são intransigentes quanto às identidades sexuais, uma visão rebuscada da heteronormatividade. O racismo é enraizado na sociedade e se manifesta de maneira escancarada, para quem quiser ver. Vivemos um momento social em que essas seleções naturais são praticadas sim, defendidas amplamente por extremistas, fanáticos e radicais. Um sectarismo que não admite a opinião contrária, uma pasteurização social que assola e enfraquece esta infeliz civilização. Civilização?

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Thoreau: queijo ou escritor?

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Fonte: http://www.quotesigma.com/wp-content/uploads/2015/03/Henry-David-Thoreau-Quotes.jpg

DESEJO dizer uma palavra em nome da natureza, em nome da liberdade absoluta, em nome da amplidão, que contrastam com a liberdade absoluta, em nome da amplidão, que contrastam com a liberdade e a cultura das cidades – no sentido de considerar o homem como um habitante da natureza, ou parte e parcela dela, e não como um elemento da sociedade (THOREAU, 1950, p. 1)

O filósofo norte-americano Henry David Thoreau (1817-1862) acreditava que “todas as coisas boas são selvagens e livres”, que as leis do homem suprimem em vez de proteger as liberdades civis e que era dever do individuo protestar contra as leis injustas. (BURNHAM; BUCKINGHAM, 2011, p. 204). Por ter ideias como estas, é considerado o pai do anarquismo.

Às margens do lago Walden, em Massachusetts, nasce o livro Walden, o qual foi atributo ao seu irmão já falecido John. Este é um dos livros mais importantes, juntamente com o livro Desobediência Civil (L&PM, 2016). Em sua obra Walden (1854), Thoreau apresenta um ensaio sobre a vida simples, modesta e natural, embasado no “desejo de simplificar a sociedade e eliminar as desnecessárias complexidades da vida contemporânea”.

Em seu livro Desobediência Civil (1849), Thoreau coloca “o julgamento final sobre qualquer ato no âmbito da consciência do indivíduo e demonstrando claramente a incapacidade do governo” (WOODCOCK, 2006, p. 242). Thoreau introduz com o lema “o melhor governo é aquele que menos governa” (THOREAU, 1950, p. 1); levado ao limite, esse lema seria abrangido para “o melhor governo é o que não governa de modo algum” (idem). Essa seria a forma de governo, para quando os seres humanos estivessem preparados.

O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele (IDEM).

Fonte: http://www.laparola.com.br/wp-content/uploads/2014/07/povo-pol%C3%ADtica-governo-discurso.jpg

Os homens passam a desenvolver no estado o papel das máquinas. Polícias, exército, os carcereiros e assim por diante. É comum que tais homens, sejam apreciados como bons cidadãos, apesar que, para o estado não são mais que um espantalho, cachorro ou pedaço de madeira (THOREAU, 1950). Há outra parcelas de homens que servem ao estado com a cabeça, são os legisladores, políticos, advogados, funcionários e dirigentes, Thoreau confronta que provavelmente “eles sirvam tanto ao Diabo quanto a Deus – sem intenção -, pois raramente se dispõem a fazer distinções morais” (IDEM). E por fim, há os homens que servem com a consciência, este são os heróis, os patriotas, os mártires e reformadores. Em síntese “a massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando os corpos” (IDEM).

Thoreau: na natureza selvagem

Fonte: http://mochilabrasil.uol.com.br/wp-content/uploads/2014/02/nns03.jpg

O drama Na Natureza Selvagem (Into The Wild, 2007), dirigido e roteirizado por Sean Penn, baseado no livro (1996) de mesmo nome do autor Jon Krakauer, narra a história do jovem Christopher McCandless (Emile Hirsh) que trocou a vida agitada na cidade e as cobranças sociais pela morosidade da vida simples na natureza, mudando seu nome para Alexander Supertramp, e ainda descartou documentos pessoais e dinheiro. A atitude tomada representa uma cisão com a sociedade e consequentemente com sua família, sendo um protesto individual, que Thoreau denominava “a ação por princípio” que para ele “era por si só “essencialmente revolucionária”: todo homem deveria agir de acordo com a sua consciência e não em obediência às leis criadas pelo Estado” (WOODCOCK, 2006, p. 242).

Em paralelo com a caminhada de Supertramp, Thoreau apresenta um ensaio nomeado Walking, com suas traduções em “Andar a pé” ou mesmo, “Caminhada”. Neste ensaio (THOREAU, 1950) o autor discorre sobre as façanhas e historietas de andar a pé. Por sua vez é o estilo de vida elegido por Supertramp. Estar ao sol, ao vento, entre as árvores, no bosque e na floresta é para o homem, a liberdade e o encontro consigo. O aprender e o desenvolver, entrar em contato com a vida. Muito tempo trancado em casa ou prédio desenvolve no ser humano uma hipersensibilidade. Em contraposição, em contato com as adversidades da natureza, gera no homem capacidade de se adaptar e suportar problemas/dificuldades. Esse homem na e da natureza é o ser humano que se desenvolve de forma plena. O ser humano da cidade apresenta uma pele fina e sensível; assim como a pele é o contato com o mundo, também é dessa forma homem o contato com o mundo, com o outro e consigo, de forma sensível, delicada, e cuidadosa.

Fonte: http://www.sejaumviajante.com.br/wp-content/uploads/2016/04/na-natureza-selvagem2.jpg

Supertramp, durante a sua aventura, registra em um diário o contato com a natureza e com outras pessoas que encontra ao longo de sua jornada. Essa sua conduta possivelmente foi inspirada na experiência de Thoreau narrada em seu livro Walden, que relata acontecimentos corriqueiros vivenciados num período de dois anos em que ele esteve solitário. Algo que também se torna interessante na fala de Supertramp, e que, pode ser percebido talvez como fundamental na existência humana, é quando ele relata que ‘’a felicidade só é verdadeira se for  compartilhada’’. Essa frase pode levar o leitor a repensar, após conhecer a jornada vivenciada pelo sujeito, de que cada um de nós precisamos estar atentos as consequências de nossas escolhas e a valorizarmos cada passo de nossas jornadas e relacionamentos que surgem ou sugira nesse processo.

O protagonista do filme, inspirado em autores como Tolstoi, Thoreau e Lord Byron, deixa a proteção da família em busca de viver verdadeiramente, pois apenas na natureza o ser humano consegue encontrar e experienciar o real sentido da vida, já salientava Thoreau (1950).

(Des)curso

Thoreau teoriza que os seres humanos estão vivendo apenas de acordo com as leis dos homens, deixando de lado experiências que podem servir para ampliar e fortalecer mente e corpo dos sujeitos. O autor deixa claro que a convivência com a natureza pode levar o homem a se tornar um ser que consegue se adaptar melhor ao meio que vive, desenvolver soluções para as dificuldades e tornar-se menos frustrado com a vida.

Este teórico com seus postulados desestabiliza o indivíduo contemporâneo, ao colocar sobre sua ótica o real sentido de estar vivo contrapondo-se ao ideal publicizado nas mídias, ao discurso preconizado pelo modelo econômico. Convida a todos a se desprender do comum, sair da zona de conforto, adentrar na Natureza desvelado para desvelar sua identidade.

 Os pensamentos de Thoreau vêm tornando-se um grito de protesto contra a hipocrisia, as falácias e a superficialidade das relações humanas deterioradas pelo instituído.

Fonte: http://data.whicdn.com/images/25187625/tumblr_m0yqb2YPMq1rrkqjso1_500_large.jpg

A experiência cinematográfica e literária fomentou nos acadêmicos um novo olhar sobre a natureza/homem, a vida mais simples, sendo uma atitude oposta á conduta socialmente aceita, superando, talvez, este “velho” paradigma, de uma vida convencional, com seus padrões de comportamento e consumo.

Por seu enredo instigante e atemporal o filme se torna uma experiência sensorial- certamente influenciado pela excelentíssima trilha sonora de Eddie Vedder- assisti-lo novamente é inevitável. O telespectador identifica-se com a vivencia e decisões dos personagens, levando-o a uma reflexão das escolhas e suas consequências, certamente o longa não despertará o mesmo tipo de reação em cada um que o assistir, no entanto não há como ficar indiferente a ele.

Referências

BURNHAM, Douglas.; BUCKINHAM, Will. O livro da Filosofia. Editora Globo, São Paulo, SP, 2011.

THOREAU, Henry David. Andar a pé. Rio de Janeiro: Domínio Público, 1950. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/andarape.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2016.

L&PM. Thoreau. Vida e Obra. Disponível em: <http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134>.Acesso em: 25 mar. 2016.

NA NATUREZA SELVAGEM. Direção de Sean Penn. Produção de Art Linson, Sean Penn, William Pohlad. Eua: Paramount Pictures, 2007. Son., color.

WOODCOCK, George. História das ideias e movimentos anarquistas – v.2: O movimento.Porto Alegre: L&PM, 2006.

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The Walking Dead – Dias Passados

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Walking Dead 1

“Ela não merecia isso. Ninguém merece isso.”

Dale (personagem)

Febre mundial, a franquia The Walking Dead não só ressuscitou a cultura dos mortos vivos, como a tornou uma marca da sociedade moderna – tal como os vampiros – com seguidores fervorosos de todas as idades. O sucesso sazonal destes sub-arquétipicos (o arquétipo principal representado seria a Morte, ou a eterna fuga dela) atrai a atenção para uma análise mais profunda dos significados que o material pode trazer e, talvez, encontrar a essência que agrega e leva a uma identificação coletiva com a obra.

Walking Dead 2

Campeão de vendas nas livrarias e bancas, líder de audiência na TV, tornando-se um dos programas mais populares dos últimos anos e fenômeno de popularidade onde é exibido, a série The Walking Dead merece respeito. Não credito o seu reconhecimento com caráter de admiração do produto em si, mas sim devido a sua capacidade de adentrar de uma maneira tão massiva no inconsciente popular em uma época que prima pela diluição da atenção nos programas de entretenimento. Por isso a necessidade de analisar de maneira sucinta, sem preconceitos de suas origens, a razão de tal fascínio por essa obra que já está marcada como representação do nosso tempo.

Optei por fazer uma análise dos quadrinhos no lugar do seriado, por ser a fonte primeira onde o criador, o americano Robert Kirkman, expõe de maneira subjetiva seus conceitos de moral, ética, política etc. Ao serem adaptados para a televisão muitos detalhes são perdidos, a cronologia pode ser alterada e fatos podem ser modificados drasticamente a favor de uma audiência ou censura; nas revistas encontramos o material puro para ponderação.

Apesar das semelhanças com o seriado, o nível de violência visual é alto nos quadrinhos, porém tudo em preto e branco. Em um enredo onde a qualquer momento alguém pode ser canibalizado ou ter a cabeça decepada por um machado, foi uma escolha sensata, já que as páginas da revista procuram ser o mais detalhista possível e o esmero e criatividade ao demonstrar as várias possibilidades de desconstrução de músculos, articulações e vísceras que são apresentadas constantemente, de maneiras chocantes, sempre surpreendem. Na TV temos o choque, a cena acontece, surpreende, no entanto há um continuum que necessita substituir um fato pelo outro a favor da atenção da audiência. Já na literatura há, em especial nesse gênero, o horror diante do que é apresentado e, a depender do nível de violência que algumas páginas trazem, ficamos inertes e boquiabertos segurando o livro e encarando a página por algum tempo, diante do assombro que a história nos coloca. Outro detalhe dos quadrinhos: o que na cultura popular ficou conhecido como zumbis ou mortos-vivos, tal termo não é citado em nenhum momento neste primeiro volume; a nomenclatura clássica ganhou as seguintes variantes: “os andantes”, “os errantes” ou “os mordedores”; estes são alguns dos nomes que foram escolhidos para nomear aqueles seres em decomposição e eternamente famintos. É bom salientar que a simbologia que os “mortos-vivos” de TWD trazem não é tão diferente daquela iniciada por George Romero em seu A noite dos mortos-vivos (1968), mas se distancia em significado quando comparados ao mesmo mal epidêmico de filmes como Extermínio e Guerra Mundial Z – mas essa questão fica para outro artigo.

Walking Dead 3

A primeira coletânea que será analisada aqui corresponde aos números um ao seis com o título nacional de Dias Passados (Days Gone By, 2003), publicado pela editora HQM no Brasil. Nele somos apresentados ao protagonista da série, o oficial Rick Grimes, policial do estado da Georgia; através desse homem observaremos as transformações que essa “epidemia” estará impondo. Escolher um policial, pai de família, que tem valores éticos e morais fortes é uma forma do escritor colocar à prova os conceitos e ideologias do leitor. Existia uma sociedade pautada por leis e regras, se elas serão úteis nesse “novo mundo” é algo que o texto sempre trará a tona. Uns desejarão retomar a antiga ordem, para outros é necessário uma adaptação, se não uma transformação social adequada diante da derrocada do cenário social vigente.

O INÍCIO DO FIM

Walking Dead 4

A primeira ideologia posta em prova logo nas primeiras páginas – e que será recorrente durante todos os números – é a segurança. A representação de um sistema de segurança frágil onde os meios de contingência da violência não asseguram total proteção e paz social como utopicamente prega, toma forma no tiroteio em que Rick é baleado. Alvejado gravemente na troca de tiros: o primeiro pilar social, a segurança, é demolido em uma única página de The Walking Dead.

Walking Dead 5

Em seguida, Rick acorda em um hospital. O silêncio não assusta, já que isso é uma característica do local; falta de assistência, não. Ao sair pelos corredores, encontra tudo deserto. Nada de médicos ou enfermeiros e, aparentemente, ele é o único doente. Ao chegar ao elevador encontra uma pessoa morta. Desesperado, chega ao refeitório. Ao adentrar a sala – em uma pequena ironia – encontra várias pessoas em estado de putrefação se movendo. Aqui, pela primeira vez, Rick enfrenta um desses mortos. Ele tenta dialogar, mas percebe que a comunicação não tem efeito, sua única alternativa é recuar.  Ele sai do hospital abandonado sem compreender o que acabou de acontecer.

Os avanços que tivemos na medicina permitiram ao ser humano vislumbrar uma extensão, cada vez maior, dos seus anos de vida. E essa evolução chegou a ponto de tentar deter os “sintomas” da velhice: falta de tônus muscular, perda de agilidade, problemas diversos nos organismo etc. No hospital é onde as limitações são “consertadas”, o paciente busca uma solução para se manter tanto interna quanto externamente condizente com os parâmetros de uma pessoa saudável. Observar, nos quadrinhos, homens e mulheres andando pesadamente, em decomposição pelos corredores é a pá de cal sobre a única possível solução de cura para o problema da epidemia. No despertar de Rick neste pesadelo é dito, de forma indireta, que nem sempre a ciência vai ter respostas e, muito menos, a cura. Temos a queda de mais um pilar social: a ciência. Para os leitores, que já entendem o que está ocorrendo, fica sensível que o problema dos mortos vivos não pode ser contido nem pelos cientistas e muito menos pelo sistema de segurança da sociedade.

Walking Dead 6

Ao ir para a rua, Rick percebe o abandono a que a cidade foi deixada, não há nenhum ser vivente, nem pessoas ou bichos. O que ele encontra são “monstros” com características que lembram humanos, em decomposição, inertes ou rastejando pela cidade. Tudo é muito difícil de entender, não é possível digerir o horror e a estranheza que o cerca, então ele vai atrás da única referência de humanidade que ainda lhe resta: sua família. Ao chegar a casa, percebe que tudo foi abandonado. Após o choque do medo vem o desalento da solidão e uma entrega sobre a aparente pressão que está sofrendo com os fatos vividos. Isso, até ser surpreendido com uma pancada na cabeça. Metaforicamente era preciso abandonar velhos padrões para entender o que estava ocorrendo; não será apegado a um mundo que não existe mais que ele terá alguma resposta e muito menos conseguira sobreviver se ainda tiver parâmetros de uma sociedade totalmente destruída, assim é necessário haver uma ruptura, uma separação entre o que era conhecido e o novo para sobreviver.

Morgan Jones explica a situação para Rick, e sem rodeios descobrimos que o sistema de informação ruiu com uma semana de crise. Durante a conversa dos dois, a primeira que Rick tem com uma pessoa depois que consegue escapar do hospital, pode-se notar ao fundo dois quadros onde temos duas cabeças de cavalo. A leitura que podemos fazer é que ambos estão cientes e dominantes de sua capacidade de racionalizar, o instinto é intrínseco às espécies, até na humana, mas a capacidade de mensurar os fatos e escolher a opção mais apropriada é comum somente ao homem e naquele momento temos a racionalização humana em foco.

Walking Dead 7

Ao buscar as armas e carros na delegacia, são expostas duas características que acompanharão toda a saga de The Walking Dead: as armas são a melhor resposta para uma sociedade doente que não ouve e nem dialoga e que o enfrentamento a esse grupo descontrolado só deve ocorrer em momentos de crise, o que diferencia os vivos dos “mortos” é a racionalização e a ponderação, isso permite segurança e controle da situação e uma diferenciação de quem age pela razão ao invés dos impulsos.

Nas últimas páginas do primeiro número, Rick retorna ao local onde encontrou um “andante” e atira na sua cabeça. Sinal que ele não encara aqueles seres como humanos, mas as lágrimas que escorrem dos seus olhos demonstram que há ainda uma identificação, pois no passado todos eram iguais.

EM BUSCA DO PARAÍSO PERDIDO

Walking Dead 8

A capa do segundo número é icônica para a saga, algo correspondente ao pôster da série na primeira temporada: Rick sobre um cavalo em uma estrada repleta de carros parados e pessoas mortas dentro. Um sinal que todos os referenciais que estão ligados ao conceito de civilização devem ser abandonados.

Walking Dead 9

Ao iniciar sua caminhada para Atlanta, Rick é levado na esperança de encontrar sua família e de ter respostas e assistência na capital. Na travessia, ele para em uma fazenda e encontra um grupo de cadáveres na sala. Vale ressaltar que a cena é rápida mas cheia de nuances: nela encaramos o resultado daqueles que não suportaram a pressão, ou seja, perderam a fé. O cenário delineia que era uma família religiosa – por causa da bíblia em suas mãos e a cruz na parede – e que o pai provavelmente decidiu matar a todos os familiares e depois tirar a própria vida. Ao contrário dos outros pilares que são destituídos e abandonados – ciência, segurança e família – a fé religiosa nunca é posta totalmente de lado no universo de The Walking Dead e sim renovada de acordo com as provações enfrentadas, adaptando-se a cada nova tragédia sem sentido que ocorre na saga.

Walking Dead 10

Ao encontrar um cavalo, a história coloca Rick com sua racionalidade ativa, o cavalo representa o controle apesar de tudo que ocorre a sua volta. Acredito que essa insistência em mostrar o animal é uma maneira de situar a importância do personagem para a história, Rick tem a capacidade rara de manter a racionalidade em momentos delicados. Aos poucos, Rick é colocado no caminho do herói.

Sair do interior e ir para uma metrópole é uma experiência, sua individualidade deixa de existir para adentrar a massa – aquela que adapta comportamentos, determina posições e modifica personalidades – e é difícil permanecer fiel a sua moral e valores diante de uma força que adentra sem qualquer sutileza e exige adequações que podem trazer conseqüências, desde a rejeição a um auto-isolamento. Rick adentra com seu cavalo a cidade e são logo cercados pelos “habitantes” de Atlanta; eles avançam famintos sobre os dois como predadores em matilha.

A morte do cavalo simboliza a luta e os desafios que Rick terá de enfrentar dali para frente. O último resquício de civilização e racionalidade como o policial conhece devem ser transformados para que assegure sua vida. Pensar do mesmo modo, baseado nas mesmas estruturas, o fará cair entre a massa de “andantes” sem causa e sem rumo. Sua crença no aparato que uma sociedade moderna poderia oferecer não existe mais, o sentido de segurança, ciência e fé tem que tomar nova forma, a partir do interior, com regras próprias que o permita avançar rumo à sobrevivência.

Walking Dead 11

Nas últimas páginas deste capítulo, Rick é salvo por Glenn que explica toda a situação que ocorreu em Atlanta e o leva para um acampamento. Para sua surpresa, lá ele encontra, entre um grupo de sobreviventes, sua mulher e seu filho. A redenção e a esperança são oferecidas para o herói, mas a que preço?

Walking Dead 12

 

LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE?

O grupo que está no acampamento é uma representação nuclear de uma pequena cidade conservadora americana: jovens, idosos, crianças, trabalhadores e donas de casa; todos tentando emular um estilo de vida que não existe mais. A tônica aqui é manter firme a ilusão de que algo os tirará daquele pesadelo, enquanto isso não ocorre o melhor é esperar e sustentar o cotidiano e a saúde mental com banalidades que remetem aos “dias passados”.

Walking Dead 13

Uma das discussões levantadas neste capítulo é sobre a igualdade de gêneros. Enquanto Dona, uma senhora conservadora, mas consciente dos caminhos percorridos historicamente pelas mulheres, reclama sobre a clássica divisão de serviços, Lori, jovem mãe de classe média, não reclama e reafirma sua condescendência perante o papel que representa no grupo. Posteriormente, observamos Shane, Rick e Dale em uma caçada com posicionamentos machistas sobre as mulheres. A normatização do papel da mulher é algo natural ou imposto por uma sociedade patriarcal? As pressões impostas pelos eventos vindouros, no universo de TWD, demonstrarão que conceitos de gênero rígidos não significam vida longa para um personagem, a fragilidade, independente do sexo, é indicativa de morte.

Uma das características de TWD não são o perigo constante encarnado nos “andantes” e sim o comportamento de qualquer um dos sobreviventes que aparecem durante a saga. É quase impossível viver sozinho em um mundo com esses traços. Em grupos há maiores chances de sobrevivência, no entanto, a imprevisibilidade do comportamento humano é assustadora. O instinto de sobrevivência, a sede de poder e a intolerância são alguns exemplos que podem levar a ações extremas entre os componentes do grupo. No quarto capítulo a tragédia é desenhada em torno da possível obsessão de Shane com a mulher de Rick. Além de ficarem atentos com a voracidade dos “mordedores”, os impulsos passionais podem ser tão ou mais perigosos que eles e, sempre, surpreendentes.

Walking Dead 14

O REI ESTÁ NÚ

Para viver em comunidade é preciso regras, leis e aceitação, mesmo que silenciosa, de todos. A idéia inicial é permanecer no acampamento próximo a cidade e esperar uma possível ajuda do governo. Quem está a frente desta opinião é Shane que logo encontra um opositor em potencial. Depois de tudo o que Rick vivenciou antes de chegar a Atlanta, ele sabe que a situação é bem mais grave do que o grupo a qual se inseriu imagina; para ele as esperanças presentes são frágeis e que é necessário lutar pela sobrevivência e não esperar serem salvos. Essa percepção do protagonista reforça a queda de mais uma estrutura social: o Governo. Mais do que opiniões diferentes, são vidas que, indiretamente, estão nas mãos daquele que é considerado líder e uma decisão errada pode levar a morte de todos. Na discussão política dos dois sobre qual seria a melhor opção – permanecer ou sair do acampamento – a liderança vai muito além de uma representação de poder – como usualmente temos hoje – para literalmente ver as conseqüências de uma decisão errada modificar a dinâmica do grupo ou fazê-la sucumbir diante dos perigos que os cercam.

Rick sabe que é preciso correr riscos para manter sua vida e a do grupo, por que o que diferencia os vivos dos “mortos” é a capacidade de mover-se de forma ágil, racionalizar uma situação e optar pela melhor alternativa. Todos precisam aprender a se defender, mas para isso precisam de armas, então ele e Glenn vão em busca de algumas em Atlanta. Aqui temos o paradoxo do enredo: o que seria aquela massa de devoradores de carne que busca cegamente um desejo, mesmo que isso custe vidas? O que os diferenciam uns dos outros?

Walking Dead 15

Para o psicanalista Mario Corso (2013) “o fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror.” Perceba que “os andantes” parecem aquém do que os rodeia, a massa faminta que avança sobre os sobreviventes é uma ilusão, paradoxalmente não existe uma percepção do outro entre eles, existe uma ilusão de ser especial representada pela vontade infinita em consumir. Podemos fazer uma analogia com a sociedade atual que acredita na sua individualidade pela construção de um sujeito de consumo. Corso desenvolve que “o fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos.” Rick e Glenn passam sangue de um dos “mordedores” executados pelo corpo para se misturar a eles. Se misturar as massas na modernidade liquida é adequar-se a valores éticos, morais e ideológicos que não correspondem a sua personalidade, mas assegura a sobrevivência; qualquer sinal que demonstre que eles não seguem a “filosofia de vida” da massa que os cercam, trará a tona raiva, fúria e “fome” irracionais. Uma grande ironia para a sociedade atual.

TODOS OS MONSTROS SÃO HUMANOS” (da série American Horror Story)

Aos poucos, Rick começa a influenciar o grupo que o adotou. Todos começam a aprender a usar armas, inclusive seu filho de sete anos – um processo que remete as culturas antigas que através de rituais procuravam direcionar o crescimento espiritual e a representação do indivíduo no grupo ao qual está inserido; o pequeno Carl e as outras crianças sobreviventes serão os filhos dessa nova sociedade dura e implacável que não permite mais brincadeiras e sonhos de um futuro promissor. Sobreviver um dia de cada vez será a luta contínua dessa nova geração.

Walking Dead 16

A noite chega e todos estão reunidos se alimentando enquanto contam como eram suas vidas antes de chegarem ao acampamento. Lembrar dos familiares perdidos, da rotina que tinham e dos sonhos que não existem mais é uma constante em TWD; os personagens procuram incansavelmente entender todo aquele horror pelo qual passaram. Olhar o passado é uma forma de buscar detalhes ou respostas para toda aquela situação.

Durante a reunião, vários “mordedores” surgem pegando de surpresa o grupo. Atacados por todos os lados, alguns personagens sucumbem. A situação demonstra que os avisos de Rick estavam corretos, o único meio de continuarem vivos é saírem daquele lugar e se afastar da cidade. É um risco, mas em decorrência dos acontecimentos, soa como melhor alternativa. Menos para Shane.

 

EFEITOS COLATERAIS

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No último capitulo temos o fim da esperança. O objetivo principal passa a ser a sobrevivência. Não irei detalhar os acontecimentos que fecham esse primeiro volume – já há muitos spoilers em todo o texto, que a “cereja do bolo” seja saboreada por aqueles que comprarem a coletânea – o que fica evidente é a escolha do autor finalizar esse primeiro arco com uma tragédia entre os sobreviventes e não em um embate com os “andantes”. Assim ele se distancia do simples e barato horror que poderia emular nas páginas para se aprofundar no drama e nas transformações internas que aqueles personagens sofrerão durante a saga.

A presença dos “mordedores” é constante e eles representam a morte encarnada pronta para dar o bote, basta baixar a guarda e não estar atento. Porém, rastejando sorrateiramente pelos corações está o ódio, a inveja, a luxúria e a soberba para turvarem seu caminho. As três páginas finais demonstram, segundo o autor, que não é necessário ser mordido para se tornar um ser irracional movido por uma pulsão, viver já nos deixa a mercê de muitas outras.

Ao ler ou assistir a série sempre torcemos pelos mocinhos e nos identificamos com seus feitos de altruísmo e coragem, mas, subjetivamente, o autor parece apontar que se não estamos mais próximos da alienação dos “andantes”, é difícil escapar das fraquezas que levam a fragmentação e, consequentemente, a destruição decorrente das paixões humanas.

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THE WALKING DEAD – DIAS PASSADOS (VOL. 1)

Criador e Escritor: Robert Kirkman
Artista: Tony Moore
Editora: HQM

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Trabalho como ideologia: necessidade, prazer ou escravidão?

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O termo trabalho e sua significação modificou-se ao longo do processo histórico, essa evolução é reflexo de como o sujeito apreende e reproduz as formas de trabalho no seu cotidiano. O texto apresenta uma discussão sobre o impacto desta tarefa na sociedade, e como os processos políticos, ideológicos, religiosos convergem nessa ação evolutiva, e ainda como o indivíduo fomentou a alteração do conteúdo inerente ao labor e como esta ação humana propiciou o desequilíbrio emocional o que possibilitou a busca de autoafirmação, acarretando assim sofrimento ao sujeito.

Fonte: https://curseduca.com/blog/wp-content/uploads/2014/02/profiss%C3%B5es.jpg

Ao colocar o vocábulo trabalho em destaque, Suzana Albornoz (1998) no seu livro “O que é trabalho” salienta que o mesmo cotidianamente pode ser utilizado e compreendido de forma divergente, visto que, este termo possui muitos significados quanto ao seu conteúdo. Em quase todas as línguas oriundas da cultura europeia essa palavra apresenta mais de um conceito ou pode ainda ter duas palavras com a mesma significação, a exemplo observa-se o termo trabalho e labor que na língua portuguesa refere-se a “realizar uma obra que te expresse, que dê reconhecimento social e seja repetitivo, sem liberdade, de resultado consumível e incômodo inevitável” (p. 9).

A expressão trabalho segundo Albornoz (1998) supõe esforçar-se, no entanto, para alguns, esse esforço será exclusivamente físico enquanto para outros será preponderantemente intelectual, mas um necessita do outro para alcançar a realização do produto final. Clot (2007) em sua obra “A função psicológica do trabalho”, evidencia que este é o precursor de vivencias dolorosas ao indivíduo, porém, esta tarefa o aproxima da realidade, portanto, esta ação humana é o cerne da sociedade atual.

Nesse contexto compreende-se que, culturalmente existe uma discrepância desse conceito e conteúdo, visto que, é mutável de acordo com a época histórica e como a sociedade introjeta essa pratica. É através do trabalho que o homem promove as relações com o outro, com o mundo, estabelecendo-se como um ser social, a cristalização e divisão do trabalho surge de forma inerente ao desenvolvimento de socialização, para tanto, o impacto social se manifesta através de como o sujeito se relaciona com o trabalho e do sentido que a pessoa emprega para o mesmo (CANOPF, 2014).

A análise salienta um contexto histórico sobre trabalho, este, surgiu a partir da agricultura como forma de subsistência, o qual era “regido por um sistema de deveres religiosos e familiares” (ALBORNOZ, 1998, p. 16).  Com a ideia de propriedade privada irrompeu o produto excedente gerando a existência de uma classe ociosa, esta reivindicou a posse e iniciou as trocas de produtos, que se tornaram desiguais, pois o sujeito com maior território sobrepujava o excedente do vizinho. A evolução da propriedade e separação do trabalho resultou da prática da guerra, esta que ampliou a força de trabalho ao conquistar novas propriedades e capturar escravos.

Fonte:http://replygif.net/thumbnail/937.gif

Com o desenvolvimento do trabalho artesanal concomitantemente intensifica-se o comércio, propiciando o surgimento da moeda. A evolução do comércio oportunizou o nascimento a burguesia, “uma comunidade de habitantes de cidades que auferia uma renda das atividades comerciais”, estes comerciantes bem-sucedidos começaram a empregar trabalhadores, possibilitando a criação de uma hierarquia econômica. Sobre o advento da Revolução Industrial, a autora aponta que a mesma ocorreu em três estágios de desenvolvimento da tecnologia: Revolução tecnológica do século XVIII (máquina a vapor), Eletricidade no século XIX e a Automação, a partir do século XX com a invenção do computador. Tal progresso cientifico, fruto do trabalho humano que prometia a ociosidade das massas, veio para as minorias, tornando-se paradoxal, pois o avanço da ciência proporcionou melhorias para a Indústria, mas, não garantiu melhorias para o trabalho humano, distanciando-os da sua felicidade.

Guatarri (2001) no livro “As três ecologias” ao conjeturar sobre este paradoxo corrobora com Albornoz (1998), pois salienta que a ciência desenvolveu meios técnicos-científicos capaz de resolver os problemas ecológicos dominantes, com a justificativa de melhoria de vida para a população, no entanto, não é utilizada pelas forças subjetivas de forma funcional, para resolver, por exemplo, a miséria humana, visto que, a ciência está a serviço dos dispositivos de controle social. Tal fato, também é reforçado pela autora quando se refere ao processo de colonização exploratório da América Latina, mesmo após o desenvolvimento industrial, a modernidade acarretou ainda mais injustiça social e a exclusão.

O processo de alienação do trabalho está intrínseco a modernidade, ao processo de produção, Suzana (1998) evidencia que o trabalho é alienado do trabalhador, pois este vende seu tempo e sua capacidade a outro, ou seja, não possui, tão pouco detém os meios de produção, não conhecendo o produto final do seu trabalho, vende-se até mesmo a sua personalidade como sendo sua marca. Além disso, o processo de especialização, não torna o trabalho mais bem elaborado, pelo contrário, fragmenta-o ao ponto de perder a técnica.

Com a contemporaneidade o trabalho e a sua ideologia são instrumentos que estão submissos ao poder político, os meios midiáticos criam o desejo de consumo, o homem é então produto do mercado e os que não acompanham essas mudanças são excluídos. Sawaia (2001) ao falar sobre inclusão perversa, a qual refere-se que o sujeito está incluído no sistema mesmo que desigualmente, salienta sobre a colonização do imaginário, esta que é uma sociedade da imitação, ou seja, a mídia ao criar o desejo de consumo, direciona os que estão à margem a imitar os ricos, mas a ascensão social dos mesmos é bloqueada, estes são “não cidadãos”, uma vez que, são desnecessários ao processo produtivo.

Na sociedade contemporânea o trabalho foi desvinculado do lazer, este é uma compensação de horas extenuantes de trabalho, é um paliativo para que o trabalhador não se queixe e continue a render lucros, remetendo tal prática ao pão e circo utilizado pelos romanos, sendo portando uma forma de alienação dos corpos.

O livro apresenta um paralelo a respeito da visão das religiões sobre o trabalho, a maioria acreditava que o trabalho era uma punição divina, no entanto, após a reforma protestante esse olhar se modifica, o trabalho tem origem na vontade divina. O capitalismo aliena o indivíduo a utilizar a ideologia do protestantismo que o trabalho dignifica o homem, é uma vocação, enquanto opera no jeito de ser e de viver da sociedade, afinal o sujeito trabalha necessariamente para o consumo e não para produzir algo que o dignifique, que o represente, que fomente sua criatividade. Huxley (2014) ressalta que, a forma verdadeiramente de alienação é quando o sujeito ama a “servidão”, aceita o pouco tempo de lazer por horas cada vez mais excessivas de trabalho.

Na atualidade o indivíduo reproduz a lógica vigente sobre trabalho de forma automática, sem refletir tal comportamento, passa a ser um dispositivo de disciplina em prol do capitalismo e o modo de produção, no qual os corpos sociais precisam ser “economicamente úteis e politicamente dóceis” (FOUCAULT, 2004). Assim o trabalho, segundo Marcuse (apud ALBORNOZ, 1986, p. 75) “não seria apenas alienado no mundo de hoje, mas alienante”. A servidão ao trabalho sem sentido serve para castrar os indivíduos como seres políticos e pensantes. A autora finaliza propondo uma reflexão sobre o que aconteceria com o fim do trabalho, se seria possível às sociedades futuras sobreviver sem o mesmo e de forma igualitária, e ainda, se o trabalho poderia ser aliado à felicidade.

Fonte:http://www.upf.br/comarte/wp-content/uploads/2014/05/Imagem_APOIO_02.jpg

Huxley (2014) no seu livro “Admirável mundo novo” retrata uma sociedade utópica que por meio do condicionamento hipnopédico e da “soma” é capaz de criar uma sociedade onde a felicidade é palpável, no entanto, o trabalho se faz presente nesse contexto divido entre as castas, e desde fetos os sujeitos são alienados e dirigidos a desempenhar determinada função, não refletindo sobre o porquê. “O autor concebe o homem como produto do meio, cuja individualidade é manipulada nas relações sociais, notadamente, por intermédio do controle cientifico organizacional” (GRECHI et al, 2012).

A crítica atrelado a reflexão proporciona observar que, trabalho ao longo do tempo distanciou-se da felicidade, sendo hoje uma ferramenta, um meio para se alcançar status social e capital, no entanto, poucos alcançam esse objetivo, gerando uma sociedade cada vez mais dependente do trabalho, ou seja, infeliz. Esse desequilíbrio propiciado por esta prática e busca desenfreada é resultado do capitalismo e do consumismo acrítico, para que se opere uma mudança de cultura é necessário repensar e formular novas ações e conceitos, o sujeito deve resgatar no trabalho o prazer em desempenhar esta função, e mesmo que seja uma necessidade, essa ação humana não deve escraviza-lo, tão pouco gerar sofrimento, mas sim, ser fonte de felicidade. O homem só alcançará esse resultado quando compreender o que lhe impulsiona ao sofrimento, e então conseguir meios de atenuar o controle social que é sobre ele exercido, por meio do contra controle, ou seja, reprimido o falso desejo do “ter” e promovendo o “ser”, esta tarefa reflete em um equilíbrio ideal.

 

REFERÊNCIAS

ALBORNOZ, S. O que é trabalho. 3ª reimpressão, 1998.

CANOPF L. A função psicológica do trabalho. In: II CONGRESSO BRASILEIRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, Uberlândia, 19 a 21 de novembro de 2014. Disponível em: < http://iicbeo.com.br/anais/1123GT1.pdf >. Acesso em: 10 de agosto de 2015.

CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis, RJ. Vozes, 2007.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Petrópolis, Vozes, 2004.

GRECHI et al. O admirável mundo novo e a educação; entre ficção e a realidade. In: IX ANPED SUL, 2012. Disponível em: http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Educacao_Comunicacao_e_Tecnologias/Trabalho/06_16_54_1549-7541-1-PB.pdf. Acesso em: 10 de agosto de 2015.

GUATTARI, F. As três ecologias. 12ª Ed. 2001.

Huxley, A. Admirável mundo novo. Editora Azul. 22ª Ed, 2014.

SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão. 2ª Ed, 2001.

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O Cotidiano da Loucura: um novo elogio a um velho personagem

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Enfim, eis que nós, seres humanos, chegamos à absoluta era da razão, onde todas as decisões tomadas estão permeadas de um bom senso e mergulhadas no vasto lago de ponderação, cujo conteúdo foi depositado, gota após gota, por séculos de evolução do pensamento altruísta e beneficente! Bem vindo seja nessa época onde não existem as diferenças de credo, ideologia, cor, raça e onde somos todos humanos e para os humanos!
O parágrafo acima representa o ideal pelo qual estamos esperando e que a cada dia que passa é adiado por 20 anos. Nós vivemos uma era da funcionalidade extrema, desenvolvimento exponencial, jornadas de trabalho cada vez mais intensas, enfim, o verdadeiro “caos terreno”. Esses problemas e situações são bastante modernos, mas quando bem analisados e discutidos, surge uma personagem inesperada, já bem antiga e muitíssimo bem conhecida pelos pensadores e filósofos, sejam eles atuais ou de gerações passadas.
Uma personagem que está por trás das mais delicadas decisões e que age quando todos nós perdemos a razão, que torna a infância algo tão puro e a velhice um descanso tão gratificante, que torna o indivíduo culpado e que é a absolvição das massas. E quem haveria de ser essa personagem tão importante e tão decisiva? Ninguém mais, ninguém menos que ela, a Loucura. A Loucura, como personagem, da mesma forma que foi descrita por Erasmo de Roterdã em 1509, em seu livro “O Elogio da Loucura”.
 
Com todo seu sarcasmo, cinismo e, pasmem, bom senso, a Loucura nos é apresentada de uma forma personificada, em uma obra quase caricata e recheada de críticas à sociedade e aos “figurões” da época. Erasmo, que era amigo muito próximo de Thomas More, figura importante no Renascimento Humanista da cultura européia, pretendia criticar toda a sociedade de uma forma tão refinada e ácida que causaria revolta á todos os leitores que não tivessem a malícia de ver as entrelinhas de sua obra.
No entanto, a repercussão que a obra teve foi completamente diferente da qual Erasmo esperava. O livro foi elogiado pelo Papa Leão X como uma obra divertida, e foi aclamada pela população, fatos que desagradaram, e muito, Erasmo de Roterdã. Mas e atualmente? Como seria possível trazer idéias e situações de um livro do século XVI para a nossa avançada sociedade da aurora do século XXI? Em que pontos Erasmo teria sido “profético” ao ponto de criticar situações que só viriam a acontecer 500 anos após a publicação de sua obra? Podemos começar com o exemplo mais comum e talvez o mais triste deles. Bem disse Erasmo que aquele indivíduo que é capaz de ignorar toda a podridão dos defeitos e egoísmos do próximo, justificando-os por um senso pífio de “bem maior”, esse sim, pode ser considerado com a maior das certezas um digno devoto da “deusa” Loucura.
Pois bem, em nossa sociedade evoluída e politizada, o que não nos falta, lamentavelmente, são exemplos dos nossos representantes, “Os Políticos”. Aqui citados entre aspas devido ao senso de personificação e semi-divindade que os comuns deram-lhes, que se utilizam de sua posição privilegiada e seu “conhecimento” abundante para chegar aos limites de um comportamento completamente incoerente e esdrúxulo com o qual um dia foi prometido ao povo, aproveitando-se de todas as formas possíveis para garantirem nada menos que a autopromoção.
Até aí nada fora do normal, mas o que se equipara à Loucura de Roterdã está na atitude do povo que elegeu essa pessoa, que passivamente aceita, e de bom grado, tudo que lhe é imposto por essa figura tão louvada. Usando-me da licença poética de “citar o milagre, sem citar o santo”, somos levados a um ponto de Loucura tão exacerbada que escutamos de representantes do povo, os mais maltratados pelas ações mesquinhas do “Político”, o seguinte bordão: “Ele rouba, mas faz”. Em que situação, se não na Loucura explícita e quase pueril, um ser humano em posse de todas as suas faculdades mentais “normais” justificaria milhares de erros e egoísmos com um único ato de “boa vontade”?Saindo do já exaustivamente discutido cenário político, podemos encontrar os atos d’A Loucura em situações um tanto quanto comuns para nós, defensores do alvo e divino dever de Asclépio. Enganam-se os que pensam que a medicina encontra somente na Psiquiatria os indivíduos tocados pela Loucura, pois se considerarmos que Erasmo deixou bem claro em seu escrito que a Loucura vai desde o ato de agir como um bobo até o verdadeiro “Louco de Pedra”. Todos os dias somos apresentados à figura do Médico onipotente, que se equipara a(os) Deus(es) e proclama para si o direito sobre a vida e a morte. Os que entendem um pouco de mitologia greco-romana sabem que Asclépio, deus da Medicina, foi morto por um raio de Zeus quando cometeu o “erro” de trazer um ser inerte de volta à vida. Salvo as devidas proporções, porque deveríamos considerar mentalmente são um homem, tão mortal quanto eu ou você, divino ao ponto de decidir quem morrerá e quem será salvo? Temos, então, bem diante de nossos olhos um excelente exemplo de como a Loucura do século XVI ainda se mostra bastante ativa em pleno século XXI.

Outro aspecto para o qual a Loucura se mostra soberana é o atual estilo de vida que grande parte da população metropolitana desfruta. A cada dia estamos mais atrasados, mais apressados, mais cansados, mais atarefados e, conseqüentemente, mais loucos. Em prol de ter uma sociedade mais dinâmica e mais lucrativa, temos que abdicar de nossa sanidade mental, e nos submetemos a condições sub-humanas de trabalho. Somos considerados loucos ao tentar alcançar a perfeição social representada por Erasmo como uma colmeia de abelhas, e nos fala que foram necessários milhares de anos de aperfeiçoamento da natureza para que uma colmeia apresentasse uma organização social tão perfeita que todos os componentes dela já nascem sabendo o que fazer e cumprem seu dever incansavelmente até que a morte corte o fio que os prende à vida. Para Erasmo o simples fato de buscarmos o conhecimento e irmos contra toda a sabedoria da natureza é um ato explícito de Loucura.

Uma passagem interessante, a qual cabe uma citação, e que pode ser considerada completamente atual, é como Erasmo de Roterdã encara as três principais fases de um ser humano: a Infância, a Idade Adulta e a Velhice. A Loucura da criança, que brinca incansavelmente, devaneia com situações imaginárias, não mede os riscos das suas ações, está no simples fato de que ela não teve vivência suficiente para aprender com os seus erros e imprudências, ainda não é cobrada pela sociedade a ponto de ter que sustentar uma sobriedade de pensamento constante, ou seja, ela ainda tem a sua liberdade de pensar e agir contra tudo o que a sociedade considera moral ou imoral.

Mas, à medida que crescemos, aprendemos de nossos superiores que determinadas atitudes são mal vistas pelo grupo social onde estamos inseridos, e a partir daí começamos a nos policiar e a olhar todo o comportamento de uma criança como algo que passado, e então abrimos mão dessa Loucura. Quando chegamos à velhice, eis que nos é dada a oportunidade de desfrutar da doçura da loucura novamente, sem que a sociedade nos encare como tal.  Erasmo considera que se o ancião não “enlouquecesse” seria o ser mais importuno dentro de uma sociedade, posto que sua vasta experiência e vivência seria o suficiente para que os mesmos fossem irrefutáveis em qualquer discussão, sagazes em qualquer negócio e corretos em qualquer ação. Dessa forma Erasmo aproxima as crianças dos idosos, e conclui que a boa vivência entre ambos está única e exclusivamente ligada á loucura que ambos desfrutam.

E como um último exemplo de como a Loucura continua contemporânea, temos os exemplos dos monarcas, que movidos por ela, enviam seus exércitos para uma morte quase certa, apenas por caprichos egoístas de uma moral ferida. Ainda em pleno século XXI, temos líderes que forjam situações de conflito apenas com o interesse econômico de manter seus “reinos” felizes e prósperos, mesmo que isso custe milhares de vidas dos inocentes do “reino” atacado. Nesses casos a Loucura se torna algo tão sistematizado que temos uma metodologia aplicada a ela. Generais discutem estratégias e definem ataques, obedecendo a uma hierarquia e com uma sofisticação tão refinada que apenas a própria Loucura em pessoa poderia ter idealizado. Somos confrontados com a discrepância de que um homem, armado, que fere seu próximo, é um louco, mas que centenas dos mesmos, armados, mas motivados por um ideal nacionalista, e pela Loucura do seu líder, e não a sua própria, vêm a ser considerado um herói, e louvado por toda uma nação.

Esses foram alguns exemplos, dos inúmeros citados e devidamente criticados por Erasmo em 1509, e se fôssemos citar todos, com certeza seria uma discussão interminável. Mas o que podemos aprender e, acima de tudo, apreender do texto, é que, independente de como a Loucura se apresenta, sua interpretação nunca será a mesma, pois depende do seu contexto, da sua motivação, das suas conseqüências e, sobretudo, da ótica da pessoa que a observa. Nós, seres humanos, somos completamente diferentes, desde um nível microscópico e genético até um nível macroscópico e cognitivo, e, portanto, é muito improvável que compartilhemos de modo absoluto uma opinião. Cabe a nós pesar e entender que da mesma forma que julgamos a Loucura do próximo, a nossa será igualmente julgada, e com a mesma mão de ferro que a punimos, seremos punidos. Talvez, tão antiga quanto a sociedade, seja a Loucura que permeia a razão e os costumes, e por ser tão discreta, deixamos que ela passe completamente despercebida. Pois bem, então que sejamos Loucos, mas sejamos conscientes!

 

REFERÊNCIAS:

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Disponível em:http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/elogio.pdf Acessado em: 17/10/2011.

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